O Estado de São Paulo (2020-03-15)

(Antfer) #1
Ieda Lebensztayn ]

“Para onde escapar?” Depois do xeque-mate em
uma partida disputada com o pai, tal pergunta
expressa o beco sem saída que afligia Paulo Ró-
nai (1907-1992), seus pais e cinco irmãos, bem
como tantas pessoas, na Hungria em 1938, deses-
pero provocado pela perseguição nazista aos ju-
deus na 2.ª Guerra Mundial.
Seu diário passou a ter notícias da guerra, não
só anotações sobre leituras, traduções e outras
atividades realizadas. Primogênito, contando
30 anos, Paulo se desdobrava para ajudar a famí-
lia: lecionava em dois liceus, dava aulas particu-
lares de francês e fazia traduções. Aliás, já traba-
lhava como tradutor quando ingressou nos cur-
sos de filologia e línguas neolatinas na faculda-
de. Aos 19 anos, segundo a tradição de seu país,
verteu para o húngaro poemas latinos clássicos;
no ginásio, estudara latim, grego e alemão. Ró-
nai se formou com o “apetite cultural” húngaro,
cuja língua de pastores nômades, segundo uma
história mítica, era para falar com o diabo, en-
quanto o latim com Deus.
Já o gosto pela língua francesa nasceu na livra-
ria de seu pai, que começara como vendedor.
Uma livraria à disposição e um Balzac de presen-
te garantiram a paixão de Paulo pelos livros. E a
língua portuguesa? Referida pela primeira vez
em seu diário em abril de 1938, insti-
gara seu interesse no ano anterior.
Dom Casmurro, lido em francês, lhe
causara tal impressão, que buscou
conhecer a literatura do país do es-
critor. Eis que encomendou a uma
livraria francesa As Cem Melhores Poe-
sias da Língua Portuguesa, organiza-
do pela lexicógrafa Carolina Michaë-
lis, e se entregou à aventura de ver-
ter os poemas para húngaro. De um
aluno da escola israelita, estudioso
da gramática portuguesa com o fito
de emigrar para o Brasil, obteve o
contato de uma livraria húngara em
São Paulo e, logo, a Antologia de Poetas Paulistas.
Desconhecer plenamente o sentido de pala-
vras como paulista, seringueiro, uirapuru, rede
(de dormir) e morro (favela) não obstou a Paulo
organizar uma antologia de poemas brasileiros
em sua língua. Enquanto essas palavras não se
tornavam seres e coisas, os estudos feitos pelo
tradutor, sua sensibilidade ao ritmo de poemas
como Acalanto do Seringueiro, de Mário de Andra-
de, e sua confiança na rede de sonhos propiciada
pelos versos do paulista Corrêa Júnior possibili-
taram-lhe publicar na Hungria, durante a guer-
ra, Mensagem do Brasil: Os Poetas Brasileiros da
Atualidade.
O livro incluía Bilac, Cecília, Drummond, Ban-
deira, Jorge de Lima, Menotti, entre outros: 33
poemas de 23 poetas. Vários viriam a se tornar
amigos de Rónai, em especial Ribeiro Couto,
cujos versos de A Moça da Estaçãozinha Pobre,
motivando a correspondência do tradutor com
o poeta e diplomata – e esse foi o caminho para
que, enfim, Rónai conseguisse emigrar para o
Brasil, em 1941.
Dois novos livros chegam ao leitor brasileiro
para lançar luz sobre esse intelectual húngaro
fundamental para a cultura nacional. Um deles
é a biografia O Homem que Aprendeu o Brasil: A
Vida de Paulo Rónai, escrita por Ana Cecilia Im-
pellizieri Martins e publicada pela editora Toda-
via; o outro é a antologia de ensaios Rosa & Ró-
nai: O Universo de Guimarães Rosa por Paulo Ró-

nai, Seu Maior Decifrador, lançamento da editora
Bazar do Tempo, com organização de Ana Ceci-
lia Impellizieri Martins e Zsuzsanna Spiry, e pre-
fácio de Samuel Titan Jr. A obra traz artigos
preciosos de Rónai a respeito de Guimarães
(“não apenas o mais original dos autores brasi-
leiros, mas também, seguramente, um dos gran-
des escritores de nossa época”, de acordo com
Rónai), alguns deles publicados na imprensa –
incluindo o Estado – e outros, lançados na Fran-
ça, Espanha e Hungria, inéditos no Brasil.
Nesta página, à direita, o Aliás publica um ex-
certo de A Obra de Guimarães Rosa, originalmen-
te em francês, inédito no Brasil e traduzido para
o português por Juliana Vaz. O texto, que faz
parte de Rosa & Rónai, foi escrito para uma confe-
rência proferida na França em 1964 e posterior-
mente editada na publicação Caravelle – Cahiers
du Monde Hispanique et Luso-brésilien [Caravela


  • Cadernos do Mundo Hispânico e Luso-brasi-
    leiro, em tradução livre], no ano seguinte.
    Se a formação ampla em línguas poderia soar
    como erudição individualista, seu sentido de
    compreensão do outro revelou-se em sua di-
    mensão de experiência vital, de sobrevivência,
    no contexto da guerra. Quem diria que a poesia
    brasileira seria a salvação de Rónai?
    Em O Homem que Aprendeu o Brasil, sua biógra-
    fa constitui um novo olhar, reencontrando a nos-
    sa poesia, ao conhecermos melhor a
    trajetória desse grande intelectual
    estrangeiro que se fez brasileiro. O
    livro era originalmente uma tese de
    doutorado, mas a força da biografia
    de Rónai advém das experiências nar-
    radas, marcadas pela dor e pelo dese-
    jo de alcançar outros horizontes por
    meio da literatura. E advém da entre-
    ga da autora à pesquisa em fontes
    como o diário de Paulo, a correspon-
    dência, publicações dele e sobre sua
    época, a amizade com sua filha Cora.
    Movida pelo mesmo amor aos li-
    vros, a obra recolhe da trajetória de
    Rónai momentos de entusiasmo: o olhar poéti-
    co para o português, língua de passarinhos, la-
    tim de crianças e velhos; a carta do presidente
    Vargas; a tradução da obra de Balzac e dos con-
    tos do Mar de Histórias, projeto em parceria
    com o amigo Aurélio Buarque. E nos permite
    saber dos sofrimentos: a decepção com um côn-
    sul brasileiro antissemita; o período passado no
    campo de prisioneiros; a morte da amada Mag-
    da; o exílio, para sobreviver aos nazistas, de inte-
    lectuais como Stefan Zweig, Vilém Flusser e Ot-
    to Maria Carpeaux.
    Justamente Rónai, Carpeaux e Aurélio – e tam-
    bém José Lins do Rego – são evocados por Graci-
    liano Ramos no discurso de homenageado de
    1942: ele era um migrante forçado pela prisão, e
    todos puderam encontrar-se no Rio de Janeiro.
    Aqui lembro um itinerário etimológico aprendi-
    do de Olgária Matos: perigo e experiência, porto e
    oportunidade, palavras que sintetizam as rotas
    semelhantes desses intelectuais. A livraria José
    Olympio, a amizade e a aposta na arte, na possibi-
    lidade de compreensão entre pessoas de todos os
    lugares, contra a barbárie, constituíram para eles
    um porto. Significam caminhos, e não nos dei-
    xam esquecer a pergunta: “Para onde escapar?”


]
É CRÍTICA LITERÁRIA, COM PÓS-DOUTORADO NA USP.
AUTORA DE ‘GRACILIANO RAMOS E A NOVIDADE: O ASTRÔ-
NOMO DO INFERNO E OS MENINOS IMPOSSÍVEIS’

Uma biografia e
uma coletânea
de ensaios
mostram como
o intelectual
húngaro de
família judaica
se fez brasileiro
por meio da
literatura

Aliás, Literatura


Paulo Rónai ]

No momento da publicação de Sagarana, Guima-
rães Rosa foi rotulado de autor regionalista.
Num país imenso como o Brasil, que exibe, ape-
sar de sua surpreendente unidade nacional, di-
vergências locais muito fortes, o regionalismo
é, para os escritores medíocres, uma tábua de
salvação: a representação de costumes e tipos
locais, a notação de expressões e termos regio-
nais compensam em certa medida a falta de ca-
pacidade criadora. Mas, para os escritores real-
mente importantes, que têm uma mensagem a
transmitir, o regionalismo é, antes, um empeci-
lho. Não só a abundância do vocabulário local
atravanca o acesso de sua obra ao grande públi-
co, mas a fartura do material folclórico, ao se
transformar num convite constante às digres-
sões, ameaça o próprio ritmo da narração.
Ora, Guimarães Rosa aceitou esse risco e
soube se esquivar dele; todos os seus livros,
exalando um poderoso perfume telúrico, fin-
cam fortes raízes na vida popular, mas, ao mes-
mo tempo, abrem-nos perspectivas universais.
O que se sentia antes de tudo em Sagarana era
o sopro épico que revela de imediato o narra-
dor nato. Suas nove peças são, mais do que
contos, novelas, não somente devido à sua ex-
tensão, mas também porque cada uma delas
encerra vários episódios ou histórias secundá-
rias que se sucedem num crescendo. De uma
grande variedade, elas confirmam a plasticida-
de de um gênero que se adapta às exigências
de todos os assuntos.
Parece, por exemplo, que a primeira história,
O Burrinho Pedrês, não obedece a nenhum pla-
no e é formada por um amontoado de historie-
tas, de anedotas e de episódios que pouco fa-
zem a trama avançar. Mas era precisamente es-
se tipo de narrativa que convinha ao assunto: a
viagem de uma boiada que avança por etapas,
descansa, retoma a jornada, se desvia, se disper-
sa e volta a se reunir. Sem que o leitor se dê con-
ta, o enredo progride e a tensão aumenta à me-
dida que um burrinho desaparece e ressurge –
pois nessa história os papéis principais são de-
sempenhados por animais observados com
uma precisão irônica e tenra que os individuali-
za. Sua marcha revela simultaneamente um con-
flito entre os homens que vai se intensificando
e nos faz prever uma tragédia. Espera-se um as-
sassinato, quando sobrevém um acidente, resol-
vendo a tensão por um cataclismo imprevisto.
Essa maneira de terminar uma história, bas-
tante frequente em nosso autor, não é um sim-
ples deus ex machina, um expediente fácil para
sair de um impasse: ela corresponde a uma con-
cepção metafísica. De acordo com a tese do au-
tor, expressa seguidas vezes em termos ingê-
nuos e pitorescos por seus personagens, a sorte
de todo homem está preestabelecida, toda exis-
tência segue uma curva traçada previamente
mas cujo sentido é difícil descobrir. Se essas
existências se desviam de seu curso natural, lo-
go são devolvidas vigorosamente a ele por aqui-
lo que chamaremos como quisermos: acaso,
destino ou Deus.
É isso que nos dá a ouvir outra novela do volu-
me: A Hora e Vez de Augusto Matraga, história do
assassino de aluguel abandonado ao chão como
morto pelos capangas de um adversário. Po-
rém, ele sobrevive, e, enquanto se recupera len-
tamente dos ferimentos, sente crescer dentro
de si o arrependimento de sua existência passa-
da. Esse sentimento o transforma e o enobrece.
Ele esquece até mesmo a ideia de vingança,
quando, subitamente, uma chance única de re-
vanche se apresenta diante dele. Trememos por
essa ovelha perdida e reencontrada quando sur-
ge a oportunidade de um ato louco de valentia:
uma tentação é vencida por outra, nosso ho-
mem perde sua vida e salva sua alma.
Numa terceira novela intitulada Duelo, dois
adversários obstinados perseguem-se implaca-
velmente até que a morte de um deles, sucum-
bindo à doença, parece pôr fim à luta. Nada dis-
so: o moribundo legou sua vingança a um pobre
diabo que ele tinha abarrotado de benfeitorias,
e este deverá quitar sua dívida de gratidão exe-
cutando a última vontade de seu benfeitor.
O testador tinha razão de transmitir seu
ódio postumamente? É uma pergunta que o au-
tor não se faz. Seus personagens, rudes e guia-
dos pelo instinto, criam para si uma razão de
viver, deixam-se levar por um voto, uma cren-
ça, o sentimento de honra. Pouco importa que
a interpretação que eles propõem seja superfi-
cial, até completamente errônea: ela opera pe-
la própria força das raízes lançadas em suas al-
mas. Na novela Corpo Fechado o autor nos apre-
senta um feitiço cujo efeito seria tornar invio-
lável aquele que foi beneficiado por ele: foi a
magia que vedou o corpo do herói a qualquer
malefício? Ou foi sua fé ou a dos outros na ma-
gia que o protegeu?
Seres brutos, grosseiros e ignorantes, mas ple-
nos de uma pureza ingênua, que obedecem não
à racionalidade, mas aos códigos que herdaram
de seus ancestrais, encontram-se subitamente
numa encruzilhada e são obrigados a interrogar
seu destino, a desvelar seu futuro.
Eis um dos protótipos da novela tal como a
concebe Guimarães Rosa.

]
ESTE É UM FRAGMENTO DE ‘A OBRA DE GUIMARÃES ROSA’,
TEXTO PROFERIDO POR PAULO RÓNAI NA FRANÇA EM
1964 E PUBLICADO NO LIVRO ‘ROSA & RÓNAI’

O HOMEM QUE
APRENDEU O BRASIL:
A VIDA DE PAULO
RÓNAI
AUTORA:
ANA CECILIA IMPELLIZIERI
MARTINS
EDITORA: TODAVIA
384 PÁGINAS
R$ 69,90


O BRASIL DE


RÓNAI


ROSA & RÓNAI:
O UNIVERSO DE
GUIMARÃES ROSA
POR PAULO RÓNAI
ORGANIZAÇÃO:
ANA CECILIA
IMPELLIZIERI MARTINS
E ZSUZSANNA SPIRY
EDITORA: BAZAR DO TEMPO
NAS LIVRARIAS EM ABRIL

GUIMARÃES


ANALISADO


POR RÓNAI


ACERVO PAULO RÓNAI

Prisioneiro. Rónai no campo de trabalho na ilha de Háros-Szigeti, onde viveu por seis meses durante a 2.ª Guerra

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E2 Aliás DOMINGO, 15 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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