O Estado de São Paulo (2020-03-15)

(Antfer) #1
Guilherme Solari ]

É Difícil Ser Deus é um clássico da ficção científica
russa dos irmãos Boris e Arkady Strugastky que
está sendo lançado pela editora Rádio Londres.
O livro traz um tema que talvez hoje seja ainda
mais atual do que em seu lançamento original,
em 1964: o perigo da perseguição furiosa ao co-
nhecimento. Até o fim dos anos 1990, mais de 2,6
milhões de exemplares do livro foram vendidos
em russo, além de edições em mais de 20 países,
se tornando a segunda obra mais popular dos
autores, atrás apenas de Piquenique na Estrada,
adaptado para o cinema por Andrei Tarkovski.
No livro, pesquisadores terráqueos se infil-
tram em um planeta que está em um período
semelhante à Idade Média para observar o seu
desenvolvimento social. Em vez disso, acabam
sendo testemunhas de uma caçada sanguinária a
intelectuais, letrados e a qualquer tipo de sabedo-
ria. A obra se mantém atual em um momento em
que, apesar de termos acesso à quase totalidade
do conhecimento humano pela internet, tam-
bém temos acesso a toda a ignorância – e a valida-
de dos conhecimentos científicos mais básicos
passa a ser contestada.
A obra traz uma curiosa combinação de teoria
marxista com Star Trek. Os observadores russos
são de uma Terra na qual o comunismo já se esta-
beleceu e entendem o desenvolvimento históri-
co como uma ciência exata. A Idade Média seria
um estágio de desenvolvimento social necessá-
rio para que a sociedade evolua para outras for-
mas de governo, o que levaria eventualmente ao
comunismo. Por isso, apesar de sua tecnologia

avançada, eles não podem intervir diretamente
na sociedade que observam, princípio semelhan-
te ao da Primeira Diretriz de Star Trek. Uma inter-
venção só atrasaria o “aprendizado” do povo.
A história é acompanhada do ponto de vista do
agente Anton, que atende por seu nome de infil-
trado Don Rumata. Um amante da cultura, ciên-
cia e artes que passa a testemunhar de camarote
um pogrom contra pessoas com qualquer tipo de
educação, que são acusados pelos problemas do
reino. Vendedores de ervas são arrastados na rua
e mortos por serem “alquimistas”, artistas são
caçados e cientistas considerados bruxos e tortu-
rados. O simples fato de saber ler é suficiente
para se colocar um alvo na testa de alguém.
A escrita traz uma recriação não só visual e
sonora da Idade Média, mas olfativa. As descri-
ções de cheiros e fluidos fazem outros livros da
época ou de fantasia parecerem limpos demais. É
uma obra que fede, com a repulsa de Rumata pela
falta de higiene física só aumentando sua aversão
à sujeira moral da sociedade. Isso faz com que É
Difícil Ser Deus tenha um tom muito realista e dê
ao leitor a dimensão de semelhantes atrocidades
e perseguições, que afinal aconteceram diversas
vezes ao longo da violenta história humana.
Talvez não tenhamos – ainda – uma persegui-
ção tão violenta quanto a do livro, mas ela lembra
o momento atual de descrença no conhecimento
acadêmico: retorno a dogmas religiosos, terrapla-
nismo, negação do aquecimento global e da teo-
ria da evolução. Vivemos uma época em que a
ignorância consegue se organizar e encontra res-
paldo político para combater o conhecimento.
Basta olhar nas linhas do tempo das redes sociais

para se sentir com um pé na Idade Média. A perse-
guição, no livro, é tão sistemática que faz com
que Rumata questione a teoria da evolução his-
tórica, já que caminha para a criação de um esta-
do fascista medieval, algo sem paralelo na Terra.
É Difícil Ser Deus tem como pano de fundo a
perseguição a artistas na União Soviética – a reali-
dade dos autores. Segundo Boris Strugatsy, a his-
tória começou com o objetivo de ser uma aventu-
ra aos moldes de “Os Três Mosqueteiros no espa-
ço” e se tornou um grito de criatividade e crítica
ao regime escrito por trás da cortina de ferro.
Ele foi lançado em 1964, uma época na qual o
então primeiro-ministro, Nikita Kruchev, estava
em pleno esforço de suprimir toda arte que não
glorificasse o Estado, que era analisada a pente
fino por uma comissão ideológica. Na literatura,
todo livro era analisado previamente pela censu-
ra, em um verdadeiro labirinto de diversas entida-
des burocráticas que deixaria Kafka de cabelo em
pé. Às vezes, as exigências da própria da censura
já era um livro à parte. A resposta apenas do “edi-
tor de linguagem” para Piquenique na Estrada, por
exemplo, tinha nada menos de 18 páginas de “co-
mentários sobre comportamento imoral dos he-
róis”, além de ordens de trocas de palavras vulga-
res e ajustes para a publicação ser liberada.
Nesse contexto, É Difícil Ser Deus passou mila-
grosamente sem muitas mudanças pelo minucio-
so trabalho de aprovação frente aos censores –
talvez por sua descrição do comunismo como o
modelo social final e mais avançado –, mas sua
crítica incisiva nas entrelinhas de uma aventura
com ares de Os Três Mosqueteiros não se perdeu
para os leitores. O livro se tornou particularmen-
te popular entre adolescentes por sua crítica ao
totalitarismo, além ser um dos mais belos exem-
plos de como a autocensura se insere na alma dos
artistas que vivem em um regime totalitário, tor-
nando a arte insípida. Em determinado momen-
to, há um artista antes genial e que Rumata com-
para a Shakespeare, mas que depois de tantas
perseguições mais parece um cachorro domesti-
cado pelo regime, sua arte antes rica transforma-
da em versos patrióticos e vazios. Um persona-
gem que era bem real para os autores, conforme
mostra a extensa troca de cartas entre os irmãos.
É Difícil Ser Deus questiona a responsabilidade
dos poderosos, que podem impedir atrocidades e
nada fazem, mas aventa também a incapacidade
de se intervir nas atrocidades do rolo compres-
sor histórico. Em uma cena, um homem – que
suspeita que Rumata é um deus – pede a ele seu
poder “dos raios” para acabar com a barbárie.
Mas Rumata argumenta que isso apenas levaria
um novo ditador, talvez ainda pior, ao poder.
A mensagem da obra é que seres humanos de
conhecimento acabam tendo um poder maior
que o de um Deus, pois só eles podem mudar o
mundo de fato. O céu e o inferno podem existir,
mas somos nós que os construímos, lentamente,
através da ignorância ou do conhecimento.

]
É JORNALISTA E ESCRITOR

Clássico de


Arthur Clarke


imagina o


espanto causado


pelo contato


com um objeto


espacial criado


por inteligência


além de nossa


compreensão


Escrita em meio
à censura do
regime soviético,
obra dos irmãos
Strugatsky
questiona o
totalitarismo,
a descrença na
ciência e o
obscurantismo

A CRUZADA CONTRA O


CONHECIMENTO


Aliás, Literatura


André Cáceres

“Aquela carruagem se assemelhava a uma nuvem
reluzente no céu... e o rei Rama entrou, e a excelen-
te carruagem, ao comando de Raghira, ascendeu à
alta atmosfera.” Poderia ser uma ficção científica
espacial, mas é um excerto do poema épico hindu
Ramaiana (A Viagem de Rama, em tradução lite-
ral), composto por Valmiki entre 500 e 100 a.C. A
carruagem de Rama foi um dos mais antigos pro-
tótipos de espaçonaves na literatura universal. Ob-
jetos voadores como esse – presentes na pintura
egípcia, na mitologia grega e nas Mil e Uma Noites –
provam que a humanidade sonha com os insondá-
veis mistérios do espaço desde que se tornou ca-
paz de se expressar por meio da arte.
Essa ligação umbilical entre a curiosidade huma-
na e a vastidão do universo norteia o romance En-
contro com Rama (1973), de Arthur C. Clarke, com
nova edição no Brasil pela Aleph. Fortemente in-
fluenciada pela experiência do autor britânico no
Sri Lanka – país asiático onde ele viveu de 1956 até
sua morte, em 2008 –, a obra medita sobre o estra-
nhamento proveniente do choque entre culturas
de valores distintos.
Encontro com Rama se passa em 2130, quando a
humanidade colonizou a Lua, Marte, Mercúrio e
os satélites naturais de Júpiter, de Saturno e Netu-
no. As comezinhas tensões políticas interplanetá-
rias se desenrolam nesse cenário futurista até que
os telescópios se voltam para um misterioso cor-
po celeste, um intruso no Sistema Solar, a princí-
pio um suposto asteroide desgarrado que vai se
revelando singular à medida que se aproxima.
Batizado de Rama, porque o panteão grego já
estava esgotado, o objeto “era um errante solitário
entre as estrelas, fazendo sua primeira e última
visita ao Sistema Solar – pois movia-se tão depres-
sa que o campo gravitacional do Sol jamais pode-
ria capturá-lo.” A sonda Sita é enviada para estudá-
lo – no Ramaiana, Rama parte em uma jornada
para resgatar Sita, sua mulher, de Ravana, que a
captura. As descobertas transmitidas pela sonda
são perturbadoras: “Em um bilhão de telas de tele-
visão, eis que aparece um cilindro pequeno e uni-
forme, aumentando rapidamente a cada segundo.
Quando dobrou de tamanho, ninguém mais pôde
fingir que Rama era um objeto natural.”
O astrônomo Didier Queloz, Nobel de Física em

2019, afirmou categoricamente que, com o apri-
moramento na tecnologia de observação, haverá
confirmação de vida alienígena em cem anos. O
primeiro contato é, naturalmente, um dos temas
mais explorados pela ficção científica, porém
Clarke nos leva por uma senda enigmática: nunca
há um contato de fato. Rama é uma arca espacial
gigante, um mundo de 50 km de comprimento,
mas inabitado ou morto. Não há tempo para estu-
dá-lo, pois, na velocidade em que se encontra, só
uma nave remota – a Endeavour, do comandante
Norton (comparado no livro aos grandes explora-
dores do passado, como James Cook) – está perto
o suficiente para interceptar sua trajetória e explo-
rá-lo, antes que Rama deixe o Sistema Solar.
A todo momento, Clarke traça paralelos com
arqueologia (as descobertas de Troia e Angkor
Vat) e história (os embates entre Pizarro e os incas

ou Peary e os japoneses) para evocar o encontro
entre duas civilizações fundamentalmente distin-
tas. Enquanto outros autores da Era de Ouro da
ficção científica insistiam em uma visão antropo-
cêntrica e ocidentalizada do universo – e das possí-
veis criaturas contidas nele –, Clarke se beneficiou
do intercâmbio cultural no Sri Lanka para imagi-
nar uma espécie tão diferente de nós que mal pode-
mos compreendê-la. Cada detalhe da arquitetura
de Rama, se não revela muito, ao menos suscita
especulações sobre a tecnologia, a arte a moral e a
biologia desses seres sempre ausentes – como um
Godot interestelar.
“Tutancâmon fora enterrado ainda ontem – há
menos de quatro mil anos; Rama talvez fosse mais
velho que a humanidade”, constata Norton, inca-
paz de desvendar por que aquela estrutura passa-
ria tão perto da Terra sem ao menos se dar ao
trabalho de prestar atenção na humanidade, como
se o Sol fosse apenas um ponto de parada para
corrigir a rota e nós não passássemos de insetos
curiosos – premissa semelhante à de Piquenique na
Estrada, dos irmãos Bóris e Arkady Strugatsky.
Clarke sempre nutre em suas obras um senso de
quão diminuta a humanidade de fato é diante do
universo. É assim em O Fim da Infância, em que ele
efetivamente nos compara a crianças no teatro do
cosmos, creditando a origem das religiões ao nos-
so pavor diante de alienígenas de um passado re-
moto. É assim também em 2001: Uma Odisseia no
Espaço, em que nos retrata como os macacos que
somos, manuseando ferramentas rudimentares,
seja um osso ou uma espaçonave – ambos equiva-
lentes frente ao misterioso monólito. Para Clarke,
“qualquer tecnologia suficientemente avançada é
indistinguível de magia”, e ele aborda isso por
meio do que está além da compreensão humana.
Não poderia ser diferente em Encontro com Rama.
A indiferença de Rama pelos humanos e suas
tentativas frustradas de desvendá-lo fala mais alto
que qualquer resposta que pudéssemos obter.
Clarke explora as implicações científicas, filosófi-
cas e religiosas do contato alienígena sugerindo
que a humanidade não é importante o suficiente
para ser percebida – pequenez que pode ser uma
dádiva. Por isso, ele crava: “Existem duas possibili-
dades: Ou estamos sozinhos no universo, ou não
estamos. Ambas são igualmente aterrorizantes”.

CLARKE E A


CURIOSIDADE


HUMANA


ENCONTRO
COM RAMA
AUTOR: ARTHUR C. CLARKE
TRADUÇÃO: SUSANA L. DE
ALEXANDRIA
EDITORA: ALEPH
288 PÁGS., R$ 54,90

SEVER STUDIO

É DIFÍCIL SER DEUS
AUTORES: ARKADY E
BORIS STRUGATSKY
TRADUÇÃO:
TATIANA LARKINA
EDITORA: RÁDIO LONDRES
224 PÁGS., R$ 72,50

Medieval. Vilarejo observado pelos cientistas na adaptação da obra, dirigida em 2013 pelo russo Aleksei German
EDITORA RÁDIO LONDRES

Rama. Escrita no Sri Lanka, obra tem inspiração na mitologia hindu

%HermesFileInfo:E-3:20200315:
O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 15 DE MARÇO DE 2020 Aliás E3

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