O Estado de São Paulo (2020-03-15)

(Antfer) #1
Martim Vasques da Cunha ]

Diz a lenda que Terrence Malick, antes de ser o
cineasta recluso de A Árvore da Vida (2011), encon-
trou-se nos anos 1960 com ninguém menos que o
filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) na
famosa cabana da Floresta Negra. A intermediária
desta reunião teria sido Hannah Arendt (1906-
1975), sua ex-aluna e quem melhor dissecou as “ori-
gens do totalitarismo” para o século 20.
Heidegger não só foi o responsável por Ser e Tem-
po (1929), um tomo revolucionário no pensamen-
to europeu que chocou as cabeças pensantes, mas
infelizmente também contribuiu para a sedimen-
tação do nazismo na cena intelectual alemã. Sem
nenhum demérito da riqueza filosófica da sua
obra, o fato é que Heidegger, no dia 21 de abril de
1933, fez uma enorme política de bastidores acadê-
micos para conseguir a vaga de reitor
na Universidade de Freiburg; no dia 1
de maio, filiou-se ao partido nazista.
Já Arendt, com a força moral que lhe
era peculiar, não aceitou a postura do
antigo mestre – e cortou relações com
ele de imediato.
Ainda assim, ela ajudou o jovem Ma-
lick a entrar em contato com Heideg-
ger. Naquela época, ele estudava filo-
sofia em Harvard, era considerado um
dos melhores alunos do professor
Stanley Cavell e seu objeto de pesqui-
sa era justamente os escritos do ermi-
tão ansioso para apagar do currículo o
momento tenebroso na década de 1930. Nada fi-
cou registrado desta conversa; o que temos como
documento daqueles anos é uma introdução de
dez páginas, redigida por Malick, para uma tradu-
ção que ele fez de Sobre a Essência do Fundamento –
e a chave para compreender os mistérios do novo
filme do agora celebrado diretor, Uma Vida Oculta.
Não seria um exagero afirmar que esta película é
um acerto de contas de Terrence Malick com a
filosofia (e a presença) de Heidegger. Ele já fez isso
antes, a começar com A Árvore da Vida, no qual
meditava sobre a perda familiar e a criação do uni-
verso, passando por Amor Pleno (2013) e Cavaleiro
de Copas (2016), cujos temas eram seus relaciona-
mentos amorosos e profissionais, até De Canção
em Canção (2017), o qual refletia obliquamente
sobre o período em que Malick desapareceu do
mundo de Hollywood após ter feito dois filmes de

sucesso – Badlands (1973) e Cinzas do Paraíso
(1978). Essa sequência forma também uma es-
pécie de autobiografia inspirada nas Confissões de
Santo Agostinho, um mergulho na consciência fe-
rida do seu autor para que ele enfim descubra uma
luz a resplandecer nas trevas.
Uma Vida Oculta – título extraído de um trecho
do romance Middlemarch (1872), de George Eliot –
está mais próximo de outro tratado teológico de
Agostinho: A Cidade de Deus. Baseado na história
de Franz Jägerstätter (August Diehl), um austría-
co católico que decidiu não jurar lealdade a Hitler
durante a 2.ª Guerra Mundial, e, portanto, foi pre-
so e condenado à morte pelo governo nazista, Ma-
lick vai além das habituais (e necessárias) denún-
cias contra o totalitarismo – ou até mesmo dos
elogios sobre os santos de consciência (o caso céle-
bre aqui é o de Sir Thomas More) – para retornar a
um antigo tema seu: o de que o mun-
do em que vivemos está em perma-
nente estado de agonia.
Foi Heidegger quem o apresentou
a essa obsessão, ao lermos a introdu-
ção escrita por Malick no passado.
No texto, ele comenta que o mundo
teria “exatamente a mesma natureza
do Dasein [conceito fundamental na
obra heideggeriana]”, o que tornaria
impossível distinguir uma coisa da
outra, transformando ambos em um
conceito que nos impediria desco-
brir a “totalidade das coisas”. Conse-
quentemente, ficaríamos abandona-
dos nos termos os quais deveríamos entendê-los.
Na prática, isso significa que o mundo não é ape-
nas enigmático; é impenetrável, incapaz de se en-
contrar um sentido objetivo nele, pois a sua con-
cretude dolorosa é tamanha que cada um tem a
própria versão do que ele seria, criando uma confu-
são com um método todo peculiar que seria resol-
vida com a descoberta de um “fundamento”.
Contudo, enquanto vivermos nesta terra pere-
grina, o próprio “fundamento” continua oculto,
tanto por causa da linguagem que usamos como
por causa do conceito a ser utilizado para interpre-
tar o lugar habitado por nós. Aqui, Malick incorpo-
ra Agostinho – um pensador igualmente caro a
Heidegger – no drama de Franz Jägerstätter: o dile-
ma de consciência do austríaco é a arena do comba-
te entre a cidade dos Homens e a cidade de Deus,
um combate que também molda a história huma-

na em seus momentos mais terríveis, cujo resulta-
do parece ser a aniquilação da dignidade do ser
humano diante da máquina do Estado moderno,
mas que no final revela ser justamente a vida ocul-
ta a iluminar a agonia do mundo.
O “fundamento”, se há algum, é o mistério dolo-
rido da graça que se torna a única maneira para
combater a tirania moderna que deseja sufocar a
consciência individual. Em Uma Vida Oculta, ela é
representada pela mulher de Franz, Fani (Valerie
Pachner), que suporta todas as iniquidades do po-
vo da vila onde moram, Radegund, completamen-
te cooptada pelo nazismo – entre elas ser tratada
como uma traidora da pátria a chutes, pontapés e
cusparadas, enquanto seu marido tenta manter a
sanidade do espírito na prisão em Berlim. A graça
espera, anseia, sofre e, quando o irremediável acon-
tece, não há outra escolha a fazer exceto perguntar
às montanhas se algum dia ela se encontrará com o
esposo em um lugar onde “não há mais mistérios”.
É neste ponto que Terrence Malick rompe defi-
nitivamente com seu antigo mestre, Martin Hei-
degger. Para o cineasta, mesmo com o mundo à
míngua, ainda é possível encontrar um sentido,
um “fundamento” objetivo nele. Apresenta-se
uma divisão clara entre o professor e o discípulo,
especialmente no modo como ambos percebem a
antiga tensão entre filosofia e tirania. Apesar do
filósofo alemão jamais ter se dito algo explícito
sobre o assunto em sua obra, os seus atos biográfi-
cos mostraram que, de alguma forma, o eros filo-
sófico tinha uma íntima conexão com o eros tirâni-
co. Quem percebeu isso como poucos foi justa-
mente um dos antigos alunos de Heidegger, Leo
Strauss, que, em uma resposta cifrada a outro con-
temporâneo também fascinado pelas ideias de Ser
e Tempo, Alexandre Kojève, escreveu que “aparen-
temente afastamo-nos do Ser e aproximamo-nos
da Tirania porque vimos que aqueles que não têm
coragem para enfrentar a questão da Tirania, e que
portanto ‘eles próprios servindo obsequiosamen-
te enquanto dominam arrogantemente sobre os
outros’, também foram forçados a se desviar da
questão do ser, precisamente porque nada mais
fizeram que falar do Ser”.
Ao pensar sobre o conceito do mundo, Heideg-
ger esqueceu-se da verdadeira agonia que o totali-
tarismo causou no Ocidente. Malick restaura isso
ao relembrar que a imitação do Cristo praticada
por Franz e Fani Jägerstätter ilumina o segredo
que o ser fundamentou nessas vidas interrompi-
das pelo trem feroz da abstração o qual uma vítima
dessa mesma época, Etty Hillesum, definiu como
o verdadeiro mal de todos nós. Para ela, apreende-
mos a vida “em fórmulas pessoais, abraçando to-
dos os fenômenos com nossas mentes, em vez de
se deixar abraçar pela vida. Você sempre quer re-
criar o mundo, em lugar de aproveitar o mundo
como ele é. Há algo de despótico nisso”.
Claro que há, querida Etty. Não compreender
que tanto a tirania como a liberdade interior que
se abre para a transcendência estão nas vidas ocul-
tas das nossas consciências, e jamais no ruído do
tempo histórico, é o mesmo que permitir o nasci-
mento de um poder a nos dominar por completo.
Trata-se daquilo que o ensaísta Simon Leys chama-
va de “falha da imaginação” porque evitamos per-
ceber que há outras maneiras de se mudar o curso
de uma nação, mesmo quando tudo parece desa-
bar. A resistência de Franz Jägerstätter, filmada
com maestria por Terrence Malick, é a prova de
que precisamos somente vislumbrar que, confor-
me diz Kierkegaard (não à toa citado na epígrafe
do roteiro de Uma Vida Oculta), quando “o tirano
morre, o seu reinado acaba; o mártir morre, e o seu
reino apenas começou”. Se guardarmos isso no
coração, o mundo se iluminará por completo dian-
te dos nossos olhos, por mais que as tiranias do
passado, do presente e do futuro façam de tudo
para que aconteça o contrário.

]
É AUTOR DE ‘A TIRANIA DOS ESPECIALISTAS’
(CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2019)

Como o filme
‘Uma Vida
Oculta’ retira
referências da
teologia de
Santo Agostinho
e da filosofia de
Heidegger para
refletir a respeito
da tirania

A AGONIA DE


MALICK


Aliás, Cinema


20TH CENTURY FOX

Reflexão. Brad Pitt
em ‘A Árvore da
Vida’ (2011), drama
familiar de Malick

Mártir. Em cena de ‘Uma Vida Oculta’, de Terrence Malick, August Diehl (D) interpreta Franz Jägerstätter, que se recusou a lutar pelo exército nazista, foi executado e beatificado


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E4 Aliás DOMINGO, 15 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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