O Estado de São Paulo (2020-03-15)

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H8 Especial DOMINGO, 15 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Tubarões,


inundação,


vírus e o governo


Carlos Pereira

E


m julho de 1916, a costa leste dos
EUA, especialmente Nova Jersey, foi
acometida por uma série de ataques
de tubarão que ocasionaram a morte de
vários americanos. Esses eventos inespera-
dos alcançaram grande repercussão no no-
ticiário e considerável sofrimento emocio-
nal, especialmente da população das comu-
nidades costeiras. O então presidente dos
EUA, Woodrow Wilson, concorria à reelei-
ção no fim daquele ano. Embora o presi-
dente Wilson não tenha tido responsabili-
dade direta pelos ataques aleatórios de tu-
barão, estudos (Achen e Barthels, 2012)

identificaram uma forte correlação entre
aqueles ataques e a significativa redução
no número de votos a favor da reeleição
do presidente naquela região em relação à
quantidade de votos no pleito de 1912,
quando Wilson foi eleito presidente pela
primeira vez.
Por outro lado, o devastador desastre
provocado pelas inundações que acontece-
ram na Alemanha em 2002 trouxe conse-
quências bem distintas para o seu gover-
nante. O governo ofereceu ajuda monetá-
ria imediata e, estrategicamente, organi-
zou uma visita do chanceler, Gerhard Sch-
röder, usando botas de borracha, às vilas
inundadas. Esta atitude foi interpretada
pela mídia como símbolo da credibilidade
do chanceler como gerente de crises. Após
as inundações e, pelo menos em parte pelo
que foi percebido como bem-sucedida ges-
tão de desastres, o governo ganhou apoio
popular e venceu as eleições federais vá-
rios meses depois.
Desastres nem sempre têm impacto po-
lítico negativo. Dependendo do contexto,

as consequências para os líderes políticos
também podem ser positivas. Se o gover-
no de plantão for capaz de liderar com au-
toridade moral e ofertar respostas adequa-
das ao problema, é possível que desastres
se transformem em janelas de oportunida-
de para galvanizar apoio e conseguir im-
plementar reformas.
Albrecht (2017) argumenta que a mídia
exerce papel relevante nas consequências

políticas dos desastres. Quanto maior for
o tempo de cobertura e a exposição de fra-
gilidades organizacionais das estruturas
governamentais para lidar com as conse-
quências do desastre, maiores serão as
chances de impactos negativos para o go-
verno de plantão.

Especificamente em relação aos efeitos
políticos do coronavírus para a gestão de
Jair Bolsonaro, é muito difícil fazer previ-
sões no momento atual. Isso ocorre por-
que vários aspectos importantes ainda são
desconhecidos, tais como a extensão da
contaminação, a gravidade dos casos, o nú-
mero de mortos, o tempo de duração da
epidemia e a eficácia das respostas ofereci-
das pelo governo.
Mas, diante das dificuldades governati-
vas enfrentadas até o momento pelo gover-
no Bolsonaro, que é minoritário e tem de-
senvolvido uma relação adversarial com o
Legislativo e com a mídia, é pouco prová-
vel que essa pandemia seja por ele aprovei-
tada como uma oportunidade para imple-
mentação de mudanças.
O governo corre o risco de ser visto co-
mo responsável pelos efeitos da pande-
mia. A dúvida que fica é em relação ao ta-
manho do dano, pois a confiança social
tende a diminuir significativamente, espe-
cialmente quando a epidemia começar a
causar fatalidades.

IMPACTO NA POLÍTICA


de atos discriminatórios contra chineses. Em
algumas cidades da Itália foram registrados epi-
sódios de violência, mas os casos não aumenta-
ram.






É possível tomar medidas como as da
China em um país democrático?
De acordo com Donald G. Mc-
Neil Jr, repórter que há anos cobre epide-
mias nos EUA, ouvido pelo New York Times, a
China tomou medidas extremas, o que possi-
bilitou a diminuição da propagação da doen-
ça nos últimos dias no país. Entre as medidas
estão a separação de famílias quando um inte-
grante era confirmado com coronavírus, a
verificação da temperatura de todos os que
entravam no sistema de transporte – se uma
pessoa estivesse com febre era retirada do
local e levada para avaliação – e a criação de


hospitais para tratar os doentes. Essas medi-
das até podem ser tomadas em um país de-
mocrático, segundo McNeil Jr., mas com cer-
teza haveria mais resistência da população
com a diminuição de liberdades.





Por que a taxa de letalidade é diferen-
te entre países, como ocorre entre
Itália e Coreia do Sul, por exemplo?
A letalidade da doença na Itália é mais de oito
vezes a observada na Coreia do Sul. Enquanto
no país europeu, até a quinta-feira, dia 12, já
morreram 6,21% das pessoas confirmadas com
a covid-19, no asiático, a porcentagem de óbi-
tos foi de 0,7%, segundo dados divulgados pe-
los departamentos de saúde dos dois países.
Fatores como a quantidade de idosos no país –
a Itália tem uma população mais envelhecida
do que a Coreia – e a estrutura dos sistemas de

identificação de novos casos e assistência aos
doentes ajudam a explicar essa diferença signi-
ficativa.





Por que a Itália está na situação
atual?
Fatores como a quantidade de ido-
sos no país, a estrutura dos sistemas de identifi-
cação de novos casos e a assistência aos doentes
ajudam a explicar a atual situação da Itália. Co-
mo naquele país o número de casos cresceu mui-
to rapidamente, e muitas pessoas com quadro
severo passaram a buscar atendimento de saúde,
houve sobrecarga do sistema, o que também po-
de ter contribuído para o aumento da letalidade.





O que significa o lockdown decretado
na Itália?
Com essa medida, atividades públi-

cas foram canceladas, as pessoas são orienta-
das a trabalhar de casa e evitar aglomerações,
principalmente a população idosa.





Países mais isolados, como Coreia do
Norte e Cuba, estão mais protegidos
do novo coronavírus?
Não necessariamente. Em Cuba, turistas
que chegaram da Itália contaminados com o
coronavírus estão sob vigilância sanitária
porque não apresentaram sintomas da doen-
ça. O governo da ilha tem um plano de pre-
venção e controle que mandará os doentes
para o Hospital Militar de Villa Clara. Na
Coreia do Norte, um grupo de estrangeiros
foi mantido em quarentena por mais de um
mês, medida que foi criticada por alguns. Os
norte-coreanos também mantêm milhares
dos seus cidadãos em quarentena domésti-

ESPECIAL CORONAVÍRUS


Sem diversão. Espectador senta sozinho em ginásio após o cancelamento de partida de basquete universitário nos EUA. Jogos e


eventos esportivos foram cancelados ou tiveram portões fechados, incluindo os realizados no Brasil


É pouco provável que essa pandemia
seja aproveitada pela gestão
Bolsonaro como uma oportunidade
para implementação de mudanças
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