O Estado de São Paulo (2020-03-16)

(Antfer) #1

Luiz Carlos Merten


A se julgar por autores como Ser-
gei Loznitsa, a Rússia de Vladi-
mir Putin é um horror. A última
do czar moderno é incentivar
campanha para zerar seus 16
anos de governo, para que ele per-
maneça no poder. Coincidência,
ou não, tem havido um floresci-
mento do cinema de gênero no
país e, depois de A Dama do Espe-
lho – O Ritual das Trevas
e A Noiva ,
surge A Maldição do Espelho , já em
cartaz no Brasil. Só para constar,


The Mirror Crack’d/A Maldição do
Espelho já era o título de um mis-
tério adaptado de Agatha Chris-
tie, em 1980.
O longa de Aleksander Domo-
garov prossegue com o conceito,
já expresso em O Ritual das Tre-
vas , de que espelhos podem ser o
portal para os mortos e entrada
para o universo da Rainha de Es-
padas. Casal de irmãos é enviado
para internato após a morte da
mãe. O internato fica na mansão
que a Rainha habitava e um dese-
jo, formulado diante do espelho,
faz com que ela ressurja para ins-
taurar o reinado do terror.
Casa amaldiçoada e entidade
maligna estão longe de ser novi-
dade no cinema de gênero. O fil-
me tem sido alvo de chacota. Sé-
rio candidato a pior do ano, assus-
ta mais pela mediocridade. O co-

meço até que levanta certas ques-
tões – a falta de conexão emocio-
nal entre os irmãos, por exem-
plo. Numa cena aflitiva, a garo-
ta tenta fugir e o irmão está se
afogando no lago. Como foi pa-
rar ali? Na segunda ou terceira

vez que o grande susto é um re-
flexo no espelho – que desapare-
ce em seguida –, o espectador,
precavido, não se impressiona
mais. Puro déjà-vu.
O aspecto mais curioso de A
Maldição do Espelho é justamen-

te esse. A lenda original pode
ser russa, mas os códigos – e a
linguagem – são hollywoodia-
nos. O próprio cinema brasilei-
ro de terror enfrenta esse desa-
fio. Ser original, não apenas no
tema. O fato de A Rainha de Es-

padas ser dublado em inglês
complica ainda mais. Não só a
falta de sincronia dos movimen-
tos labiais é risível, como fica
com cara de filme B (ou C, ou D)
americano. O twist final abre ca-
minho para uma sequência.

Cinema. ‘Doce Entardecer na Toscana’ fala dos impasses do nosso tempo a


partir da personagem de uma poeta polonesa que se recusa a receber o Nobel


Luiz Zanin Oricchio


Os mais experientes hão de lem-
brar que Volterra é a cidade tos-
cana onde se passa Vagas Estre-
las da Ursa (1965),
a pungente
tragédia familiar dirigida por Lu-
chino Visconti. Volterra é tam-
bém a comuna onde vive a escri-
tora Prêmio Nobel Maria Linde
(Krystyna Janda), que há mui-
tos anos buscou na Itália a paz
não encontrada na Polônia, sua
terra natal. O filme, a exemplo
do de Visconti, ostenta um enga-
nador título poético, Doce Entar-
decer na Toscana,
já em cartaz no
Brasil, e é dirigido pelo também
polonês Jacek Borcuch.
Convém lembrar que Krysty-
na Janda é atriz fetiche de um
diretor como Andrzej Wajda e
um ícone na Polônia. Tem po-
tência de leoa na tela. De fato,
ela surge como uma força da na-
tureza no papel da poeta Maria
Linde, que festeja a notícia de
ter sido agraciada com o maior
prêmio mundial da literatura.
Independente, mandona e au-
tossuficiente, ela é um sol em
torno do qual gravitam planetas
plebeus, como seu marido italia-
no (Antonio Catania), filhos e
netos. Quem orbita mais de per-
to do astro Maria é o jovem egíp-
cio Nazeer (Lorenzo de Moor),
dono de um restaurante local e
com idade para ser neto da poe-
ta. Aos 60 anos, aproximada-
mente, Maria é dona do seu des-
tino e da sua sexualidade.
A paisagem é bucólica, a famí-
lia vive num aprazível sítio nos
arredores de Volterra, mas as


autoridades policiais advertem
para a presença de imigrantes,
eventualmente perigosos, ron-
dando nas imediações. A Itália,
que no passado mandou popula-
ções inteiras para os quatro can-
tos do planeta, hoje teme e hos-
tiliza quem busca refúgio em
seu território. Um contradição
histórica que tem virado tema
de muitos filmes, a começar pe-
lo grande L’America – Tempo de
Chegar, de Gianni Amelio.
A tensão sobe quando um dos
netos de Maria desaparece sem
mais nem menos. Cresce mais
ainda quando, homenageada
pela cidade, Maria faz um dis-
curso considerado impertinen-
te ao receber a distinção do mu-
nicípio. Logo ela descobre que a
sinceridade talvez não seja uma
qualidade das mais apreciadas
em nosso tempo. Menos ainda
a originalidade. Tivesse se limi-
tado a palavras protocolares,
aquelas que nada dizem, Maria
teria evitado um caminhão de
problemas. Mas resolveu co-
mentar, a seco, e de forma ines-
perada, um ato terrorista recen-
te, que havia indignado as pes-
soas de bem.
Essa história um tanto estra-
nha e exemplar é bem conduzi-
da pelo diretor Jacek Borcuch.
Vale-se do carisma de Krystyna
Janda para encarnar uma mu-
lher admirável, porém represen-
tante de tudo o que não se tole-
ra hoje. Ainda menos no am-
biente provincial em que resol-
veu viver. Sem dúvida, há um
preço a pagar pela independên-
cia de espírito. Sempre houve.

Mas existem épocas em que a
opinião pública, digamos as-
sim, se considera no direito de
julgar e condenar condutas
alheias com maior força e vee-
mência. A nossa é uma delas.
Doce Entardecer na Toscana
passa por vários temas interes-
santes, entre os quais a libera-
ção do desejo feminino. E isso
numa mulher tecnicamente
na chamada terceira idade,
um sujeito ainda meio tabu
das nossas artes, que prefe-
rem circunscrever o domínio
do sexo aos jovens.
Também se coloca um limite
nessa idealizada postura liberal
do presente, ao fazer Maria en-
frentar um peso desproporcio-
nal por sua disposição de usar o
corpo e a mente como bem dese-
ja. Ela parece seguir o “manda-
mento” famoso de Jacques La-
can: não se deve renunciar ao
seu desejo. Mas este é um cami-
nho difícil, como sabia o psica-
nalista. Troca-se a neurose pe-
la condenação alheia. Com al-
guma vantagem: melhor a desa-
provação externa que a culpa
interiorizada por não fazer o
que se deseja.
Maria é suficientemente inde-
pendente para tomar um aman-
te bem mais jovem do que ela e
deixar para o marido um bilhete
tão sutil quanto sincero. Ela es-
creve ao companheiro que ele,
depois de tantos anos de casa-
mento, havia se tornado um ser
silencioso. Desaparecera. Mo-
via-se pela casa com seus chine-
los confortáveis de modo que
ninguém o ouvisse. E, dessa for-

ma, sumira de maneira discreta
do cotidiano de Maria. “Volte a
fazer ruído, eu te suplico”, ela
escreve. Existe maneira mais in-
cisiva – e poética – de queixar-
se do tédio matrimonial?
De forma sutil, Doce Entarde-
cer na Toscana é também uma
reflexão sobre as relações entre
a arte e a política. Ao dispensar
o Prêmio Nobel, como fizera
em 1964 o filósofo francês Jean-
Paul Sartre, Maria recusa-se a
se transformar em instituição e
medita sobre a dimensão políti-
ca de sua arte. Reflete: o que res-
ta de poder à poesia num mun-
do convulsionado e à beira do
colapso? (E olhe que, na época
em que o filme foi feito, nem se
cogitava do surgimento de uma
pandemia viral que, para além
dos seus óbvios desafios médi-
cos, encerra toda uma simbolo-
gia ainda por estabelecer acerca
do crepúsculo de uma era.)
De toda forma, Maria inves-
te-se dessa função um tanto sa-
crificial do artista, a de apontar
o mal-estar profundo do seu
tempo, custe o que custar. Imo-
la-se em nome do que entende
por justo. Fala o que ninguém
deseja ouvir, ou ler, ou saber. O
público leigo respeita o artista
em sua glória, como alguém que
“chegou lá” e recebe as homena-
gens do mundo. Espera-se dele
o comportamento que seria o
de qualquer um de nós caso ti-
vesse alcançado o ápice – o aco-
lhimento generoso da fama e a
partilha dessa vitória com os
que o aplaudem. Maria encarna
a recusa a essa posição simbóli-

ca do artista burguês, consagra-
do. Ela prefere apontar as maze-
las a receber a homenagem e
curvar-se à plateia. Seu ato de
rejeição se reveste de uma radi-
calidade política pouco usual.
Por isso mesmo, impossível de
ser bem recebida.
Se Maria lamenta a monoto-
nia do cotidiano com o marido,
protesta também contra os hu-
mores de um mundo que se tor-
nou sem sentido. A tal ponto
que um ato terrorista pode lhe
parecer algo como um grito de
alerta, e mesmo uma “obra de
arte”. Como se, em tempos de
desespero, a arte propriamente
dita desaparecesse em face da
ação direta, violenta ou não. Pe-
lo menos é assim que a sensibili-
dade poética de Maria interpre-
ta. Ela fala do continente outro-
ra considerado o berço da civili-
zação: “Mas hoje a Europa tal-
vez mereça ruir sob o peso de
sua própria impotência”, refle-
te, para pasmo da plateia. E con-
clui seu discurso de forma incisi-
va: “Não acredito mais no peso
das palavras. Talvez devêsse-
mos nos exprimir de maneira di-
ferente: pela desobediência”.
A figura paradoxal de Maria
Linde faz de Doce Entardecer na
Toscana um filme de ideias. Lon-
ge de ser perfeito, tem o mérito
de manter a ambiguidade em
torno dessa poeta laureada
com vocação de artista trágica.
E lembra que um entardecer,
ainda que doce e belo, significa
também o fim de uma jornada,
término de um dia que não re-
torna jamais.

Trágico fim


de jornada


Sério candidato a pior do


ano, assusta mais pela


mediocridade do que


pela história de irmãos
enviados a internato


‘A Maldição do


Espelho’ é terror


risível de Loznitsa


Face da inocência. O terrível fantasma da Rainha de Copas vai ressurgir em colégio instalado em mansão do século 19

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ARTEPLEX FILMES

Krystyna
Janda.
Como a
irreverente
escritora
Maria Linde

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C6 Caderno 2 SEGUNDA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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