O Estado de São Paulo (2020-03-16)

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A6 Política SEGUNDA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Nancy Bellei, professora de infectologia da Unifesp e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia


‘Cabe às autoridades dar o exemplo’


Camila Turtelli
Daniel Weterman / BRASÍLIA


O presidentes da Câmara, Ro-
drigo Maia (DEM-RJ), e do Se-
nado, Davi Alcolumbre
(DEM-AP), criticaram ontem
a participação do presidente
Jair Bolsonaro nos atos pró-
governo e contra o Congres-
so e o Supremo Tribunal Fe-
deral (STF). Maia chamou de
“atentado à saúde pública”,
enquanto Alcolumbre classi-
ficou o comportamento co-
mo “inconsequente” e um
“confronto” à democracia.

“Por aqui, o presidente da Re-
pública ignora e desautoriza o
seu ministro da Saúde e os técni-
cos do ministério, fazendo pou-
co caso da pandemia e encora-
jando as pessoas a sair às ruas.
Isso é um atentado à saúde pú-
blica que contraria as orienta-
ções do seu próprio governo. A
economia mundial desacelera
rapidamente. A economia brasi-


leira sofrerá as consequências
diretas”, disse Maia.
O deputado citou ainda a cri-
se econômica global. “O mun-
do está passando por uma crise
sem precedentes. O Banco Cen-
tral americano e o da Nova Ze-
lândia acabam de baixar os ju-
ros. Na Alemanha e na Espanha,
os governos decretam o fecha-
mento das fronteiras”, afirmou

o presidente da Câmara. “Há
um esforço global para conter o
vírus e a crise. O presidente da
República deveria estar no palá-
cio coordenando um gabinete
de crise para dar respostas e so-
luções para o País. Mas, pelo vis-
to, ele está mais preocupado em
assistir às manifestações que
atentam contra as instituições
e a saúde da população”, decla-
rou. Para Maia, a situação é preo-
cupante. “Somos maduros o su-
ficiente para agir com o bom
senso que o momento pede.”
Alcolumbre também mencio-
nou o esforço mundial para con-
ter o coronavírus. “Com a pan-
demia do coronavírus fechan-
do as fronteiras dos países e as-
sustando o mundo, é inconse-
quente estimular a aglomera-
ção de pessoas nas ruas”, afir-
mou o senador, em nota. “A gra-
vidade da pandemia exige de to-
dos os brasileiros, inclusive do
presidente da República, res-
ponsabilidade”, escreveu.

No fim do dia, Bolsonaro co-
mentou o assunto em uma en-
trevista à CNN Brasil e rebateu
Maia e Alcolumbre. “Gostaria
que Maia e Alcolumbre saíssem
às ruas como eu. Saiam às ruas e
vejam como vão ser recebidos”,
disse o presidente. Apesar da de-
claração, Bolsonaro afirmou
que está disposto a se reunir
com os dois parlamentares para
alinhar uma “pauta de interesse
da população”. “Estão fazendo
críticas. Estou tranquilo. Espe-
ro que não queiram fazer algo
belicoso”, disse o presidente.

‘Não ajuda’. Parlamentares de
partidos de direita e de centro
também criticaram a atitude de
Bolsonaro. “Deixem a fotogra-
fia e a história falarem por si”,
afirmou a presidente da Comis-
são de Constituição e Justiça
(CCJ) do Senado, Simone Te-
bet (MDB-MS). Para o líder do
MDB no Senado, Eduardo Bra-
ga (AM), a conduta do presiden-
te “não ajuda neste momento”
de “tantos desafios”.
O líder do PSD no Senado, Ot-
to Alencar (BA), classificou o
comportamento do presidente

ontem como o de um “bufão”.
“Uma palhaçada com uma coi-
sa tão grave como essa”, disse o
parlamentar.
Na avaliação do líder do PSB
na Câmara, deputado Alessan-
dro Molon (RJ), a participação
de Bolsonaro na manifestação
representa uma “ameaça à vida
das pessoas”. A líder do PSL na
Casa, deputada Joice Hassel-
mann (SP), disse que a atitude
do presidente é “incompreensí-
vel”. “Não dá pra entender o
comportamento irracional do
presidente”, declarou ela.

lQuais são os riscos de uma
pessoa que deveria estar em iso-
lamento ter esse contato com os
manifestantes?
Não estou por dentro dos exa-
mes dele, mas se ele é um con-
tato próximo de um caso con-
firmado, neste momento que
estamos em um esforço máxi-
mo de contenção do vírus pa-
ra evitar uma situação pior,
acho que, em primeiro lugar,
como autoridade do País, se-
ria importante ele dar esse
exemplo de se resguardar. O
ideal seria ele se manter em


quarentena. Tivemos reunião
em Brasília, mais de 50 espe-
cialistas, e chegamos num con-
senso de que nesse momento
a gente deveria endurecer a
vigilância e que os contatos
domiciliares de pessoas positi-
vas e de viajantes internacio-
nais deveriam fazer um isola-
mento voluntário. O segundo
ponto é que eu acho que nós
temos que ser os primeiros
que dão exemplo para a popu-
lação. Se a gente não dá exem-
plo, fica muito difícil explicar
uma determinada situação.

lFica difícil para a população
acreditar na seriedade da crise?
Sim, fica difícil para a popula-
ção aderir, achar que é sério,
achar que tem importância.
E nesse momento, em
vários Estados, nós es-
tamos pedindo um pre-
ço altíssimo para crian-
ças da rede pública que
vão ficar sem aula. Os
pais vão ter que se
virar para trabalhar,
há um impacto eco-
nômico, crianças
se alimentam na

escola, crianças têm vulnerabi-
lidade social. Nesse contexto,
todos nós temos que manter a
coerência. Cabe a nós, pes-
soas públicas, profissionais da
saúde, pessoas de agências,
dar o exemplo de coerência.

lEntão mesmo que ele não esti-
vesse classificado como caso
suspeito, seria problemática es-
sa atitude pelo mau exemplo?
É, as crianças vão ficar sem
aula, os pais vão ter que se
virar e alguns em manifes-
tação? Quer dizer: uns
pagam o preço e outros
mantêm todas as ati-
vidades?

lQuanto às pes-

soas que tiveram contato com
ele, tem risco de transmissão
caso ele esteja contaminado?
A gente ainda não sabe para o
coronavírus o potencial de
transmissibilidade de uma
pessoa sem sintomas. Agora,
tudo que a gente não sabe, a
gente deve prevenir e não es-
perar a experiência demons-
trar. Se essa transmissão for
possível como é possível para
influenza (gripe) , eu não pre-
ciso nem tossir nem espirrar.
Se eu estiver do lado de uma
pessoa com influenza e falar,
eu transmito para ela. Se isso
for possível para coronavírus,
ele pode transmitir. Então
não é uma atitude de bom
senso. / FABIANA CAMBRICOLI

Apesar da recomendação do Mi-
nistério da Saúde para evitar a
disseminação do novo coronaví-
rus, manifestantes foram às
ruas protestar contra o Con-
gresso e defender o governo de
Jair Bolsonaro. Em São Paulo,
um grupo vestindo verde e ama-
relo se concentrou na Avenida
Paulista. O único caminhão de
som presente exibia o cartaz do
Movimento Direita Conserva-
dora. Os manifestantes pe-
diam, além do fechamento do
Congresso, a prisão dos presi-
dentes da Câmara, Rodrigo
Maia (DEM-RJ), e do Supremo
Tribunal Federal, ministro Dias
Toffoli, e do governador de São
Paulo, João Doria (PSDB).
“Quem tem medo do ‘comu-
navírus’?”, gritavam os presen-
tes. “O carnaval eles não tenta-
ram impedir, a parada gay tam-
bém não”, discursou um dos lí-
deres do movimento no carro
de som. A maioria dos presen-
tes aplaudia quando a epidemia
do coronavírus era chamada de
“farsa” e poucos usavam másca-


ra cirúrgica. “Eu e a minha espo-
sa ficamos por meses em 2016
no acampamento pelo impeach-
ment da Dilma Rousseff, como
integrantes do movimento
Avança Brasil”, afirmou Rodri-
go Ikezili, um dos manifestan-
tes. Havia, ainda, gente egressa
do PSL que deixou a sigla junto
com Bolsonaro. “Saí e agora es-
tou no PRTB junto com o gene-
ral Mourão”, disse Giovani Fal-
cone, pré-candidato a vereador
de São Caetano do Sul.
De acordo com Gabriel Ya-
cob, um dos coordenadores do
Movimento Direita Conserva-
dora, o grupo foi informado de
que terá de pagar multa por co-
locar um caminhão de som na
Avenida Paulista. Na sexta-fei-
ra, o governo de São Paulo e a
Prefeitura da capital cancela-
ram eventos públicos com mais
de 500 pessoas por causa do co-
ronavírus. A Polícia Militar não
divulgou estimativa de partici-
pantes do ato de ontem.
Em Brasília, cujo ato teve a
participação de Bolsonaro, fo-
ram levadas faixas “Fora Maia”,
“Fora STF” e “SOS Forças Ar-
madas”. O presidente Câmara
também foi um dos principais
alvos em Belo Horizonte, onde
foi chamado de “chantagista”
pelos manifestantes. Houve re-
gistros de protestos ainda em

Belém, Maceió, Curitiba, Reci-
fe, Fortaleza, Manaus, Porto
Alegre e no interior paulista.
No Rio, os manifestantes que
ignoraram os pedidos para evi-
tar aglomerações e se reuniram
em um quarteirão na praia de
Copacabana. A maioria dos pre-
sentes era idosa, faixa etária
mais suscetível às consequên-
cias do novo coronavírus. Em
cima do carro de som, o deputa-

do Otoni de Paula (PSC-RJ) mi-
nimizou os possíveis efeitos do
coronavírus. “O verdadeiro co-
ronavírus que mata é a corrup-
ção nesse país”, disse.

Assinaturas. Em um dos car-
ros de som, um manifestante
tentava convencer os presentes
a assinar fichas de filiação ao
Aliança Pelo Brasil, partido que
Bolsonaro pretende criar e está
em busca de apoios. Um repre-
sentante do Movimento Brasil
Conservador chamou o gover-
nador Wilson Witzel (PSC) de
“traidor” e pisou numa bandei-
ra com o rosto dele. / PAULA
REVERBEL, CAIO SARTORI,
WELLINGTON BAHNEMANN, BRUNO
NOMURA, MATHEUS LARA E
LEONARDO AUGUSTO, LUCAS RIVAS,
JULIO CESAR LIMA E VINÍCIUS BRITO,
ESPECIAIS PARA O ESTADO

Bolsonaro parece


receber reprovações


com satisfação


O


presidente Jair Bolsonaro foi,
depois voltou e no fim acabou
ficando numa espécie de meio
do caminho – quer dizer, não foi, mas
também não deixou de ir. Primeiro, re-
solveu apoiar os protestos, que foram
trocando de pele. Eram, na origem, con-
tra o Congresso e os políticos. Depois
viraram a favor das reformas. No fim,
acabaram se transformando num ato
em seu apoio. Entra, aí, o coronavírus.
Fim das manifestações, reduzidas a rápi-
das carreatas e aglomerações de peque-
no porte em todo o Brasil. Tudo bem –
em nome da segurança, da prudência e
dos esforços para evitar o contágio.
Tudo bem? Nem tanto, pois mais uma
vez o personagem central de tudo foi o
próprio Bolsonaro. O presidente, dois
dias antes das manifestações, fez um
apelo público para que fossem suspen-
sas. Mas no dia ele não aguentou. Foi
até os grupos, apertou mãos, tirou sel-
fies e postou cenas de aglomerações,
com palavras de apoio. Pronto. Levou a
pancadaria de sempre.
A possibilidade de que Bolsonaro pres-
te alguma atenção nestas críticas oscila
entre o zero e o menos um. Ele vai conti-
nuar assim: parece receber com satisfa-
ção cada vez maior todas as reprova-
ções que recebe, certo de que isso só faz
reforçar o apoio, já muito forte, que tem
do seu público. Enquanto continuar sen-
do o único assunto dos seus adversá-
rios, seguirá sendo exatamente o presi-
dente que é.

]
ANÁLISE: J. R. Guzzo

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


lAliado do presidente, o gover-
nador de Goiás, Ronaldo Caiado
(DEM), cobrou “responsabilida-
de” contra disseminação do novo
coronavírus e foi vaiado durante
manifestação pró-governo. “Na
hora que morrer um da família,
vocês vão estar chorando na por-
ta do Palácio (do governador).”

l Ruas

l Tiros
Uma pessoa
foi baleada
ontem, a uma
quadra e meia
de do protes-
to, na Avenida
Paulista. Se-
gundo teste-
munhas, hou-
ve discussão.

ENTREVISTA OS ERROS


Após viagem com Bolsonaro, 11 estão infectados. Pág. A7 }


DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Maia e Alcolumbre


criticam atitude


do presidente


Deputado vê ‘atentado à saúde pública’ e senador diz que conduta


foi ‘inconsequente’; Bolsonaro desafia os dois a ‘saírem às ruas’


Esplanada. Ato em Brasília; presidentes da Câmara e do Senado criticaram Bolsonaro

Caiado é vaiado


por bolsonaristas


“O verdadeiro coronavírus
que mata é a corrupção.”
Otoni de Paula
DEPUTADO (PSC-RJ)

“Quem tem medo do
‘comunavírus’?”
Manifestantes em SP

FELIPE RAU/ESTADÃO

Legislativo e Judiciário


são os principais alvos;


em alguns atos há coleta


de assinaturas para o


partido de Bolsonaro


Fechamento do


Congresso e apoio


ao Aliança na pauta


São Paulo. Manifestantes se concentraram na Av. Paulista

l Risco para manifestantes
Presidente ignorou a recomenda-
ção médica de isolamento e ex-
pôs os manifestantes ao risco de
contaminação pela covid-19, ca-
so esteja com o vírus incubado.
Não tomou cuidado ao cumpri-
mentar e abraçar os presentes.

l Risco a si próprio
Bolsonaro não se protegeu ao
ter contato com uma aglome-
ração que pode incluir pes-
soas infectadas.

l Mau exemplo
Ele deu mau exemplo à popu-
lação ao ignorar a recomenda-
ção do próprio Ministério da
Saúde de evitar grandes aglo-
merações.

VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO
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