O Estado de São Paulo (2020-03-17)

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C6 Caderno 2 TERÇA-FEIRA, 17 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


HUMBERTO


WERNECK


U


m bom rótulo para aquele ca-


marada talvez seja “siste-


mático”, no sentido que em


Minas Gerais se dá a esta palavra,


sob medida para qualificar gente


por demais metódica. Sobraria até
para Carlos Drummond de Andra-

de, com seu hábito diário de tesou-


rar papéis, reduzindo-os a pedaços


cada vez menores, antes de fazer de-


les um embrulho em folha de jornal,


finalizado com barbante e em segui-


da despejado na lixeira. Mas o minei-


rês, a gente sabe, nem sempre é com-


preensível em outras unidades da


Federação; agora em maio vai fazer


meio século que me transplantei pa-


ra São Paulo, e nesse tempo todo


raras vezes encontrei quem soubes-


se, por exemplo, o que é estar “aper-


tado de costura” – originalmente, o


argumento da costureira para expli-


car à freguesa que, por se achar em-


pencada de encomendas, não está


em condições de dar barra no vesti-


do.


Mas eu falava de um camarada sis-


temático – sistemático paulista,


aliás. Como não estamos em Minas,


vamos chamá-lo de maluco benig-
no.

Veja se não é mesmo. No cinema,


prefere nem ver o filme se não encon-


trar poltrona junto à saída. “Sou bobo


nada”, explica, “só vou morrer se a por-


ta desabar em cima de mim”. Jamais


embarca sozinho num elevador, por
medo de despencar sem companhia.

Avião, canoa, balsa? Sem chance:


meios de transporte, para ele, apenas


aqueles que lhe garantam terra firme


sob os pés.


Para tudo isso, tem prontinha uma


enigmática filosofia de vida, que vive


repetindo: “Presença de espírito e au-


sência de coisa!”.






Deve ser de família, pois um de seus


irmãos também é maluco benigno. Por


mais que insistam no oferecimento,


não come “doce que treme”, do tipo


gelatina. Motorista habilitado desde a


mocidade, não esperem dele que dê


marcha à ré. Questão de princípio,


pois acredita que um homem nunca


deve voltar atrás, nem mesmo em cir-


cunstâncias motorísticas. Por isso, ja-


mais empunha o volante de seu carro,


uma idosa Vemaguete, se não puder


contar com a assistência da mulher, fi-


lho ou neto, para quando seja indispen-


sável fazer uma baliza.
Se você acha que nesse caso a malu-

quice já bateu no teto, fique sabendo


de outra bizarrice da mesma criatura.


Na falta de assunto da aposentado-


ria, tomou gosto pela pintura – para,


depois de gastar os tubos, não só de


tinta, entregar os pontos: não conse-


gue, admite, conceber um quadro, pois


a tela em branco, assustadora, lhe traz


paralisia. Perdeu essa veleidade, troca-


da ultimamente pelo hábito de ir a fei-


ras de arte, como a da Praça da Repúbli-


ca, no centro de São Paulo, de onde


volta com alguma obra já emoldurada



  • à qual, depois de muito matutar,


acrescenta aquilo que lhe parece faltar


à composição. “Minha coisa”, assume,
“são os detalhes, nisso sou bom”.

Pincéis na mão, ele se põe meditati-


vo, de pé em frente ao cavalete, o corpo


apoiado na perna direita, numa postu-


ra corporal que lhe parece própria de


um legítimo pintor. Aí vêm vindo as


iluminações da criação artística. Nesta


curva da estradinha vai bem uma chou-


pana. Não cairiam mal dois coqueiros


esguios com os pescoços entrelaça-


dos. Um regato a serpentear – quase se


pode ouvir o gorgolejar das águas cris-


talinas! Um sol que justifique a luz da


tela. E neste canto aqui, é claro, a mi-


nha assinatura, depois de apagar a de


quem fracassou no intento de produ-


zir obra com todos os detalhes.


Não é impossível, pensei outro dia,


que o imaginativo pintor, sem o saber,
esteja na trip de artistas famosos da-

dos a fazer “intervenções” em quadro


alheio. Com certeza existe algum as-


sim, bem cotado nas galerias e mu-


seus. Mas quem? Preciso consultar o


Claudio Cretti, a Germana Monte-


Mór, quem sabe o Rodrigo Naves.






Aquele ali se arrepiava todo quando


via pela casa um sapato com a sola vira-


da para cima. Se fosse um par, então...


Dava azar, dizia, poderia provocar a


morte da mãe de quem se permitisse


tal descuido. Por que a mãe e não o


dono do pisante? Sei lá, desconversava


ele. Um dia, tendo brigado com a mu-


lher, foi à sapateira revirou tudo – o
que, no caso dos calçados de salto alto,

lhe custou um trabalhão. Só então se


deu conta de que não iria funcionar,


pelo simples fato de que a sogra, aliás


gente boa, já tinha batido as botas.


Ainda no capítulo calçados, tem


aquele outro, de quem já falei, que não


consegue pegar no sono se ao lado da


cama os dois pés de chinelo não estive-


rem emparelhados com o maior rigor.


Só assim, explica ele, seus artelhos con-


seguirão encontrar de primeira os chi-


nelos e neles se encaixar, sem necessi-


dade de tatear às cegas no breu da ma-


drugada.


E a isso não se resume seu invulgar


comportamento de alcova, entrega a


mulher. O marido jamais se deita para


dormir sem antes dispor no criado-mu-


do, com rigor igual ao empregado no


quesito chinelos, duas ou três barri-


nhas de cereais. Vício contraído, expli-


ca ele, de tanto viajar pela Gol quando


o serviço de bordo da companhia era
uma barra. Apaga prontamente – para

despertar no meio da madrugada,


quando também o estômago se põe a


roncar. Voraz, dá cabo então das bar-


rinhas, num crunch-crunch-crunch


que não só arranca do sono a mulher


como a precipita numa enraivecida


insônia – enquanto ele retoma, bi-


cho saciado, sua outra modalidade


de ronco.






Naquela casa, ninguém chegava


da rua sem imediatamente lavar as


mãos. Todos na família se adora-


vam, mas nem por isso se permi-


tiam contatos corporais. Duas bo-


chechas, ali, jamais colidiam, por


maior que fossem – e eram – o afeto
e o carinho de seus donos. Em vez

disso, praticava-se o que alguém (vá


lá: o autor destas linhas) chamou de


“telebeijo”, com pelo menos um


centímetro a separar as duas super-


fícies de carne humana. A justificati-


va, além do imperativo de assepsia


cristã, eram remotos casos de tuber-


culose no histórico do clã. Tocar


gente ou coisa envolvia riscos. O do-


no da casa, então, esse era radical.


Se comia alguma coisa sem auxílio


de talher, jamais traçava todo o boca-


do. De uma fatia de bolo ou queijo,


por exemplo, ele discretamente des-


cartava uma parte, aquela em que


seus dedos, neuroticamente lava-


dos, houvessem tocado.






Falei, falei, falei – e não dei conta


do assunto. Se você não se opuser,


voltarei ao tema, mesmo sabendo


que a reincidência poderá escanca-


rar o que seria a minha própria malu-


quice benigna. Em todo caso, não
reclame: é isso ou um tal de corona-

vírus, já ouviu falar?


John Leicester


ASSOCIATED PRESS


MÔNACO


David Nahmad, multimilioná-


rio e colecionador de obras de


arte, não se lembra exatamen-


te por que comprou a Nature-


za Morta , uma pintura a óleo


simples e encantadora que Pa-


blo Picasso pintou em 1921.


Como Nahmad possui cerca


de 300 obras do gênio espa-


nhol, sua falta de memória tal-


vez seja compreensível. Com


uma coleção dessas, que Nah-


mad diz ser o maior acervo de


Picasso do mundo em mãos


particulares, os detalhes às ve-


zes se perdem.


“Compramos muitos Picas-


so, não me lembro do motivo


específico de cada um”, disse


Nahmad em uma entrevista ex-


clusiva e incomum para a Asso-
ciated Press, em sua luxuosa ca-

sa em Mônaco. “É o menor qua-


dro que tenho”. Mas não por


muito tempo.


Alguém com muita sorte de


algum lugar do mundo em bre-


ve se juntará a Nahmad no pri-


vilegiado clube dos proprietá-


rios de obras do pintor de Mála-


ga, quando Natureza Morta se-


rá sorteada em uma rifa benefi-


cente, no final deste mês.


Os bilhetes, vendidos onli-


ne, custam 100 euros (cerca de


R$ 530). O vencedor de um sor-


teio semelhante em 2013 foi


um jovem de 25 anos da Pensil-


vânia que trabalhava com insta-


lação de sistemas de incêndio.


Nahmad, um dos mercado-


res de arte mais influentes do
mundo, receberá 1 milhão de

euros pela pintura, que, segun-


do ele, vale “pelo menos duas


ou três vezes mais”.


“Essa rifa não teria sido


bem-sucedida se não fosse o


nome de Picasso. Tentaram


propor outros nomes, mas não


funcionou, porque queriam


um nome que agradasse a to-


dos. Tinha que ser Picasso. Pi-


casso é o nome mágico”, disse


ele.


Na vasta coleção de arte mo-


derna e impressionista de Nah-


mad existem outras pinturas


mais valiosas e reconhecidas.


Acumulado ao longo de déca-


das, o conjunto de suas obras,


de acordo com a Forbes , seria


avaliado em US$ 3 bilhões.
Nahmad não fala em números.

“Acho que as pessoas não se


importam com o número de


obras, mas, sim, com a qualida-


de delas”, disse.


Pequena joia. Mas a possibili-


dade de se despedir de Nature-


za Morta o fez apreciar a peque-


na obra, que mostra um diário


e um copo de absinto em uma


mesa de madeira, além da assi-


natura “Picasso”. O artista ti-


nha acabado de ser pai de Pau-


lo, com sua primeira mulher, a


russa Olga Khokhlova, e quan-


do terminou a pintura, em ju-


nho de 1921, estava prestes a


completar 40 anos de idade.


“Acho que é uma pintura ex-


tremamente elegante”, disse
Nahmad. “E o fato de ser pe-

quena faz com que não seja pre-


tensiosa. É uma pequena joia”.


O sorteio será realizado em


Paris no dia 30 de março. Os


organizadores, Péri Cochin,


produtora de televisão, e Ara-


belle Reille, historiadora de ar-


te, esperam vender 200 mil co-


tas e arrecadar milhões, dinhei-


ro com o qual levarão água pa-


ra aldeias de Camarões, Mada-


gáscar e Marrocos.


Eles decidiram pagar pelo


quadro de Nahmad, em vez de


pedir uma doação, porque com


isso esperam incentivar ou-


tros colecionadores ou pro-


prietários de galerias a abrirem


mão de seus Picasso em futu-


ras rifas.
“Primeiro David disse: ‘Não

acho que eu tenha um quadro


por 1 milhão de euros. Tenho


pinturas muito bonitas, que va-


lem muito mais que isso. Mas


sabe de uma coisa? Vamos pe-


gar o catálogo da minha cole-


ção e tentar encontrar jun-


tos’”, lembrou Reille.


“Por 1 milhão de euros, geral-


mente você consegue comprar


um desenho bonito, uma gravu-


ra bonita. É extremamente ra-


ro encontrar uma pintura, mas


nós encontramos esta”.


/ TRADUÇÃO DE RENATO

PRELORENTZOU

HUMBERTO WERNECK
ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Malucos benignos


Milionário


vai rifar


quadro de


Picasso


JOHN LEICESTER/AP

O assunto são nossas manias.


Se não gostou, mudo para esse


vírus aí, já ouviu falar?


Visuais. Pequena pintura ‘Natureza Morta’


vai ser sorteada no próximo dia 30, em Paris


Coleção.


O milionário


David


Nahmad


tem cerca


de 300


obras


do gênio


espanhol


A obra. A


historiadora


de arte


Arabelle


Reille ( E ) e a
produtora

de TV Péri


Cochin


posam em


frente à


‘Natureza


Morta’


DMITRY KOSTYUKOV/THE NEW YORK TIMES
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