O Estado de São Paulo (2020-03-18)

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E4 Metrópole QUARTA-FEIRA, 18 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


O DRAMA DE


QUEM NEM TEM


ÁGUA EM CASA


Moradores da favela do Sol Nascente esperam a


chegada do coronavírus sem ter como se proteger


Julia Lindner


Mateus Vargas / BRASÍLIA


Para combater o avanço do


novo coronavírus, o governo


federal avalia que a “melhor


solução” hoje é utilizar na-


vios para isolar e tratar pes-


soas de baixa renda infecta-


das pela doença. A ideia das


autoridades brasileiras é


atender nas embarcações ca-


sos leves, que não exigem lei-


tos de UTI, de pessoas que mo-


ram em regiões litorâneas.


Em outros locais, afastados


do mar, está sendo estudado


desde o uso de quarto de ho-


téis, até unidades habitacio-


nais ainda não entregues pa-


ra socorrer a população. Se-


gundo o último Censo do IB-


GE, em 2010, 10 milhões de


brasileiros viviam em assenta-


mentos, favelas e invasões.


O governo já identificou com


empresas de cruzeiros que há


aproximadamente 20 navios


disponíveis. “Temos de tratar


da alimentação dessas pessoas,


do monitoramento, da terapia,


medicamentos que serão dispo-


nibilizados. E caso os pacientes


tenham agravamento, teremos


condições para que possam ser


rapidamente atendidos, mes-


mo dentro do navio”, disse o


secretário executivo do Minis-


tério da Saúde, João Gabbardo.


Outra preocupação, segundo


ele, é com o “tratamento dos


resíduos que vão ocorrer des-


sas pessoas (no navio) que po-


tencialmente estarão com a pre-


sença do vírus”.


O Ministério da Saúde consi-


dera promissora a aplicação da


ideia no Rio, o segundo Estado


com o maior número de infecta-


dos. Cerca de 1,5 milhão de pes-


soas vivem no Rio espalhadas


em mais de 700 comunidades.


Em São Paulo, a população das


favelas era de 1,2 milhão de pes-


soas. O governo espera que na-


vios sejam cedidos sem custos.


O Estado apurou que a preo-


cupação com as pessoas de bai-


xa renda, especialmente do


Rio, foi discutida anteontem


em reunião reservada do minis-


tro da Saúde, Luiz Henrique


Mandetta, com integrantes do


Supremo Tribunal Federal


(STF). Um dos pontos levanta-


dos é que elas não possuem se-


quer saneamento básico e, mui-


tas vezes, compartilham com


parentes casas com apenas um


ou dois cômodos.


“Tem várias alternativas.


Mas confesso que nenhuma


das que estávamos vendo é me-


lhor do que essa, de usar navios


no Rio”, disse Gabbardo. “É


uma preocupação. Como colo-


car em isolamento o cidadão


que mora em comunidades no


Rio, com a quantidade enorme


de pessoas na mesma residên-


cia, que muitas vezes tem só


um ou dois quartos”, disse. O


protocolo da Saúde prevê ao


menos 14 dias de afastamento.


A iniciativa com os barcos já


foi adotada na Itália, um dos paí-


ses mais afetados no mundo pe-


la pandemia. Os italianos trans-


formaram um navio em hospi-


tal para atender cerca de mil


pessoas. Segundo a CLIA Brasil


(Associação Brasileira de Cru-


zeiros Marítimos), a proposta


de ceder cruzeiros foi apresen-


tada em uma reunião com o Mi-


nistério da Saúde.


Saneamento. As preocupa-


ções com a população flumi-


nense não se restringem aos lo-


cais para acomodar casos que


precisem de acompanhamen-


to. Como muitos centros urba-


nos, o Rio sofre com a precarie-


dade do saneamento básico.


Neste ambiente, hábitos de pre-


venção – como lavar as mãos,


usar álcool gel e permanecer


em isolamento social – tor-


nam-se inviáveis para boa par-


te da população.


Na comunidade do Alemão,


no Rio, a comunicadora Tiê Vas-


concelos, de 25 anos, conta que


água é item raro. Na casa dela,


só chega de madrugada, quan-


do é hora de fazer estocagem


em baldes para o restante do


dia. O relato de Tiê pode ser vis-


to no Twitter. Ela e outras deze-


nas de pessoas participam da


hashtag #COVID19NasFave-


las, criada nas redes sociais pa-


ra mostrar a realidade das co-


munidades do Brasil.


“Não tem água na favela para


lavar a mão? Compra! Eu não


posso comprar água nem pra be-


ber. Vou comprar pra lavar a


mão? Ter água na favela pra lavar


a mão está sendo luxo. Não fa-


zem ideia da nossa realidade”,


publicou. A proposta em estudo


pelo governo é vista com ressal-


vas. O governo, diz ela, precisa-


ria oferecer uma “grande estru-


tura” para que a pessoa possa


“parar a sua vida”. Além de não


ter acesso a itens básicos, a


maior parte deles não pode se


manter em isolamento e segue


trabalhando para sobreviver.


Além disso, em caso de uma


eventual contaminação, mui-


tos relatam que não teriam lo-


cais adequados em suas casas


para se afastar dos demais.


“As três dicas para evitar ex-


posição e proliferação não nos


cabem. Lavar sempre as mãos?


(falta água direto). Usar álcool


gel (não tem dinheiro para).


Quarentena/isolamento (Com


casas de dois ou três cômodos e


6 pessoas?). Como na favela?”,


questiona no Twitter o ativista


Raull Santiago, que também vi-


ve no Alemão.


Como alternativa, os mora-


dores da comunidade tentam


se ajudar como podem. Nas re-


des sociais, a ativista Renata


Trajano organiza uma campa-


nha para reunir itens para con-


tenção do coronavírus. Quan-


do chega água na casa da ativis-


ta, ela divulga para que outros


moradores possam buscar.


“Na favela funciona assim, se


eu tenho e você não, vou dividir


o meu com você”, disse.


Medidas. Pesquisador na área


de Direitos Humanos, Dennis


de Oliveira, da Universidade de


São Paulo (USP), afirma que


apenas medidas de isolamento


não resolvem a questão. Para


ele, essas pessoas precisam con-


tinuar a trabalhar para sobrevi-


ver e não podem ser isoladas


sem medidas para garantir al-


gum tipo de renda. Ele citou co-


mo exemplo a moratória de


dívidas e impostos tomada em


países como a Itália. “O gover-


no está pensando em ampliar


Bolsa Família. Precisa de um


mix que garanta renda para


aqueles que terão dificuldade


de se isolar”, disse.


André Borges / BRASÍLIA


A


s horas ininterruptas


de reportagens sobre


o novo coronavírus


passam pela tela do celular


de Elciclea Baima Viana, mo-


radora da favela do Sol Nas-


cente, em Brasília. Informa-


ção não falta. Na televisão,


ela também aprende sobre


os cuidados necessários para


se afastar da doença, as fragi-


lidades dos idosos frente ao


vírus e o hábito mais básico


para sua autodefesa: lavar as


mãos. Mas, para isso, é preciso


ter água.


Moradora da segunda maior


favela do Brasil, só atrás da Roci-


nha, no Rio de Janeiro, Elciclea


vive a 1,2 mil quilômetros do


mar. Ela não pode contar com o


apoio de moradias improvisa-


das em navios atracados no lito-


ral do Rio. Sua dificuldade em


lidar com o avanço da covid-19


passa pela torneira seca, uma


situação frequente para quem


vive na favela que se espalha pe-


lo Planalto Central, localizada


a apenas 32 quilômetros do Pa-


lácio do Planalto ocupado pelo


presidente Jair Bolsonaro.


Álcool gel virou item raro e


caro, um luxo para quem não


tem nem sequer o básico. “Aqui


na minha casa e de todos que


moram nesta região, a ligação


da água é clandestina. Nós mes-


mos que fizemos, não tinha ou-


tro jeito. Estamos esperando há


anos uma encanação, que não


existe”, diz Elciclea.


A exposição de Elcicleia ao


avanço do novo coronavírus re-


flete a situação de boa parte dos


mais de 100 mil moradores da


favela do Sol Nascente, com


suas ruas enlameadas, à espera


de uma estrutura mínima de sa-


neamento que já virou mito.


Com 39 anos, gari, desempre-


gada, ela tem passado os dias


em casa, cuidando do filho Wa-


lace Eduardo, de 7 anos, e da


mãe, Eralda Baima Viana, de 57


anos, que está doente e enfren-


ta problemas de locomoção. Do-


na Eralda está frágil, mas não é


boba. Sabe que é alvo do corona-


vírus. Quando perguntada so-


bre a covid-19, ela bota aos


mãos para o céu e parece falar


para si mesmo. “Se Deus quiser,


não chega aqui. Não chega.”


Dentro ou fora da favela, o


fato é que a falta de abasteci-


mento de água é problema


crônico no Brasil, uma ende-


mia que corrói a infraestrutu-


ra nacional de um país onde


mais de 35 milhões de pessoas


vivem sem água encanada pe-


las periferias.


Para alguns moradores, a con-


taminação que assola o mundo


tem viés religioso, uma praga pa-


ra castigar os mais abastados.


Como os primeiros casos de co-


ronavírus estão ligados a pes-


soas que viajaram a outros paí-


ses, há quem acredite que a pro-


pagação local, a chamada “trans-


missão comunitária”, seja uma


coisa de outro mundo.


Sem água em sua casa duran-


te vários dias da semana, o cozi-


nheiro José Antônio de Souza,


47 anos, diz que ele, sua mulher


Crisdiane Silva Araújo, de 26


anos, e a filha Esther Araújo, de


2 anos, tem vivido normalmen-


te e não temem o vírus. Porque


são pobres. “Isso é doença de


rico. Não pega na gente. Pode


ver os casos. Quem está morren-


do é rico. Aqui, no meio desse


lixo todo, a gente não pega mais


nada”, diz Souza, enquanto


mostra o rio de esgoto que corta


a frente de sua casa.


Com dificuldade, a comunida-


de da favela se vira como pode.


Guarda água em tanques e cai-


xas. Quem pode tenta comprar


seus potes de álcool em gel. E se


recolhem dentro de casa. Dilza


Aparecida, de 51 anos, dona de


um mercadinho no Sol Nascen-


te, comprou uma caixa com 50


máscaras, há duas semanas. Pa-


gou R$ 16. Ontem, quando vol-


tou na farmácia para buscar


mais uma caixa, o preço ti-


nha subido para R$ 38. Ela


não comprou. E mesmo que


quisesse pagar, não havia


mais nenhuma à venda.


Grade. De máscara no ros-


to, ela mantém fechada a gra-


de de seu mercadinho e fica


sentada do lado de dentro. É


mais uma forma que arran-


jou para manter o distancia-


mento das pessoas. “Che-


gam aqui e pedem o querem.


Eu vou lá, busco e entrego. É


melhor assim. Esses dias, eu


tive uma gripe forte. Se Deus


quiser, não foi nada. Já me-


lhorei. Mas é melhor seguir


com a máscara. Nessa sema-


na, já cheguei até a dormir


com ela”, diz.


Com a queda das vendas


em seu comércio, Dilza tem


pensado em fechar as portas


por 30 dias e ficar completa-


mente isolada com a filha e o


marido dentro de casa. “E só


sair quando tudo isso aca-


bar.”


lDesafio


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


lSem saída


Morador de favela pode ir para navio


Brasil vai fechar a fronteira com a Venezuela. Pág. E5 }


DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

“Aqui na minha casa e de


todos que moram nessa


região, a ligação da água é


clandestina. Nós mesmos


que fizemos, não tinha


outro jeito.”


Elcicleia Viana


Sem saneamento. José Antônio, Crisdiane e a filha Esther, moradores de favela em Brasília, não temem o vírus: ‘Aqui, no meio desse lixo todo, a gente não pega mais nada’


Brasília


“É uma preocupação. Como


colocar em isolamento o


cidadão que mora em


comunidades no Rio, com a


quantidade enorme de


pessoas na mesma


residência.”


João Gabbardo


SECRETÁRIO-EXECUTIVO DA SAÚDE

Governo federal estuda usar cruzeiros para isolar e tratar pessoas de baixa renda infectadas; quartos de hotéis também são avaliados

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