Caderno 2
Ubiratan Brasil
Já é Natal para os integrantes
do Porta dos Fundos – um dos
mais festejados grupos brasilei-
ros de humor do streaming, o
elenco já se prepara para escre-
ver o roteiro do especial natali-
no. E, neste ano, será uma edi-
ção diferenciada. “Agora, esse
programa ganhou outra propor-
ção”, conta ao Estado o humo-
rista Fábio Porchat, um dos ex-
poentes do grupo que, por con-
ta do novo coronavírus, mudou
sua rotina: as conversas aconte-
cem agora de forma virtual, ca-
da um em sua casa.
O motivo desse maior interes-
se pelo especial ainda está fres-
co na memória: no ano passado,
madrugada do dia 24 de dezem-
bro, a sede da produtora do Por-
ta foi atacada por coquetéis mo-
lotov. Felizmente não houve
vítimas (um vigia estava no lo-
cal) e o fogo não se tornou em
incêndio. Foi a mais agressiva
reação ao especial de Natal de
2019, exibido pela Netflix e inti-
tulado A Primeira Tentação de
Cristo: o fato de retratar Jesus
como um homossexual que se
envolve com Lúcifer, além de
mostrar a relação de Deus com
Maria como uma traição a José,
foi encarado com repúdio por
grupos religiosos e movimen-
tos conservadores, que conse-
guiram censurar o programa na
Justiça do Rio.
Enquanto os outros mem-
bros do grupo estavam no Bra-
sil, Porchat encontrava-se em
Los Angeles, onde fazia um cur-
so. “Eu acompanhava a distân-
cia e, por causa do fuso horário,
quando eu acordava, já era iní-
cio de tarde aqui e as conversas
já estavam a mil.”
O humorista conta que a sen-
sação, mesmo a quilômetros de
distância, foi idêntica à sofrida
por outros grupos confronta-
dos com violência. “O que pas-
samos, acredito, é semelhante
ao apuro passado pelos umban-
distas, cujos terreiros foram in-
vadidos por intolerantes religio-
sos, no ano passado”, comenta.
Porchat conta que o episódio
acabou fortalecendo o grupo.
“Decidimos mudar de sede: não
mais em uma casa, mas no 10.º
andar de um edifício comercial.
Teremos espaço para mais pes-
soas trabalhando, o que signifi-
ca mais projetos.” E, melhor de
tudo, os patrocinadores não fu-
giram, depois do problema no
final do ano. “O especial de Na-
tal deste ano já tem patrocínio
garantido.”
A expectativa sobre o episó-
dio será tamanha que o grupo
ainda não sabe se o programa
vai ser veiculado novamente
por uma empresa de streaming
(no caso, a Netflix) ou se pelo
canal do Porta dos Fundos. Por-
chat não adianta sobre qual ca-
minho vai percorrer esse espe-
cial (“Ainda estamos rascu-
nhando as ideias”, justifica),
mas a linha de raciocínio conti-
nua a mesma. “Refletimos so-
bre o que se passa no País no
momento”, explica Porchat,
lembrando que o processo se-
gue um ritual: são escritos em
média 15 roteiros, até que surja
o definitivo.
Nesse momento, o humor
praticamente rompe qualquer
barreira. “Acreditamos que po-
demos fazer piada com tudo e
com todos – as pessoas deve-
riam aprender a rir. Pregamos
a liberdade de expressão, den-
tro da lei”, afirma. Nada fica de
fora, portanto? “Só a piada
ruim.” Porchat, como os de-
mais membros do Porta dos
Fundos, defende uma atuação
irrestrita, independente das
reações contrárias.
“Nossa liberdade é inego-
ciável. Não dá para negociar
com terrorista. A gente já
imaginou Jesus de todas as
formas possíveis, acho que
inclusive gay, mas o que
mudou foi o País, não foi a
gente. Esse mesmo espe-
cial de Natal, se tivesse si-
do lançado há um ou dois
anos, não teria tido nada dis-
so”, disse Gregório Duvivier,
em entrevista à agência de notí-
cias France Presse, em janeiro.
“Mas estou com a impressão de
que, nesse caso, a maioria está
com a gente. Essa onda conser-
vadora barulhenta sabe tacar co-
quetel molotov, tacar fogo, gri-
tar, mas não é majoritária, é
uma minoria barulhenta.”
A pandemia do coronavírus e
a consequente rotina mais es-
partana que deve ser adotada
por todo brasileiro modifica-
ram logicamente a rotina de
Porchat. E de forma radical, afi-
nal, ele retornou com dois pro-
gramas semanais que apresen-
ta no canal GNT: o Papo de Se-
gunda, em que se reúne com
Emicida, Chico Bosco e João Vi-
cente para debater assuntos da
atualidade, e o Que História é Es-
sa, Porchat?, no qual propõe a
famosos e pessoas anônimas
compartilharem experiências
inesquecíveis, engraçadas e até
mesmo assustadoras.
O segundo programa é grava-
do e, como nem todos episó-
dios da segunda temporada fo-
ram rodados, Porchat negocia
com o canal quando poderão
ser retomadas as gravações,
uma vez que o cronograma foi
suspenso por causa da precau-
ção contra o coronavírus. A pan-
demia, aliás, não deixou o grupo
do Porta dos Fundos de braços
cruzados – além do Especial de
Natal, eles mantêm a programa-
ção normal dos esquetes inédi-
tos, que continuam subindo no
YouTube aos sábados, terças e
quintas-feiras, a partir das 11h.
Apesar de ser um tema delica-
do, especialmente quando au-
mentar o número de óbitos, o
coronavírus também não vai es-
capar do olhar irônico do grupo.
“Podemos e devemos rir das ad-
versidades”, pondera Porchat.
“Não podemos é desinformar
ou causar pânico. Rir do corona-
vírus pode fazer com que as pes-
soas amoleçam um pouco o co-
ração diante de tamanha dificul-
dade. Humor é feito para lem-
brarmos dos problemas, mas
também para esquecermos.”
Concurso. Outra função a que
os rapazes do Porta estão se de-
dicando em casa é encontrar
um novo participante. Para is-
so, foi organizado um reality
show intitulado Futuro Ex-Por-
ta. Esquisito? Porchat explica:
“Queremos alguém tão bom
que logo ele (ou ela) vai nos
abandonar e se transformar
em um ex-Porta dos Fundos”,
diverte-se.
O processo já começou –
mais de 700 pessoas já se inscre-
veram no site do grupo e envia-
ram um vídeo interpretando
um roteiro que está disponível
no link. A data limite é 31 de mar-
ço. Depois disso, quando a situa-
ção amenizar, Porchat e elenco
do Porta vão viajar para as cida-
des onde vivem os 20 candida-
tos previamente selecionados e
levá-los para o Rio de Janeiro.
Lá, todos participarão de de-
safios de atuação e provas ao es-
tilo “Porta dos Fundos” até que
finalmente surja o novo inte-
grante. “Dei uma espionada em
alguns candidatos e vi dois com
bom potencial”, conta Porchat,
apontando as qualidades mais
benéficas. “A pessoa tem que
ser naturalmente engraçada,
apresentar uma graça sincera.”
É preciso também saber en-
frentar as críticas, especialmen-
te as ruidosas. “Afinal, quem
mais detesta é mais barulhen-
to”, comenta Porchat.
Humor e
provocação
Streaming. Em casa, Fábio
Porchat e os participantes do
Porta dos Fundos trabalham
no texto do próximo especial de
Natal e buscam novo integrante
“
A volta de ‘Beijo
Adolescente’
Trilogia de HQ de
Rafael Coutinho é
reunida em livro
Pág. C6
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
Podemos e
devemos rir de
adversidades.
Não podemos é
desinformar ou
causar pânico.
Rir do
coronavírus
pode fazer com
que as pessoas
amoleçam
um pouco o
coração diante
de tamanha
dificuldade”
Fábio Porchat
HUMORISTA
F
ábio Porchat comanda atualmente um
dos melhores programas da TV brasi-
leira. Que História É Essa, Porchat?,
exibido pela GNT, desconstrói o tradicional
formato do talk-show – que o próprio Por-
chat já experimentou na Record, com seu
Programa do Porchat – e tira de seus convida-
dos os relatos mais saborosos, imprevisí-
veis, improváveis. São histórias pelas quais
eles passaram em algum momento de suas
vidas. No entanto, o mérito não está só na
escolha dos entrevistados. Sem um apresen-
tador com a inteligência, a agilidade de pen-
samento e o carisma de Porchat, o programa
não teria o mesmo resultado. E Porchat se
diverte junto com seus convidados. Assim,
há uma comunhão de elementos que faz
com que tudo dê certo, na medida certa.
Que História É Essa, Porchat? não conta
com uma grande estrutura. E nem precisa.
O programa dispensa superprodução e se
concentra nas pessoas. A cada programa, o
humorista recebe três entrevistados famo-
sos, para que eles relembrem histórias inusi-
tadas que nunca tenham contado em públi-
co antes. Há também a participação de pes-
soas que estão em seu pequeno auditório e
que têm histórias igualmente deliciosas –
não se sabe, no entanto, se o programa conti-
nuará a contar com plateia, por causa do co-
ronavírus. E aí está a grande sacada do pro-
grama: Porchat tem um rico material em
mãos, e sabe usá-lo a favor da atração.
E da mesma forma informal e divertida
com que o humorista conduz Que História
É Essa, Porchat?, ele apresenta Papo de Se-
gunda, também no GNT, ao lado de Emici-
da, Chico Bosco e João Vicente de Castro.
O tom do programa ali, claro, é outro. Es-
pécie de Saia Justa ciceroneada por ho-
mens, Papo de Segunda traz para o debate
temas da atualidade, mas há espaço para os
momentos de humor, a cargo de Porchat.
Ele e João Vicente estão também no elenco
do Porta dos Fundos, bem-sucedido projeto
de humor, em que Porchat atua – e pode au-
mentar o nível do escracho.
De volta ao Que História É Essa, Porchat?,
é possível fazer um paralelo entre o progra-
ma e Lady Night, apresentado por Tatá Wer-
neck, no Multishow. Quando Lady Night es-
treou, em 2017, injetou frescor no formato
de talk-show, fazendo com que o programa
entrasse também na lista de melhores da
TV. Tatá e Porchat, dois humoristas reinven-
tando a roda. Seriam eles os Jimmy Fallons
do Brasil? E assim como Lady Night, Que His-
tória É Essa, Porchat? deveria fazer o cami-
nho da TV fechada para a aberta, e estrear
na Globo, para alcançar um número maior
de público. O programa merece.
Porchat.
Depois de
atentado,
Porta dos
Fundos vai
se mudar
para prédio
JULIANA COUTINHO
Artistas se inspiram na reclusão imposta pela pandemia e criam imagens que ensinam e retratam solidão. Pág. C5 }
Polêmico.
O especial de
Natal de 2019
]
ANÁLISE: Adriana Del Ré
‘Que História É Essa?’ é
hoje um dos melhores
programas da TV
PORTA DOS FUNDOS/NETFLIX
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C1 QUINTA-FEIRA, 19 DE MARÇO DE 2020 ANO XXXIV – Nº 11598 O ESTADO DE S. PAULO