O Estado de São Paulo (2020-03-19)

(Antfer) #1

VERISSIMO


Clara Rellstab


Uma volta ao passado atrelada a pequenas do-


ses de Nostradamus: Rafael Coutinho revira o


baú e tenta adivinhar o futuro. O quadrinista de


40 anos, que tem no sangue o DNA da cartunista


Laerte, relança em formato físico um dos seus


trabalhos mais ambiciosos e experimentais, a


obra distópica O Beijo Adolescente, trazida ao


mundo como uma webcomic e publicada fisica-


mente entre 2011 e 2015 por meio de financia-


mento coletivo.


À época uma possibilidade ainda pouco explo-


rada no mundo das HQs nacionais, as três campa-


nhas em crowdfunding lançadas por Coutinho


para a obra O Beijo Adolescente (B.A., para os mais
familiarizados com a história) arrecadaram mais

do que a meta estabelecida pelo autor. Hoje, por


intermédio da editora Todavia, a trilogia volta ao


mercado em um volume único, que ganhará mais


dois livros, também compostos por três arcos


cada um – esses ainda inéditos.


Autoproclamado uma “ópera lisérgica” sobre a


adolescência, o quadrinho retrata uma estranha


epidemia que se espalha por adolescentes num


cenário urbano. Movidos pelo consumo que os


envolve, esses jovens ganham certas habilidades


especiais e se juntam em bando com a certeza de


que nada pode pará-los ou repreendê-los. O rito


que determina a aquisição desses poderes é o


primeiro beijo.


“E quem não se lembra do primeiro beijo?”,


questiona Coutinho em conversa com o Estado.


O artista conta que escolheu esse episódio mar-


cante à linha do tempo dos seres humanos pelo


seu peso, para marcar de modo expressivo uma


aventura juvenil que “conversa intimamente


com o texto real do consumismo frenético que já


passou do boom dos anos 1990 e que produz uma


geração que não questiona mais se aquilo vai ou
não afetá-lo”.

Na história, Ariel é um adolescente tímido e


desajeitado que, após o primeiro beijo, é recruta-


do pelo clã Beijo Adolescente e se vê lançado ao


centro de uma conspiração que envolve marcas


famosas, videogames e uma cidade tomada por


gangues e celebridades. Em meio a essa miscelâ-


nea de informações extraexpositivas, adolescen-


tes começam a ser assassinados misteriosamen-


te por monstros terríveis que só os jovens pare-


cem enxergar.


Desenhada enquanto o Instagram ainda engati-


nhava mundo afora, numa era pré-digital influen-


cers, B.A. parece ter sido concebida de modo pro-


fético pelo artista, com suas personagens ditan-


do moda e tomando decisões através daquilo que


deixam transparecer e conseguem absorver em


terreno digital. “A brincadeira é meio messiânica


mesmo, né? O objetivo era fazer uma ficção cien-


tífica no Brasil, com adolescentes e de uma forma


atemporal. Algumas vezes eu acerto e outras eu


erro, isso faz parte da brincadeira”, diz Coutinho.


Embebido da psicodelia de Moebius e da veloci-


dade frenética do Akira de Katsuhiro Otomo, ca-


da página repleta de experimentalismo formal
de O Beijo Adolescente parece ter sido dese-

nhada por um artista diferente. E foi pro-


posital. Segundo o autor, a obra nasceu


de um desejo de ir aos limites de seu


processo criativo e ver até onde


ele era capaz de ir dentro dessa


“brincadeira de história em


quadrinhos”.


Com a estrutura em 21,6 x


36 cm, um pouco menor do


que a original, que chegava


aos 24 x 40 cm – “os ‘lombadei-


ros’ me odeiam, é impossível


de guardar na estante, vai para


a mesa de centro” –, o quadri-


nho físico simula a experiência


do webcomic original e deveria


vir com um alerta aos leitores fotossensíveis: a


história troca de eixo e de paginação frequente-


mente, tem a narrativa fragmentada sem aviso


prévio e é ilustrada com uma explosão de cores


sessentistas.


Sobre os volumes 2 e 3, que nunca foram publi-


cados e darão continuidade ao quadrinho, Rafael


Coutinho afirma que colecionou na cabeça frag-
mentos da narrativa ao longo desses quase dez

anos e que, mesmo envolvido em outros proje-


tos, quando decidiu voltar à série, sabia bem on-


de estava pisando. “É como reencontrar um gru-


po de amigos com os quais você deixou uma con-


versa no meio, mas nunca abandonou”, resume.


A


pandemia do coronavírus


vem sendo comparada a ou-


tros surtos como os da peste


negra e da gripe espanhola, que desa-


fiaram a humanidade no passado.


Mas um dos precedentes citados não
tem nada a ver com contágio ou curva

de letalidade. Foi o pânico criado pela


ameaça de colapso do sistema financei-


ro mundial com a falência do banco Leh-


man Brothers em 2008. A comparação,


feita agora, é entre a rapidez com que


aquela crise bancária foi resolvida, ou
atenuada, e a incompetência e a confu-

são com que o governo de Donald


Trump reage, hoje, à pandemia, depois


de ter negado a sua importância, como


fez o Bolsonaro, e demorado a adotar as


medidas para enfrentá-la com um míni-


mo de seriedade.


A quebra do Lehman Brothers culmi-


nou em um período de banditismo sem


controle, principalmente no mercado


imobiliário americano, que encheu ban-


queiros de dinheiro enquanto ludibria-


va milhares de compradores incapazes


de pagar suas hipotecas, e acabou explo-


dindo todo o sistema. Ou fingindo que


explodia, porque a solução foi decidida


numa reunião de CEOs assustados e au-
toridades compreensivas, a portas fecha-

das, com o governo se comprometendo


a salvar as financeiras dos próprios ex-


cessos. Numa encenação dessa reunião


histórica em que a intervenção do gover-


no ficou acertada, ouve-se uma voz ao


fundo dizendo, num tom plangente:


“Mas... Isso é socialismo!”.


Foi por essa época que começou a


ser usada a expressão “grandes demais


para quebrar”, referindo-se especifica-


mente aos bancos, mas valendo para


qualquer corporação com mais tama-


nho do que juízo à procura de absolvi-


ção. Lembrando a decisão da hierar-


quia da Igreja medieval de criar um Pur-


gatório para acolher a alma de quem
enriquecia com a usura, que assim con-

tinuaria a ser pecado, mas um peca-


do tolerável aos olhos de Deus, sem


o risco de o cristão ser mandado dire-


tamente o para o Inferno.


A Igreja era grande demais para


ser desmentida por um dos próprios


dogmas. Em 2008, o realismo práti-


co evitou que um sistema financeiro


mundial grande demais desmoro-


nasse, mesmo com o vexame de ser


chamado de socialista. Em 2020, o


Trump custou, mas se convenceu


de que a situação exigia seriedade.


Já o nosso Bolsonaro continua viven-


do dentro do seu ego, num longín-


quo mundo de fantasia onde a reali-
dade não chega.

LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE
ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Distopia. Em


um cenário


urbano, o


quadrinho


retrata uma


estranha


epidemia


que se


espalha por
adolescentes

que adquirem


certas


habilidades


especiais


Grande demais


HQ. A trilogia ‘O Beijo Adolescente’, de


Rafael Coutinho, volta ao mercado pela


Todavia em um volume único que ganhará


mais dois livros, esses ainda inéditos


Uma ópera


lisérgica


O BEIJO


ADOLESCEN-


TE – VOL. 1


Autor:


Rafael


Coutinho


Editora:


Todavia


(104 págs.,


R$ 59,90)


FOTOS EDITORA TODAVIA

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C6 Caderno 2 QUINTA-FEIRA, 19 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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