O Estado de São Paulo (2020-03-19)

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F6 Metrópole QUINTA-FEIRA, 19 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


‘VOU MORRER DE FOME.


NÃO DE CORONAVÍRUS’


Gonçalo Junior


Voos cancelados de surpresa,


hotéis fechados por causa da


quarentena para evitar a dis-


seminação do coronavírus e


pouco dinheiro no bolso. Es-


se é o drama de vários brasilei-


ros que viajaram ao exterior,


mas não conseguem retornar


ao País. O Ministério de Rela-


ções Exteriores estima que


milhares de pessoas – não há


dados precisos – estão nessa


situação após vários países


restringirem ou vetarem a cir-


culação em seus territórios.


No Marrocos, a produtora de


eventos Raquel Del Rey e um


grupo de 11 brasileiros ficaram


desalojados depois que o hotel


Meriem, em Marrakesh, entrou


em quarentena na terça e não


aceitou renovar a estadia. O go-


verno determinou o fechamen-


to de hotéis, bancos e até super-


mercados naquela tarde. “Fo-


mos retirados do hotel e não tí-


nhamos para onde ir”, diz Fer-


nanda Abreu, profissional da


área de transportes internacio-


nais que faz parte do grupo.


A saída foi apelar para a hospi-


talidade marroquina. Depois de


passar boa parte do dia no aero-


porto da cidade, os brasileiros


contaram com a generosidade


do guia Hamid Yakoubi, da
agência de viagem Marrocos Ex-

pedições, que ofereceu hospe-


dagem e alimentação.


Agora, o grupo tenta voltar


em uma aeronave da TAP, que


vai repatriar portugueses. Para


finalmente tentar concluir a via-


gem de férias, Raquel deve de-


sembolsar mais R$ 9 mil. Ela


afirma que ainda não é o mo-


mento de somar os gastos ines-


perados. “Ainda não sei o tama-


nho do buraco”, revela.


Em Portugal, um grupo de 60


pessoas não consegue deixar


Lisboa por causa da escassez de


voos. Apesar da decisão da


União Europeia de fechar todas


as fronteiras externas, as com-


panhias aéreas foram autoriza-


das a realizar voos saindo de


Portugal para nações lusófonas


até a meia-noite de ontem. Dian-


te das dificuldades, vários brasi-
leiros foram ao Consulado-Ge-

ral do Brasil em Lisboa pedir aju-


da. O órgão aceitou pagar esta-


dias em um albergue e refeições


em restaurante popular.


Uma das beneficiadas foi a de-


signer gráfica Isadora Lucas, de


32 anos. Ela e o marido estão


desde o dia 3 na Europa, mas


decidiram encurtar a viagem,


pois os principais pontos turísti-


cos estão fechados. O novo voo


está marcado para amanhã,


mas ela reclama que as compa-
nhias estão cobrando valores al-

tos. “No domingo, estava R$ 1,7


mil e na segunda-feira já passou


para R$ 8 mil.”


Trancada. Entre os brasileiros


impedidos de voltar, Josana Sil-


va vive uma situação ainda mais


delicada: não pode nem sair da


casa em que está na Argentina.


Hospedada na residência de


amigos, a estudante de 33 anos


tem de obedecer à quarentena


imposta aos estrangeiros que


chegaram ao país. São 14 dias de


reclusão. Asmática, o que signi-


fica estar no grupo de risco, e


mãe de dois filhos (2 e 9 anos),


ela não sabe o que fazer.


Josana foi visitar alguns ami-


gos em El Bolson, província de


Rio Negro, na Patagônia, no dia


7 de março. A intenção era ficar


15 dias. Com a crise do coronaví-


rus e o fechamento das frontei-
ras na segunda-feira, a viagem

virou um pesadelo. No cenário


atual, ela precisaria esperar até


o dia 21, sem sair de casa, para


pegar o seu voo de Bariloche a


Campinas. Mas o voo foi cance-


lado. O transporte aéreo e ter-


restre deve ser liberado no país


vizinho apenas no dia 25. Segun-


do a brasileira, a embaixada re-


comendou que ela permaneces-


se na casa dos amigos, para evi-


tar nova quarentena caso fosse


flagrada, e pedisse ajuda aos


pais, de Ribeirão Preto.


Há ainda um grupo de brasilei-


ros presos no Peru, país que de-


terminou confinamento e fe-


chou as fronteiras. Ontem, a


Gol e a Latam informaram que


entraram em acordo com o go-


verno e vão buscar os brasilei-


ros no Peru. As duas empresas


estão em contato com o Minis-


tério das Relações Exteriores e
a Agência Nacional de Aviação

Civil (Anac) para definir datas e


quantidade de voos.


Segundo o Itamaraty, há cer-


ca de 3,7 mil turistas brasileiros


no Peru. O órgão informou que


a Embaixada do Brasil teve auto-


rização para que saíssem e está


acompanhando a “delicada si-


tuação”./ COLABORARAM IDIANA


TOMAZELLI, MARLLA SABINO e

AMANDA PUPO

Fernanda Massarotto


Paula Acosta / MILÃO


P


rofissionais que perde-


ram o emprego. Indiví-


duos com algum tipo de


dependência química que


abandonaram as famílias. As


histórias podem ser as mais di-


versas, mas os protagonistas,


espalhados por toda a Itália, vi-


vem em um endereço co-


mum: as calçadas das cidades.


Com a epidemia de coronaví-


rus, com razão, a expressão “iores-


toacasa” (eu fico em casa) se


transformou em um mantra no


país. Mas no território de 60 mi-


lhões de habitantes nem todo


mundo pode se fechar em uma re-


sidência: estima-se que 50 mil pes-


soas usem o asfalto como leito.


Em Milão, capital da Lombar-


dia, a região mais atingida pela


doença, o número de pessoas em


condição de rua gira em torno de


3 mil, variando de acordo com as


estações do ano. Entre eles está o


ex-pintor e tapeceiro Pasquale


Murano, de 53 anos, que veio de


Reggio Calábria, no extremo sul


do país. “Cheguei aqui em 1995.


Lá na minha cidade não encontra-


va mais trabalho. Por seis anos fui


pintor e tapeceiro. Mas aí tive de


amputar parte da perna direita


por diabete, perdi o emprego, ca-


sa e até a namorada. O jeito foi


perambular mesmo e de cadeira


de rodas”, relata o italiano.


O momento mais difícil para


Pasquale é à noite. Ele afirma que


nem sempre consegue um lugar


nos dormitórios da cidade e não


há acesso a banho e itens de higie-


ne. A solução é mesmo embaixo


dos viadutos da estação de trem.


“Vou acabar é morrendo de fo-


me e não de coronavírus.”


A rotina dos sem-teto em Mi-


lão é quase sempre a mesma. Du-


rante o dia, vagam pelas ruas e à


noite buscam abrigo nos dormitó-


rios. Mas muitos preferem fi-


car ao relento. A polícia os leva


para os abrigos, mas há sem-


pre os que retornam. “Não sa-


bemos mais o que fazer. Mul-


tá-los, retirá-los ou deixá-los”,


conta um policial.


Moradores de rua em Milão relatam falta de acesso a banhos e itens de higiene;


à noite, há quem procure dormitórios, mas muitos preferem ficar ao relento


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


lA Itália já registra 2.978


mortes. Em 24 horas, foram


475, segundo informações do
último balanço divulgado pelo

chefe da Defesa Civil, Angelo


Borreli. Trata-se do maior nú-


mero de óbitos em um dia des-


de o começo da crise origina-


da na China e detectada em


dezembro. / COM AGÊNCIAS


lDesespero


Um novo estágio da disputa EUA-China por supremacia


l]


CLÁUDIA


TREVISAN


Ao contrário de antecessores,


Donald Trump age sem


consultar seus parceiros


europeus; Xi Jinping faz o


contrário e oferece ajuda


Moro avalia


fechar as


fronteiras


Maior número de


mortes em um dia


ACERVO PESSOAL / JOSANA SILVA

Brasileiros


no exterior


pedem ajuda


para voltar


“Estou nervosa e meus pais,


desesperados. Não tenho


cartão de crédito para


comprar outra passagem.”


Josana Silva


BRASILEIRA IMPEDIDA DE DEIXAR A

ARGENTINA

Com voos cancelados, hotéis fechados e


quarentena, grupos enfrentam dificuldades


Expectativa. Josana (D) ao lado das irmãs argentinas Adriana Otermin e Maria Otermin


Dois meses depois da explosão da cri-


se de 2008, o ex-presidente america-


no George W. Bush recebeu em


Washington os líderes do G-20, que


já articulavam uma resposta coorde-


nada ao maior terremoto que chacoa-


lhou a economia mundial desde



  1. A liderança dos EUA no esforço


global de conter os efeitos da deba-


cle financeira foi reforçada por Ba-


rack Obama, que assumiu a Casa


Branca em janeiro de 2009.


No atual tsunami de coronavírus, o


presidente da maior economia do mun-


do está longe de desempenhar o papel


de maestro de ações coordenadas que
possam minimizar o impacto do desas-

tre. Pelo contrário. Donald Trump age


sem consultar seus aliados europeus e


está em rota de colisão com a China que


dificulta qualquer ação conjunta.


Depois da guerra comercial, o coro-


navírus parece ser o novo estágio da


disputa por supremacia entre as maio-


res economias do mundo. Pequim co-


meteu uma série de erros nas semanas


iniciais da epidemia, entre dezembro e


janeiro. Os mais graves foram a supres-


são de informações sobre o novo vírus


e a demora em adotar medidas drásti-


cas para combatê-lo. Agora que parece


ter a situação sob controle, com redu-


ção no número de novos casos, o presi-


dente Xi Jinping ocupa novamente o


vácuo deixado pelos EUA e tenta assu-


mir o papel de liderança na crise global.


Nos últimos dias, Xi telefonou para


líderes de países europeus afetados pe-
lo coronavírus para oferecer auxílio e

despachou médicos e kits de testes pa-


ra a Itália e outras regiões. Esse papel


era desempenhado pelos EUA, como


ficou evidente na epidemia de ebola.


Em outra inversão de papéis, o bilioná-


rio chinês Jack Ma, dono do Alibaba,


anunciou a doação de 500 mil kits e de 1


milhão de máscaras aos EUA.


Trump despreza arranjos multilate-


rais e sua promoção da “América em


Primeiro Lugar” mina a credibilidade


dos EUA como líder global. Na semana


passada, o humor na Europa em rela-


ção ao atual ocupante da Casa Branca


azedou ainda mais depois que a im-


prensa reportou a tentativa de Trump


de comprar os direitos, para uso exclu-


sivo dos EUA, de uma vacina contra o


coronavírus que está sendo desenvol-


vida pelo laboratório alemão CureVac.


A informação causou indignação na


Alemanha. “Pesquisadores alemães es-
tão tendo um papel de liderança no de-

senvolvimento de medicamentos e va-


cinas como parte de uma rede global


de cooperação”, disse o ministro das


Relações Exteriores do país, Heiko


Maas. “Nós não podemos permitir


uma situação em que outros queiram


adquirir exclusivamente os resultados


de suas pesquisas.”


A imagem de união que se viu em


2008 parece não estar no horizonte


agora. A máquina de propaganda da


China também dificulta a cooperação


ao divulgar que o coronavírus pode


não ter se originado no país – o que


contraria todas as evidências. Segun-


do a teoria da conspiração Made in Chi-


na, o vírus poderia ter sido levado a


Wuhan por militares americanos que


fizeram exercícios na província em


outubro. Em resposta, Trump tem


se referido ao coronavírus como “ví-


rus chinês”, o que enfurece Pequim.
A tensão entre as duas maiores eco-

nomias do mundo aumentou ainda


mais com o anúncio sem preceden-


tes da expulsão de 13 jornalistas ame-


ricanos da China. É um indício de


que o relacionamento bilateral po-


de se deteriorar ainda mais, no mo-


mento em que a economia global


precisa ser socorrida por uma res-


posta coordenada. Pelo que se viu


até agora, Trump não parece estar


disposto a liderar esse esforço.


]


JORNALISTA E PESQUISADORA NÃO RESI-

DENTE DO INSTITUTO DE POLÍTICA EX-

TERNA DA ESCOLA DE ESTUDOS INTERNA-

CIONAIS AVANÇADOS DA UNIVERSIDADE

JOHNS HOPKINS

Artigo


ALESSANDRO DI MARCO / EPA / EFE

Sem-teto. No país, 50 mil pessoas usam o asfalto como leito


Itália


Marlla Sabino


Idiana Tomazelli


Amanda Pupo / BRASÍLIA


O ministro de Justiça e Seguran-


ça Pública, Sergio Moro, afir-


mou que o governo federal ava-


lia fechar, temporariamente, as


fronteiras com outros países pa-


ra evitar a propagação do coro-


navírus. Ontem, o presidente


Jair Bolsonaro participou, por


videoconferência, de reunião


com demais presidentes do


Mercosul. Até o momento, o


País só restringiu a entrada de


venezuelanos. De acordo com o


ministro, a medida foi para não


sobrecarregar o sistema de saú-


de brasileiro. “O País não teria
condições de absorver a deman-

da vinda da Venezuela.”


Ontem, o Paraguai bloqueou


a Ponte da Amizade, entre Ciu-


dad del Este e Foz do Iguaçu, no


Paraná. A passagem é a princi-


pal ligação entre os dois países e


recebe 40 mil veículos por dia,


além de 100 mil pessoas a pé.


Conforme o Ministério do In-


terior do Paraguai, a restrição


atinge paraguaios e estrangeiros,


incluindo brasileiros em situa-


ção irregular, que moram no país


e ficam proibidos de sair do Para-


guai. Afeta também os brasilei-


ros que cruzam a ponte para fa-


zer compras no lado paraguaio.


Parte dos 7 mil moradores de Foz


do Iguaçu, que trabalha no co-


mércio de Ciudad del Este, che-


gou a ser impedida de cruzar a


ponte ontem, mas os que não de-


sistiram acabaram liberados. O
bloqueio não atinge veículos

com mercadorias e paraguaios


em tratamento médico no Brasil.


Presídios. Moro também anun-


ciou que enviará insumos para


barrar a disseminação da doen-


ça entre os presos.


A União recomendou aos Es-


tados que as visitas sejam res-


tringidas. / COLABOROU JOSÉ MARIA


TOMAZELA
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