O Estado de São Paulo (2020-03-20)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-12:20200320:


A12 SEXTA-FEIRA, 20 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Internacional


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Fernanda Simas


No mundo inteiro, o maior te-
mor ligado ao coronavírus é a
falta de leitos em hospitais e
UTIs. Na Venezuela, que so-
brevive a duras penas à crise
econômica, a preocupação é
que a pandemia cause o colap-
so do sistema de saúde por
motivos mais básicos. Na
maior parte da rede de atendi-
mento, faltam água e luz.

“Já está comprovado que a
medida mais efetiva e simples
para deter o coronavírus é lavar
as mãos e 58% de nossos hospi-
tais não têm água. Ou seja, pode
ser um desastre a propagação
do vírus dentro deles”, disse o
médico venezuelano José Ma-
nuel Olivares Marquina, que
chefiou a comissão de desenvol-
vimento social da Assembleia
Nacional.


Segundo pesquisa feita entre
novembro de 2018 e setembro
de 2019, em 104 hospitais de 22
Estados venezuelanos, no ano
passado, ao menos 70% dos hos-
pitais tiveram fornecimento de
água apenas uma ou duas vezes
por semana e 63% reportaram
falta de energia elétrica, sendo
que 164 mortes foram atribuí-
das a esses problemas.
“Lamentavelmente, a arro-
gância de nosso governo nos tor-
nou o país mais vulnerável para
combater o coronavírus, o que
menos está preparado na Améri-
ca Latina. De cada dez remédios
necessários para combater
doenças, cinco estão em falta”,
afirma o médico, que deixou a
Venezuela no ano passado.
No começo de março, a presi-
dente da Sociedade Venezuela-
na de Infectologia já havia aler-
tado para o impacto do corona-

vírus. “Não quero fazer proje-
ções, mas o impacto seria rele-
vante, já que os recursos são pre-
cários”, afirmou María Graciela
López. Segundo a agência Fran-
ce Presse, no Hospital Clínico
Universitário de Caracas, os pa-
cientes são recebidos em corre-
dores mal iluminados, enquan-
to funcionários carregam potes
de água, pois o sistema de forne-
cimento não funciona. O local é
um dos 46 sob supervisão mili-
tar que o governo designou pa-
ra atender casos da covid-19.
“Considerando os hospitais
públicos e privados, há apenas
80 leitos de UTI disponíveis, ou
seja, se muita gente precisar de
auxílio respiratório, será o
caos”, diz Marquina. Segundo a
Rede Defendamos a Epidemio-
logia Nacional, o número de lei-
tos em UTI em hospitais de refe-
rência escolhidos pelo governo

é de 206, sendo que metade está
em Caracas. Em 53% dos hospi-
tais, não havia máscaras no iní-
cio de março e 90% carecem de
um protocolo para o coronaví-
rus, de acordo com pesquisa da
ONG Médicos pela Saúde.
Até quarta-feira, a Venezuela
tinha 36 casos confirmados de
coronavírus, mas nenhuma
morte informada. O governo de
Nicolás Maduro pediu às pes-
soas que não saiam de casa e de-
clarou “quarentena total”. Os
voos para o exterior estão qua-
se totalmente suspensos e as au-
las foram interrompidas.
“Não há um modelo mate-
mático para prever como será o
crescimento dos casos na Vene-
zuela. Mas, qualquer que seja o
modelo, a Venezuela não tem
capacidade de responder”, ex-
plica Marquina. “Os serviços de
apoio a diagnósticos apresen-

tam falhas importantes na ope-
ração e isso afeta a capacidade
dos hospitais de realizar desde
estudos mais básicos até os
mais complexos, o que significa
para o paciente não ter diag-
nósticos a tempo, tendo que
por vezes pagar para saber se

possui determinada doença”.
Segundo estudo da rede de
atendimento, 58% das máqui-
nas de raio X da Venezuela estão
inoperantes, ou seja, mais da me-
tade dos hospitais de referência
não tem capacidade de fechar
diagnósticos de doenças na re-
gião do tórax. Entre abril e junho
de 2019, com o aumento dos apa-
gões, o serviço ficou ainda pior.
No caso dos laboratórios, 55%
estão inoperantes. Segundo a
pesquisa, 85,6% dos serviços de
tomografia e ressonância mag-
nética não funcionam – apenas
10% operam de forma comple-
ta. “O sistema não era perfeito
antes (da era Maduro), mas fize-
mos levantamentos do que era
necessário mudar e Maduro não
deu importância. Teve muita de-
terioração do sistema durante a
crise. Hoje, há uma debilidade
grande”, afirma Marquina.

Centros de atendimento públicos e privados já sofrem com escassez de remédios e equipamentos em razão da crise econômica;


situação é mais grave porque na maioria dos hospitais venezuelanos falta insumos ainda mais básicos, como água e luz


D


os aparentes cinco está-
gios de sofrimento, a res-
posta da humanidade à
epidemia do covid-19 se fi-
xava em três: negação (isso não vai
ocorrer conosco), cólera (é falha de
outro governo, ou do nosso gover-
no) e barganha (se fizermos mudan-
ças modestas no nosso modo de vi-
da, ele nos deixará em paz).
Segunda-feira, 16 de março, foi o
dia em que os últimos vestígios des-
sas estratégias de luta evaporaram.
Boa parte do mundo passou para o
estágio seguinte, a conscientização
desanimadora de que bilhões de vi-
das serão gravemente afetadas du-
rante semanas e, provavelmente,

meses; que antes que tudo isto acabe,
muitas pessoas morrerão; e as implica-
ções econômicas da pandemia vão
além do medonho.
Com as bolsas americanas vivendo
um dos piores dias da sua história, em
muitos países a implementação gra-
dual de medidas relativamente modes-
tas contra o vírus deu lugar a restrições
draconianas de viagem e da vida coti-
diana, o que parecia ser a adoção de
estratégias diferentes.
EUA e Reino Unido adotaram medi-
das mais brandas. A abordagem britâni-
ca era de que, como o pior ainda estava
por vir, não tinha sentido semear o pâ-
nico. Os dois países foram lentos na
instituição de testes generalizados pa-
ra se ter uma melhor noção de quantas
pessoas já estavam infectadas. “Se acal-
mem, estamos trabalhando muito
bem”, disse o presidente Donald
Trump, no dia 15.
Boris Johnson qualificou a pande-
mia como “a pior crise de saúde públi-

ca em uma geração”, mas a resposta do
seu governo não significou fechamen-
to de escolas.
Outros países já haviam estabeleci-
do medidas mais severas. A província
chinesa de Hubei, que abriga 60 mi-
lhões de pessoas, ficou em quarentena
por quase dois meses. A Coreia do Sul
realizou testes para o vírus em cente-
nas de milhares de pessoas.
Nos últimos dias, a China abrandou
as restrições e, cautelosamente, sau-
dou uma vitória pelo menos parcial na
luta contra o vírus. Mas ainda prematu-
ra. Hong Kong, Cingapura e Taiwan ob-
servaram nesta semana novas infec-
ções depois de, aparentemente, terem
inibido a propagação do vírus.
Depois do dia 16, as diferenças entre
os países parecem menos nítidas. John-
son disse à população para trabalhar
de casa. A mudança de abordagem foi
justificada: “Parece que estamos nos
aproximando do ponto de crescimen-
to rápido da curva ascendente”.
No mesmo dia, Trump determinou
novas diretrizes, mais rígidas, incluin-
do a proibição de reuniões com mais
de 10 pessoas. Na França, o presidente
Emmanuel Macron declarou que “esta-
mos em guerra” contra o vírus.
Por outro lado, o número de países
que fecharam suas fronteiras para pes-
soas vindas de países com infecções
aumentou para mais de 80.
Um comunicado conjunto dos líde-
res do G-7 parece ter prenunciado a
fase de cooperação internacional, de-
pois de um período em que as disputas
eram mais flagrantes do que a coorde-

nação. Na verdade, o alarde de solida-
riedade internacional e de abordagem
compartilhada no combate ao vírus
são falsos. Os países ainda vêm adotan-
do estratégias divergentes e parecem
estar competindo para mostrar que
seu método tem a melhor chance de
sucesso.
Pouco depois de Johnson anunciar
as mais recentes medidas em seu país,
Macron implementou uma estratégia
ainda mais abrangente: ninguém pode
mais deixar sua residência, salvo para
comprar produtos de primeira necessi-
dade, ir ao médico ou realizar traba-
lhos que não podem ser feitos em casa.
Os países mais poderosos do mun-
do, Estados Unidos e China, nesse in-
tervalo, entraram em um jogo de lan-
çar a culpa um no outro. Trump irritou
os líderes chineses ao se referir ao “ví-
rus chinês”. Mas as autoridades chine-
sas também foram culpadas de empres-
tar seu nome a uma bizarra teoria de
conspiração de que o vírus foi criado
pelo Exército americano.
Se a cooperação internacional na ba-
talha contra o vírus tem sido ruim, pe-
lo menos os bancos centrais e outras
autoridades monetárias vêm traba-
lhando em parceria para conter as re-
percussões econômicas. A decisão do
Federal Reserve (o BC americano) de
reduzir os juros a quase zero, numa in-
tervenção de emergência, no dia 15, es-
tá em sintonia com as decisões de mui-
tos outros bancos centrais.
Mais importantes são os esforços
dos bancos centrais para manter o
crédito fluindo antes que empresas e

os bancos a quem devem dinheiro
quebrem.
Muitos governos anunciaram
grandes pacotes para respaldar a
economia. No dia 17, o ministro bri-
tânico das Finanças, Rishi Sunak,
prometeu liberar US$ 400 bilhões
em empréstimos, subvenções e ga-
rantias para as empresas. A França
deve liberar US$ 50 bilhões de ajuda
às companhias. Trump quer que o
Congresso aprove despesa extra de
US$ 1 trilhão.
Os apertos pelos quais passam as
instituições financeiras ainda não
são tão fortes como se verificou du-
rante a crise financeira global. Mas
os desacordos quanto à maneira de
enfrentar o coronavírus e de atri-
buir a culpa por sua propagação não
são um bom augúrio para uma coo-
peração futura para impedir que os
sistemas financeiros afundem.
E, nesse ínterim, cada medida eco-
nômica, ou contra o vírus, que os
governos introduzirem servem só
em parte para aumentar a percep-
ção de que os políticos estão enfren-
tando com dificuldade um adversá-
rio que ainda não compreendem e,
consequentemente, agravando o pâ-
nico que já vem crescendo. /
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

]
© 2020 THE ECONOMIST NEWSPAPER
LIMITED. DIREITOS RESERVADOS.
PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO
ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM
WWW.ECONOMIST.COM

Sistema de saúde da Venezuela pode


entrar em colapso com coronavírus


l Ameaça

ARIANA CUBILLOS/AP

“Já está comprovado
que a medida mais efetiva e
simples para deter o
coronavírus é lavar as
mãos e 58% de nossos
hospitais não têm água.
Ou seja, pode ser um
desastre a propagação
do vírus dentro dos
hospitais”
José Manuel
Olivares Marquina
MÉDICO VENEZUELANO

Em alerta. Câmara de descontaminação montada na entrada de um mercado popular de Caracas: coronavírus coloca em risco um sistema de saúde já fragilizado pela crise econômica


Governos do mundo


todo têm dificuldade


para reagir ao vírus


Com proibição de viagens e confinamento obrigatório,
estratégias de resposta à pandemia são diferentes
Free download pdf