O Estado de São Paulo (2020-03-20)

(Antfer) #1

Caderno 2


Grandes óperas


de graça em casa


Instituições como


Metropolitan exibem
espetáculos na web

Pág. C4

Romance


pioneiro


Ubiratan Brasil

Tudo começou em um sábado,
dia 20 de março de 1920. O jor-
nal carioca A Folha , hoje extin-
to, publicou o primeiro capítu-
lo de um romance, O Mystério ,
que se tornaria histórico. Afi-
nal, com a divulgação de seu epí-
logo, no dia 20 de maio, estava
também encerrada a primeira
trama policial da literatura bra-
sileira. E foi um sucesso, pois,
no mesmo ano, quando publica-
da em livro, a história conse-
guiu três edições.
“O mistério começava mes-
mo pela autoria do enredo”, co-
menta Tito Prates, um dentista
e administrador de empresas
que, de tão apaixonado por his-
tórias policiais, tornou-se espe-
cialista nesse gênero – especial-
mente na obra de Agatha Chris-
tie. “Logo no início da publica-
ção, que era diária, o leitor sabia
que os capítulos eram assina-
dos alternadamente por Coe-
lho Neto, Afrânio Peixoto, Viria-
to Corrêa e um quarto autor
identificado apenas como ‘&’.
Logo se descobriu que se trata-
va de Medeiros e Albuquerque,
que também era proprietário
do jornal.”
Aos leitores da época, foi ofe-
recido o convite para acompa-
nhar dois desafios – primeiro,
o da própria trama policial e
seu mistério habitual; o segun-
do era acompanhar como cada
um dos quatro autores se des-
dobravam para escrever seu ca-
pítulo. É que nenhum deles sa-
bia o teor da escrita do outro.
“Com isso, Coelho Neto, por
exemplo, só dava prossegui-
mento à história depois de ler,
no próprio jornal impresso, o
que seu antecessor produziu”,
conta Prates.
Segundo o historiador, que
preside a Associação Brasileira
dos Escritores de Romance Po-
licial, Suspense e Terror, os
quatro autores de O Mystério
deram características distin-
tas ao romance. “Enquanto
Afrânio era mais poético, Coe-
lho Neto puxava mais para o
humor. Aliás, esse é um deta-
lhe importante porque o cômi-
co predomina em muitas passa-
gens da história.”
De fato, para exemplificar,
basta selecionar uma das últi-
mas frases, escrita por Afrânio
Peixoto: “Nos crimes, só lu-
cram a Polícia e a Justiça. Se os
criminosos soubessem...”
É justamente o tom jocoso
que torna O Mystério muito pe-
culiar, pois, apesar de a trama
começar com um crime, já des-
pertando uma investigação, os
passos seguintes apostam
mais no humor ao ressaltar os
infortúnios sofridos pela polí-
cia do Rio de Janeiro. O enredo
acompanha a trajetória de um
jovem pobre, Pedro Alberga-
ria, que tem um incontrolável
desejo de vingança de um ban-
queiro, Sanchez Lobo. O mo-
tivo é nebuloso – sabe-se ape-
nas que, no passado, houve
algum atrito entre eles.
“É um romance híbrido,
pois conversa com o misté-
rio típico do policial inglês,
tem pitadas de humor e ain-

da há um romance, cujo desfe-
cho é mais espetacular que a
própria resolução do crime”,
observa Tito Prates. A trama é
mirabolante, especialmente
quando o jovem Pedro, leitor
voraz de obras policiais, arqui-
teta o que considera um perfei-
to plano de vingança sem ser
descoberto.
O que o rapaz não espera é
ter de se deparar com figuras
únicas, como o detetive Mello
Bandeira, um major conheci-
do por “O Sherlock da Cida-
de”, pois se baseia nos méto-
dos dedutivos do personagem
criado por Conan Doyle. O hu-
mor aparece quando Bandeira

é ridicularizado por se basear
na ciência como base para a
investigação.
Prates lembra que foi Mon-
teiro Lobato quem primeiro
editou a história em livro, tão
logo encerrou a publicação em
capítulos no jornal. E, apesar
de estrondoso sucesso na épo-
ca (ao final de 1928, já na tercei-
ra edição, totalizava dez mil có-
pias vendidas), o livro caiu no
ostracismo para não mais ga-
nhar uma nova edição. E conti-
nua sem editora porque um de
seus autores, Viriato Corrêa,
foi o último dos quatro auto-
res a morrer, em 1967, não so-
mando, portanto, o tempo
mínimo (75 anos e um mês)
para que uma obra caia no do-
mínio público. “Também não
deixou herdeiros, o que difi-
culta uma negociação”,
complementa Prates.

C


omo nos tempos da Atlântida, a cara
do gênero policial no Brasil já foi
uma paródia de detetive com perfil
de Amigo da Onça – o Ed Mort, de Luis Fer-
nando Verissimo, um gênio do humor fino
e inteligente. Pouca gente se lembra do
paulistano Luiz Lopes Coelho com seu de-
tetive, o Dr. Leite, mas Otto Maria Car-
peaux sustentava que o autor de A Morte
no Envelope e O Homem Que Matava Qua-
dros foi o primeiro grande contista policial

brasileiro. A maioria da crítica, por desco-
nhecimento ou o que, prefere apontar Ru-
bem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza
como pais do policial brasileiro. Méritos à
parte, não são.
Um dos maiores romances da literatura
brasileira carrega o enigma, senão o misté-
rio – Capitu, a dos olhos de ressaca, traiu
Bentinho, em Dom Casmurro? O gênero já
foi privilégio de autores infantojuvenis.
Cardoso Gomes, com o investigador Dou-
glas Medeiros, e Pedro Bandeira, com Os
Karas e O Fantástico Mistério de Feiurinha.
No cinema, se houve um gênero que se
transformou em espelho da identidade na-
cional, foi a chanchada carnavalesca, com
sua estética da paródia. O filme de canga-
ço, o “nordestern”, foi o western brasilei-

ro. Houve tentativas de policiais: Quem
Matou Anabela? , com direito a investiga-
ção do Comissário Ramos, o lendário Pro-
cópio Ferreira.
São considerados clássicos Mulheres e Mi-
lhões , com a revelação final, e O Assalto ao
Trem Pagador , com a oposição entre morro
(Tião Medonho) e asfalto (Grilo), em 1961 e

62. No final da década, com O Bandido da
Luz Vermelha
, o policial brasileiro forjou
nova identidade e tornou-se marginal. Na
literatura, se impuseram Luiz Alfredo Gar-
cia-Roza e o delegado Espinoza, Rubem
Fonseca e o advogado Mandrake, Tony Bel-
lotto e o investigador Bellini. Todos ganha-
ram versões para cinema e TV.

Com formação psicanalítica, Garcia-Ro-
za detesta os finais fechados. Deixa o leitor


aguçado, para forçá-lo a refletir sobre o
que leu. Bellotto revela olhar acurado so-
bre o submundo em Bellini e a Esfinge e sua
mulher, Malu Mader, é deslumbrante co-
mo a prostituta Fátima, na boa adaptação
por Roberto Santucci. Quanto a Rubem
Fonseca, seus melhores escritos não per-
tencem ao gênero, por mais que a gente
possa se divertir com Mandrake (e Marcos
Palmeira, que faz o papel na série de José
Henrique Fonseca, filho do escritor).
Patricia Melo, uma rara mulher no gê-
nero, atuante em literatura, teatro, TV e
cinema, começou refém do estilo de Ru-
bem Fonseca. Em 2019, trouxe o feminicí-
dio para o debate, com Mulheres Empilha-
das. Pode não ser grande literatura, mas
tem fôlego.

Literatura. Há exatos 100 anos, era editada


‘O Mystério’, primeira história policial do País


]
ANÁLISE: Luiz Carlos Merten

Gênero vai de paródia


de detetive a discussão


de temas atuais do País


ARTE DIOGO SHIRAIWA

%HermesFileInfo:C-1:20200320:C1 SEXTA-FEIRA, 20 DE MARÇO DE 2020 ANO XXXIV – Nº 11599 O ESTADO DE S. PAULO

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