O Estado de São Paulo (2020-03-20)

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O ESTADO DE S. PAULO SEXTA-FEIRA, 20 DE MARÇO DE 2020 Metrópole F3


Marcelo Godoy
Tânia Monteiro / BRASÍLIA


As Forças Armadas vão atuar
em todo o País para apoiar as
ações de combate à pandemia
de covid-19. Os militares de-
vem ajudar a controlar passagei-
ros em portos e aeroportos e


apoiar ações na faixa de frontei-
ra, além de ajudar na triagem de
pacientes e na realização de tes-
tes farmacêuticos.
A exemplo de outros países,
os militares devem ser emprega-
dos em ações conjuntas com
agências e órgãos federais e esta-
duais nas áreas da Saúde e da
Segurança Pública. A autoriza-
ção foi dada ontem por meio de
portaria do Ministério da Defe-
sa publicada no Diário Oficial.
Não se trata do emprego das
Forças Armadas em Garantia
da Lei e da Ordem (GLO), co-
mo normalmente ocorre. Tra-

ta-se de operação “de apoio às
ações dos órgãos de saúde e de
segurança pública”, segundo a
medida assinada ontem pelo mi-
nistro da Defesa, general Fer-
nando Azevedo e Silva, que cria
a Operação Covid-19.
“O Estado deve usar toda a
capacidade que tem e pode mo-
bilizar para uma crise como es-
sa”, afirmou o cientista político
Eliezer Rizzo de Oliveira. “Este
é um uso muito digno, necessá-
rio e muito patriótico de nossos
militares para a Defesa do
País.” Ontem, a Alemanha anun-
ciou que pôs as Forças Armadas

de prontidão no mesmo dia em
que países como Chile e Jordâ-
nia anunciaram o uso de seus
militares. Na Itália, o Exército
ajuda no controle de cidades.
No caso do Brasil, as Forças
terão de planejar o apoio logísti-
co a órgãos federais. A Marinha
ajudará a controlar passageiros
nos portos e a Força Aérea, nos
aeroportos. O Exército vai auxi-
liar a fiscalização da fronteira e
deve empregar meios da defesa
biológica e química para a des-
contaminação de material.
Os civis e militares do minis-
tério devem participar de cam-

panhas de conscientização,
além de apoiar a triagem de pes-
soas suspeitas de contamina-
ção. O apoio dos militares aos
Estados depende de pedido dos
governadores.
Como as Forças Armadas

dispõem de pessoal qualifica-
do, elas colocarão à disposição
médicos e enfermeiros, que po-
derão realizar triagem em uma
espécie de hospital de campa-
nha, por exemplo, ou em barra-
cas que poderão ser montadas,
à medida que houver agrava-
mento da crise.
Os pacientes receberiam um
primeiro atendimento nestes
locais mais improvisados e se-
riam, em seguida, distribuídos
para a rede de saúde local. Co-
mo as Forças Armadas só
dispõem de cinco hospitais de
campanha efetivamente monta-
dos, está se discutindo a possibi-
lidade de utilização de barracas
e contêiner para atendimento,
tão logo seja necessário.

Forças Armadas vão ajudar a combater novo coronavírus


A exemplo de outros


países, militares vão


fazer ações conjuntas


com agências e órgãos


federais e estaduais


Gonçalo Junior


Familiares da primeira vítima
do coronavírus no Brasil recla-
mam da falta de acompanha-
mento do governo e da rede pri-
vada. Parentes que tiveram con-
tato com o porteiro aposentado
de 62 anos que morreu na segun-
da-feira informam que não fize-
ram testes sobre a contamina-
ção pelo novo coronavírus.
Na casa no bairro do Paraíso,
zona sul de São Paulo, onde mo-
rava o porteiro, viviam seis pes-
soas: pai, mãe e quatro irmãos.
A vítima era um dos irmãos. Ho-
je, estão internados o pai, de 83
anos, e dois irmãos, uma mu-
lher de 60 e um homem de 61.
Os três apresentaram proble-


mas respiratórios, como tosse,
febre e falta de ar.
O patriarca está no Hospital
Sancta Maggiori, da rede Pre-
vent Senior, na região do Itaim.
Seu estado é grave em função da
idade, diabete e problemas re-
nais. Os irmãos estão em UTIs
do Hospital do Servidor Públi-
co Municipal. Os resultados
dos testes dos três que estão in-
ternados devem sair hoje.
Existe uma preocupação adi-
cional da família com os familia-
res que não foram internados. A
mãe, de 82 anos, chegou a ser
hospitalizada na rede privada,
mas foi liberada no mesmo dia
após uma tomografia não detec-
tar os sintomas da doença. Ho-
je, ela está em casa, em quaren-
tena, sem apresentar sintomas,
tomando analgésicos. Está de-
solada com parte da família no
hospital e diz para todo mundo
ficar em casa e se prevenir.
A família afirma que não há
acompanhamento da mãe e,
além disso, os outros dois ir-

mãos não fizeram testes para
identificar a presença do vírus.
Todos tiveram contato com a
vítima. “A mãe e os dois irmãos
não estão tendo acompanha-
mento nenhum. Não há o me-
nor suporte. São os próprios fa-
miliares que estão cuidando de-
les”, diz o advogado Roberto Do-
mingues Junior.
A Secretaria Municipal de
Saúde se defende afirmando
que o Hospital Sancta Maggiore
não fez a notificação oficial do
caso e que, por isso, o órgão não
teria como fazer o acompanha-
mento. Em nota, informa que
determinou “uma investigação
rigorosa para esclarecer por

que o Hospital Sancta Maggiore
não cumpriu os protocolos do
Ministério da Saúde de notifica-
ção compulsória dos casos sus-
peitos de covid-19”.
A Prevent Senior rebate. “A
empresa mantém o atendimen-
to aos seus pacientes de acordo
com os critérios estabelecidos
pelo Ministério da Saúde e da
Organização Mundial da Saúde
como se pôde constatar na ins-
peção de hoje. Todas as informa-
ções relativas à pandemia são
diariamente repassadas às auto-
ridades competentes”, diz nota
da empresa.
De acordo com os familiares,
o porteiro começou a apresen-
tar mal-estar no dia 10 e procu-
rou um dos hospitais da rede.
Ele sentia dores nas pernas,
mas não tossia. Sem realizar
exames para a covid-19, foi
orientado a voltar para casa.
Quatro dias depois, sem melho-
ras, ele procurou o Hospital
Sancta Maggiore no Paraíso.
Chegou à unidade com dificul-
dade para respirar e febre. Foi
internado imediatamente. O
quadro piorou. No dia seguinte,
os médicos indicaram o com-
prometimento dos pulmões e o
risco de morte. Na segunda-fei-
ra, ele morreu.

Julia Lindner / BRASÍLIA


O Brasil já registrou 7 mortes
pelo novo coronavírus, no
Rio e em São Paulo, e a trans-
missão sustentada da doença
em pelo menos seis Estados.
Segundo o ministro da Saú-
de, Luiz Henrique Mandetta,
o crescimento da covid-19
tem ocorrido de forma nacio-
nal, o que dificulta o trabalho
de monitoramento.

Ontem, o governo do Rio con-
firmou a segunda morte pelo no-
vo coronavírus no Estado. Tra-
ta-se de um idoso de 69 anos
que morava em Niterói, na re-
gião metropolitana. Além de
idoso, ele era diabético e hiper-
tenso. O homem teve contato
com uma pessoa que voltou de
viagem ao exterior. Pouco an-


tes dessa confirmação, o gabine-
te de crise do governo estadual
havia confirmado a primeira
morte no Estado: uma idosa de
63 anos que morava em Miguel
Pereira, sul do Rio. Ela trabalha-
va como empregada doméstica
na capital e teve contato com a
patroa, que havia se infectado
após voltar de viagem da Itália.
Diabética e hipertensa, ela
não aparecia entre os casos con-
firmados no Estado. O idoso de
Niterói também não aparecia
entre os casos confirmados.
Em São Paulo, a Secretaria Es-
tadual da Saúde confirmou a
quinta morte pela doença. To-
dos os óbitos do Estado ocorre-
ram na capital. Em comum, as
vítimas eram homens com ida-
des acima de 60 anos e tinham
doenças pré-existentes. Com is-

so, são sete vítimas da covid-19
no País. Mas o Ministério da
Saúde registrava ontem apenas
seis. O País tem 621 casos confir-
mados da doença.
Segundo a pasta, há transmis-
são sustentada do novo corona-
vírus em ao menos seis Estados
brasileiros, o que preocupa as
autoridades. Mandetta disse on-
tem que o crescimento da co-
vid-19 tem ocorrido de forma

nacional, em bloco, o que pode
dificultar ainda mais o controle
da doença. Ele destacou que me-
didas mais duras de prevenção
podem ser adotadas na próxi-
ma semana caso a população
não siga medidas indicadas pela
pasta, como o isolamento.
Já foi identificada transmis-
são comunitária do vírus nos Es-
tados de São Paulo e Pernambu-
co; no sul de Santa Catarina (re-
gião de Tubarão) e em três capi-
tais: Rio, Belo Horizonte e Por-
to Alegre. Esse tipo de propaga-
ção é caracterizado no momen-
to em que não é mais possível
identificar a origem da contami-
nação de uma pessoa.
“À exceção da região amazôni-
ca, da Região Norte, todas as ou-
tras regiões estão fazendo au-
mentos sistemáticos em bloco.

O que poderia ser em uma re-
gião, me parece aumentando
em bloco em todos os Estados.
Parece uma coisa vindo em rela-
ção a um cenário muito mais de
característica nacional do que
regional”, avaliou Mandetta.
Caso o aumento em bloco se
repita da mesma forma na próxi-
ma semana, Mandetta avaliou
que “vai ser muito mais comple-
xo” fazer o acompanhamento e
que será necessário ampliar o
sistema de contenção.

Medidas. Ontem, o governo já
anunciou medidas específicas
para Estados que apresentam
transmissão comunitária. Uma
delas é que qualquer pessoa
com sintomas de gripe deverá
ser atendidas em unidades de
saúde como se estivesse com a

covid-19. Além disso, as pes-
soas com suspeita de infecção
poderão pegar atestado médico
para toda a família ficar isolada.
Os outros integrantes do nú-
cleo familiar não precisarão ir
até o posto de saúde pegar o
atestado presencialmente.
O ministro ainda lembrou
portaria editada com o Ministé-
rio da Justiça para evidenciar a
possibilidade de prisão em caso
de descumprimento de orienta-
ções para isolamento ou inter-
nação. Já o secretário de Vigilân-
cia em Saúde, Wanderson Oli-
veira, disse que nos próximos
dias será importante haver um
trabalho de unidade entre muni-
cípios e Estados. “Vai ficar cada
vez mais complexo ficarmos
monitorando os casos a partir
de viagens nacionais internas.”.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Bruno Ribeiro

Em meio à lotação da rede de
saúde privada Prevent Sênior,
onde cinco pessoas já morre-
ram pelo novo coronavírus, a fa-
mília de um engenheiro aposen-
tado, de 77 anos, que teve a mor-
te confirmada por covid-19, fi-
cou um dia inteiro sem saber a
causa do óbito, pois não foi avi-
sada pelo hospital. Ele morreu
às 22 horas da segunda-feira e,
só na visita da terça-feira, quan-
do os parentes já estavam com a
máscara para ver o familiar no
horário de visita, é que soube-
ram do seu falecimento.
“Não sei se isso está abalando
todo mundo, se as pessoas já
não pensam mais. Mas não po-
de ser assim. Tem de ser uma
coisa humana”, disse a viúva do
aposentado, também idosa,
que terá o nome mantido sob
anonimato.
O engenheiro aposentado já
tinha problemas respiratórios
passados. Estava internado des-
de a semana passada e, no dia 15,
foi transferido para o Hospital
Sancta Maggiore, da Avenida
Maestro Cardin, na Bela Vista.
“Pediram para eu transferir
para o Sancta Maggiore da
Maestro Cardin, que eles ti-
nham separado o quarto e o
quinto andar para doenças de
pulmão”, afirmou a viúva.
Na unidade, havia regras res-
tritas de visita. Era só um horá-
rio por dia, à noite, e limitado a
apenas uma pessoa. “Fui com
minha enteada, e disse para ela
‘você sobe e vai ver seu pai’. Ela
subiu. Ele estava entubado e se-
dado. Ela desceu lá pelas 20h30.
E fomos embora”, recorda.
“No dia 17, fui com o filho de-
le, chegamos às sete e pouco.
Disse para ele ‘agora você sobe.

Ontem foi sua irmã’. Quando fo-
mos fazer a ficha (para subir) , o
nome dele já não constava no
sistema.”
Após uma conversa com fun-
cionários, viúva e filho do apo-
sentado, um advogado, subi-
ram ao andar onde o paciente
estava. Fizeram todo o procedi-
mento para a visita, sem saber
de nada.
“Lá, vestimos máscara, luva,
avental. Esperamos. Demorou.
Então chegaram dois médicos,
se desculparam pela demora,
que tinham pegado o plantão às
19h, e começaram a ler o pron-
tuário. No meio, falaram do óbi-
to”, disse a viúva, que chora ao
relatar a história. “Eu falei: ‘Mas
ele morreu?’ E ele (um dos médi-
cos) respondeu: ‘Morreu’.”
O aposentado havia morrido
pouco depois do horário de visi-
ta do dia anterior. “Se tivessem
falado, teríamos voltado”, la-
menta a viúva, ainda chorando.
O choque foi tamanho que ela
afirmou não saber o que foi fei-
to com o corpo, que ficou a noi-
te e o dia seguintes ao óbito no
hospital, sozinho.
“Meu telefone não tinha ne-
nhum registro de ligação. Tinha
dito para me procurarem”, con-
tou a viúva. No próprio hospi-
tal, funcionários deram os pa-
péis necessários para o enterro
e a emissão do atestado de óbi-
to. O documento cita a suspeita
de infecção pelo coronavírus.
Ninguém da família foi orienta-
do a cumprir quarentena. O cor-
po foi levado para o interior do
Estado, onde foi enterrado na
quarta-feira.

Resposta. Em nota, a Prevent
Sênior informou que a empresa
“mantém o atendimento aos
seus pacientes de acordo com a
sua cultura de acolher e cuidar
bem das pessoas e com os crité-
rios estabelecidos pelo Ministé-
rio da Saúde e Organização
Mundial da Saúde (OMS)”.
Ainda conforme a operadora,
“os óbitos atingiram pacientes
de alto risco”.

l Capacidade

l Loteria era uma paixão
O porteiro vítima do coronavírus
era divorciado e não tinha filhos.
Gostava do Flamengo e de jogos
e apostas, segundo familiares.
Nunca faturou grandes prêmios
na loteria, mas não perdia a fé.

l Iceberg

SP fecha comércio hoje; medida deve afetar 117 mil lojas. Pág. F4 }


Homem de 77 anos
estava internado em
hospital da operadora
Prevent Sênior e tinha
histórico de doenças

Família fica um dia


inteiro sem saber de


morte de aposentado


“O Estado deve usar toda a
capacidade que tem e pode
mobilizar para uma crise
como essa.”
Eliezer Rizzo de Oliveira
CIENTISTA POLÍTICO

VINCENT BOSSON/FOTOARENA–18/3/2020

Familiares tiveram


contato com o porteiro


morto na segunda-feira,


mas alegam não ter feito


o teste de coronavírus


Parentes da 1ª vítima do País


dizem que não são monitorados


Polêmica. Parentes do porteiro reclamam de atendimento, mas Prevent Senior diz seguir critérios dos órgãos oficiais


Número de mortes no País chega a 7


“Estamos vendo a ponta do
iceberg, há muito mais
casos. E quando a epidemia
sobe no número de casos,
ela é dura, letal, machuca e
inviabiliza o sistema.”
Luiz Henrique Mandetta

Óbitos ocorreram no Rio e em São Paulo e transmissão comunitária da doença já foi verificada em seis Estados: MG, SC, RJ, SP, PE, RS

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