Sexta-feira,20demarçode2020|Valor| 27“Apesardenão
existirindício deseu
interessepor
assassinatos,Freud
abordoua
criminalidade”,diz
diretordesérie
A
oimaginar umasérie sobreo
criador da psicanálise,Sigmund
Freud(1856-1939),o diretoraus-
tríacoMarvin Krenbuscoufugir
do óbvio.Nada de representaromédico
austríaco comoo senhorde barbabranca
desenvolvendosuas teoriassobreapsique
humana,o inconsciente,a interpretação
dos sonhosou o complexode Édipo.
“Acompanhamos ahistóriade um desco-
nhecido com grandemotivaçãopara se tor-
nar célebre,principalmente pelo seu revo-
lucionário conceitosobreoinconsciente,
masqueaindanãochegoulá”, dizKren.Isso
explica por que o criador,roteirista, diretor
e produtorexecutivodecidiuretratarum
Freud maisjoveme obstinado, aos 30 anos,
para protagonizar a série que estreiano dia
23 na Netflix, apóspremièrena 70aedição
doFestivaldeCinemadeBerlim.
Compostade oito episódios,a primeira
temporadade “Freud”é ambientada em
1886,ano em que o médicoespecializado
em “pacientesdoentesdos nervos”retor-
nava aViena,apósumatemporadaem Pa-
ris estudandohipnosecom oneurologista
francês Jean-MartinCharcot (1825-1893).
Logono primeiroepisódio, Freudtentaim-
pressionaros colegasfazendoumasessão
de hipnosecom uma mulherque não se re-
cuperou da morteda filhapequena,atro-
pelada por uma carruagem.
Emboraseja umaencenação, aideiaé
mostrarcomolevaramulherdevoltaàcena
poderia ajudá-laase curardo trauma.Mas
os colegasriemde Freud.“Ele foi muitocri-
ticadoao abordaroinconsciente,porquea
sociedadedaépocatinhamedodeolharpa-
ra dentrode si mesma”, afirma Kren,de 40
anos.“Mas isso não era problemapara
Freud, e foi isso que provavelmentefez dele
uma das figurasmaisimportantes do sécu-
loXX,cujolegadonosinfluenciaatéhoje.”
Comoa propostaé fazerda sérieuma
“viagem às profundezasda almahumana”,
o Freudde Krenestá sempredispostoaul-
trapassaras barreirasmoraisnas suas prá-
ticas.Comousar e recomendar o uso da co-
caínacomoestimulantee analgésico,prá-
tica em que Freudfoi um dos pioneiros.O
homemque maistardeficariaconhecido
por defenderque sonhossão umarepre-
sentação de desejos reprimidos também
será vistoaquitendofantasiaseróticasao
adormecer na banheira.
Mas nemtudoébaseadona amplapes-
quisaque Krenconduziu,antesde roteiri-
zar a série,faladaem alemão, em parceria
comStefanBrunnere Benjamin Hessler.
“Para atrairo públicomaisjoveme moder-
no,éprecisosubverter algumasexpectati-vas, mesclandoelementosficcionaisprovo-
cativos com os dados biográficos”, diz
Kren,ao justificara facetaSherlock Holmes
que Freudtambém ganhana série.
Enquantoele tentaentendermelhoros
segredosda psique humana,lançandomão
de drogase hipnose,oque gera um intenso
debatena comunidadecientíficada época,
Freudaindabancaodetetive.Como prota-
gonistavividopeloator austríaco Robert
Finsterinvestigandoassassinatos edesapa-
recimentos, “Freud”enveredapor um cami-
nho bastante popularna TV atualmente,o
dasériededramacriminal.
Quandonão está consumindococaína
comomelhor amigo,omédico e escritor
ArthurSchnitzler(1862-1931), na noitede
Viena,oprotagonista procuradescobrir a
identidadede um assassinoserialque ater-
rorizaa capitalaustríaca.Nessamissão,
queenvolveumasupostaconspiraçãonos
círculosdo governoe nas classesmaisal-
tas, o neurologista é assessoradopela mé-
diumFleurSalomé(Ella Rumpf) epelo ins-
petorde políciaeveteranode guerraAl-
fred Kiss (GeorgFriedrich).
“Apesarde não existirindíciode seu in-
teressepor assassinatos,Freudabordoua
criminalidadeem algunsde seus estudos”,
afirmaKren,fazendo alusãoà teoriade de-
lito por sentimentode culpa,apresentada
em 1916.SegundoFreud,muitoscrimes
são cometidospor seremproibidosepor
trazeremcertoalíviomentalao autor,que
sofrede sentimentode culpa, mesmodes-
conhecendoa origem.
“Era naturalque Freudestudasseocom-
portamentocorrompido,uma vez que a
psicanálisebuscarentendero comporta-
mentohumano”, afirmaodiretor,mais co-
nhecidopelasérie“4 Blocks”(2017),um
retratoda criminalidade no bairrode Neu-
kölln,em Berlim.
Ao apresentar um Freudcomoum gênio
aindanãoreconhecido,asérieaproveitapa-ra sugerircomonasceramalgumasdas teo-
rias que oprojetaram na carreira,comoa
divisãodoinconscienteemid,egoesupere-
go. “Comonadasurgeno vácuo, acompa-
nhamosalgumasexperiências do neurolo-
gistaque deixampistas.Se o espectadorob-
servar atentamente, perceberá rastros,
apontandoondeFreudpoderiaterbuscado
ainspiraçãoparaalgunsdosconceitosmais
controversosque desenvolveuao longoda
vida”,dizoatorRobertFinster,de36anos.
Opróprioassassinoserialpareceseraper-
sonificaçãodo mundoinconscienteemal-
comportadoque Freudtantotentaexplicar
à sociedadevienense,retratadaaquicom
um toquede decadência.“Como império
em declínio,oantissemitismocresciaainda
maisem Viena”, afirma Kren.Freudera dire-
tamenteafetadopor esse clima,por ser ju-
deu. “Para entenderos ânimosdo período,
usei comoreferência‘O Mundode Ontem’
(1942)”, diz, referindo-seao livro de memó-
riasdoaustríacoStefanZweig(1881-1942).
Éna residênciade um casalaristocrático
húngaro(vividopor AnjaKlingePhilipp
Hochmair) que espetáculosvoltadosàhip-
noseeàmagia atraemos políticoseos po-
derososde Viena, comFleurSaloméno
centroda ação.As sessõesde Fleur,por
quemFreudse senteatraído, apesarde seu
compromisso comMartha,tambémabor-
damtemasque no futurose tornarãorele-
vantesao trabalhodo psicanalista,como
impulso, tabu e eros.
Já o personagemAlfredKiss,oinspetor
que aindasofrecomos seustraumas de
guerra,é um exemplovivo do poderdo in-
consciente segundo Freud.Os momentos
revividospelopersonagemem flashbacks
só reforçam que os acontecimentosdoloro-
sosnãosãoapagados,permanecendonoin-
consciente einfluenciandocontinuamente
ospensamentoseasatitudesdoindivíduo.
Para entendermelhoras ideiasdefendi-
das por Freud,MarvinKrenaté se subme-
teu a uma sessãode hipnose,enquanto es-
creviaasérie —que tem chancede ganhar
umasegundatemporada,conformea re-
cepçãodo público. “Foi umaexperiência
assustadora,mas necessáriaparacompre-
enderomedo que as pessoastinhameain-
da têm desseburacopsíquico sem formae
inacessível,do qual Freudtantofalava.”
Apesar da “coragem inicial”, Kren
confessanão ter chegadoao fim da sua ses-
são,mesmosabendo que oseu psicanalista
tinha“certificaçãoprofissional”para prati-
car ahipnosena Alemanha,ondeodiretor
moraatualmente.“Saí do transe,abrindo
os olhos,no meiodo processo”, recordao
diretor,rindo.■DIVULGAÇÃO
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas