Valor - Eu & Fim de Semana (2020-03-20)

(Antfer) #1
Sexta-feira,20demarçode2020|Valor| 3

COLUNASOCIAL


O drama


dos guarani


mbya


Embora suspensaatéque


Justiça e instituiçõesse


manifestem,a açãode


reintegraçãodeposse


dasterrasocupadas


pelosindígenas, nobairro


doJaraguá, é ato


socialmenteinjusto. Por


JosédeSouzaMartins


Um capítuloda relação
historicamente violenta dos brancos
com as populações indígenasestá
ocorrendona cidadede São Paulo
contraos índiosdo Jaraguá.Não é,
propriamente,uma questãoracial.
No Brasil, as relaçõesraciaistêm
uma característica curiosa.Aqui,raça
é a raça da vítima.Nuncaa raça de
quema vitima. Nessesentido, os que
os privamdo que carecem não agem
comoraça nem em nomede uma raça.
Casoem que o brancoseriade uma
raça sem objetivos nem motivações
raciais,aindaque possaser racista.
Não há brancos no Brasilna medida
em que não há no país uma causa
branca, uma causaracial.
O opressordas raçassubalternas
não tem cor porquea opressãonão
tem cor. O opressortem interessese
ambições. Sua cor é a cor da riqueza e
do poder. É inútilquestioná-lo em
nomedo preconceito racial. Ele
semprepoderá dizerque gostade
índio, que gostade preto. Mas nunca
dirá que gostamais de si mesmo, isto
é, da causaque personifica em nome
da coisaque o dominae em nomeda
qual vive e age, a riqueza.
A cor brancase tornoua cor da
dominaçãoe da exploraçãoe das
iniquidades que delasresultam.
Muitosopressores de índios e de
pretossão pardose são pretos.
Oprimem em nomeda brancuraa que
servem.Nemtodoos brancos são
opressoresde índios,brancose pretos.

A invocaçãode categoriasraciais para
interpretar tensõesantigasque se
atualizamtodos os dias é expressão da
falta de familiaridadecom as ciências
sociais.E do decorrente
desconhecimentodo que é o Brasil e
do que é a sociedade brasileira.
Conhecer o Brasilnão é usar cueca
verdee amarela, comofazemalguns
de mentalidadetoscae de patriotismo
falso. Conhecer o Brasilé reconhecera
diversidadesocialdo país e aprendera
convivercom ela, a respeitar os
fundamentoshistóricos das
diferençasque nos fazemum povo
culturalmentepeculiar, o que
fundamentaa possibilidadede uma
rica inteligênciada condição humana.
Desconhecer e desrespeitar essa
diversidadeé manifestaçãode
ignorância,de escolaridade
insuficiente e deformada e da pobreza
deespíritoresultante.Aquémda
civilização, por aí, nós não nos
conhecemos nem nos respeitamos.
Embora suspensa até que a Justiçae
as instituiçõesse manifestem,a ação
de reintegraçãode posse contraos
guaranimbya, pelasterraspor eles
ocupadas no bairrodo Jaraguá, é ato
socialmente injusto. Em boa parte,
porqueao longoda históriado Brasil
os índiostiveram direitosterritoriais
reconhecidos, cuja concepçãonão
coincide com a que regulao direito
fundiáriogeradopela Lei de Terras de
1850,a concepçãobrancade
propriedade.Trata-sede conciliare

não de opordireitose concepçõesde
direito. O direitodo branconão pode
ser maiordo que o direitoancestral
do índio. Se o for, será ainda
expoliação colonial.Significaráque a
barbárie da conquistacontinua.
Há duastribos guarani dentroda
própriacidadede São Paulo. Essa do
Jaraguá, na zonaoeste,distribuídaem
quatroaldeias,e outra,na zonasul da
cidade.Os índios paulistanosestãolá
porquehistoricamente à procurade
Maíra,a entidade míticaque vem do
mar. Aliás,Maíraé masculino, e não
feminino. Na zonasul da cidade,um
descendente de japoneses os abrigou
em suas terras,aos quais as doou.Na
zonaoeste,foi o Governodo Estado
que, há muito, os assentou para
assegurar-lhesum lar tribale sua
sobrevivênciacultural.
Nodespejo, estãoenvolvidosa
Prefeituraeaempresaquepretende
construiraliumconjuntohabitacional
doprojetoMinhaCasa,MinhaVida.
E a casa e a vida dos índios?Os
guaraninos precederem no seu vasto
territórioancestral, vizinhosdos
índiosdesteem que estamos.Tudo
que eles não têm é o que nós lhes
tiramos.E tudoque temosjá foi
deles.Está faltandoalgumacoisa
nessatrama injusta.
Oreconhecimentodosdireitosdas
populaçõesindígenas,comodonose
gente.Estásedandoprecedênciaa
direitosimobiliáriosemrelaçãoa
direitossociaiseadireitoshumanos.
Desde1850,o anticapitalistadireito
de propriedadeimplantado no Brasil,
teve por funçãoassegurarvitalidade
ao capitalismorentista, a forma
irracional de acumulaçãodo peculiar
capitalismobrasileiro, em conflito
com a lógicaprópriado verdadeiro
capitalismo. O capitalismode verdade
depende de direitossociaise de
justiçasocial.Casocontrário, ele se
autodestrói.
Osdiferentesramosdopovo
guaranisãodosmaisantigosno
contatocomosbrancosdaquiesão
tambémasmaioresvítimasda
colonizaçãogenocidaqueosferiu
mortalmente.Ospaulistassão
historicamenteresponsáveispela
sujeiçãodosguaraniàcondiçãode
escravos,sequestrando-osdoprojeto
alternativoecivilizadordosjesuítas.■

CARVALL

JosédeSouzaMartinsé sociólogo.
ProfessorEmérito daFaculdadede
FilosofiadaUSP. PesquisadorEmérito do
CNPq. Membro daAcademiaPaulistade
Letras.Entre outroslivros,autorde
“MolequedeFábrica”(AteliêEditorial).


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