Valor - Eu & Fim de Semana (2020-03-20)

(Antfer) #1

34 |Valor|Sexta-feira,20demarçode2020


Violência


e ternura


U

nsanosatrás,escrevium
artigodejornalsobremodo
comoaliteraturabrasileira
retratouoRiodeJaneiro—e
foiinfluenciadaporele—desdeofim
doséculoXIX.Comapressaeas
generalizaçõesdessetipodetexto,
tenteitraçarumalinhaqueiade
MachadodeAssisaNelsonRodrigues
eRubemFonseca.Ocritériofoio
diálogoentreaformaficcionaldesses
autoreseagradualdecadênciada
cidade,aex-capitaldoImpérioqueao
longodasdécadasmergulhounuma
espiralinéditadeviolência,caos
urbanísticoeanomia.
Aanáliseparavanosanos1990,
quandoFonsecaencerrauma
sequênciabrilhantedelivrosde
contos,daestreiacom“Os
Prisioneiros”(1963)até“OBuracona
Parede” (1995).Comoumespelhoda
degradaçãoinstitucionalpós-1964,e
apartirdomicrocosmocarioca,
títuloscomo“A ColeiradoCão”
(1965)e“FelizAnoNovo”(1975)
deramcontadeumpaísquenão
poderiamaisserretratadoapenas
comaironiafinadeMachado(em
seusflagrantessutisda
insensibilidadedaselites)ouo
moralismodeNelson(comsua
tragédia—oumelodrama—da
hipocrisiadaclassemédia).
Talvezamelhorcaracterísticade
Fonsecafosseacapacidadedeemular
vozesdetipossociaisdiversos,
externosaouniversodeumautor
letradoeconscientedaartificialidade
deseuofício—pormeiodaqualse
chega,comosabemos,àilusãode
vidanapáginaescrita.Numatradição
literáriaqueemgeralviaaviolência
“defora”, seufeitofoiescreversobreo
submundodocrimeesuas
adjacências,paraalémdeeventuais
convençõesdogêneropolicial,
usandopersonagensquepareciam
falarporsi.
Seriapossível especular sobreas
razões por que a produção
fonsequianase tornoumenos
vigorosaa partirde “O Buracona
Parede”. O métodode imitar
vozes, por exemplo, que fez o
autorser percebidocomouma
espécie de ventríloquode
diferentesclasses,raçase gêneros,foi

se tornandoenciclopédico em
excesso, com citaçõese curiosidades
sobreo ambienteretratadodispostas
de formagratuita nos textos,
perdendoa notável capacidade
anteriorde se articular
organicamente com as tramas.
Masnãopensoquetenhasidosó
isso.Fala-semenosdessaobrahoje
tambémporrazõesalheiasà
qualidadedela.Dosanos1990para
cáhouveumagrandemudançano
país,inclusivenosmodosde
produzir,divulgareconsumir
literatura.Aostrancosebarrancos,
nossaredemocratizaçãoprecária
botoumaisgentenaescola,criouo
sistemadecotasnasuniversidades,
deucondiçõesaumamaior
circulaçãodeideias—paraoquala
internet,comosmecanismosde
autopublicaçãodeblogseredes
sociais,foifundamental.
Daísurgiuumnúmeroimensode
escritores(as),cadaqualtentandoe
àsvezesconseguindocriarseu
público.Junte-seaessadiversidade
ummaiordiálogocomcorrentes
críticasvindasdeoutrospaíses,
notadamenteosestudosculturais
americanos,emudou-seapercepção
sobreaautoridadeda“vozliterária”
—quemestáfalando,apartirdeque

lugar,emnomedequem.Écomose,
emvezdeumRubemFonseca
sintetizandoovocabulárioeasintaxe
demúltiplostipossociais,opúblico
passasseapreferiraexpressãodireta
—ouoquesoacomoexpressãodireta
—dessestipos.
Representatividadesocialeestética
andamjuntasnaliteratura.Ficando
apenasnoexemplodoRio,em1997
PauloLinspublica“CidadedeDeus”,
aindahojeogranderomance
brasileirosobreafavelacarioca.Parte
deseuimpactopolíticoveiodofato
deoautorsernegroetersidocriado
nouniversoquedescreve.Masisso
nãopodeserseparadodeelementos
quecompõemotriunfoartísticodo
livro.Aexperiênciapessoaltambém
fazpartedaficção:éelaquefaza
linguagemdeLinsseraquela,os
personagensseremaqueles,otomda
narrativaterumadeterminada
característica.
É aí que está uma diferençavisível,
me parece,na comparaçãodas novas
vozescariocascom a voz de Fonseca.
O projetode “Cidadede Deus”é
diferentedo de “A Coleirado Cão”e
“Feliz Ano Novo”até por causa
disso. Se o triunfode Lins é a
naturalidadecom que fala da
vida de meninosde classes

Velhase novas ficções


sobre umRiodeJaneiro


degradado.PorMichel


Laub


OUTROSESCRITOS


MichelLaub,jornalistae autordosro-
mances“DiáriodaQueda”e“O Tr ibunal
daQuinta-Feira”,escreveneste espaço
quinzenalmente

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