O Estado de São Paulo (2020-03-22)

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A14 DOMINGO, 22 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Internacional


“Meias medidas,
como vimos nas
últimas
semanas, não
servem para
conter a
emergência. É
uma guerra”
Attilio Fontana
GOVERNADOR DA
LOMBARDIA

Janaina Cesar
ESPECIAL PARA O ESTADO / VENEZA

A Itália viveu ontem o dia
mais catastrófico das últimas
duas semanas: 793 mortos
em 24 horas, elevando o total
de vítimas da pandemia para
4.825 – o país já ultrapassou a
China em número de óbitos.
“Estamos em guerra”, atesta
o governo da Itália. Em Ro-
ma, a polícia usa alto-falan-
tes para que as pessoas não
saiam de casa. Mas a mensa-
gem parece não ter sido bem
compreendida.
Em uma semana, 70 mil pes-
soas foram denunciadas e proces-
sadas por violar a proibição de
movimentação, bem mais do que
as 53 mil infectadas com corona-
vírus. Aos poucos, os italianos
vão descobrindo que não podem
conter a pandemia na canetada.
No dia 9, o primeiro-ministro
da Itália, Giuseppe Conte, assi-
nou um decreto para encerrar
quase todas as atividades co-

merciais e proibir deslocamen-
tos não essenciais da popula-
ção. Mas o texto deu margem a
interpretações, permitindo ca-
minhadas e corridas indivi-
duais, assim como passeios
com o cachorrinho. Os italianos
aproveitaram as brechas e conti-
nuaram nas ruas. Muitos foram
punidos com multas ou até de-
tenção. A polícia tentou. Fez
mais de 1,5 milhão de controles
em todo o país, mas fracassou
em conter as escapadinhas da
população.
O governador Attilio Fonta-
na, da região da Lombardia, uma
das mais afetadas, pediu a inter-
venção do Exército para manter
as pessoas em casa e ontem emi-
tiu um decreto fechando o co-
mércio, os escritórios e os cantei-
ros de obra a partir de hoje e proi-
bindo as atividades esportivas
aos ar livre. “É hora da firmeza”,
disse. “Meias medidas, como vi-
mos, não servem para conter a
emergência. É uma guerra.”
Na quinta-feira, o vice-presi-

dente da Cruz Vermelha da Chi-
na, Sun Shuopeng, que está na
Itália, se disse chocado com a
quantidade de pessoas nas ruas,
circulando de transporte públi-
co e poucas usando máscaras.
“Estivemos em Pádua e Milão.
A política de confinamento não
está sendo bem aplicada. O
transporte público continua
funcionando, as pessoas pas-
seiam, há festas e jantares nos
hotéis”, disse Shuopeng.
Pressionado, o ministro da
Saúde, Roberto Speranza, assi-
nou no dia seguinte mais um de-
creto para tentar conter o coro-
navírus. Ele fechou parques e
outros espaços públicos, mas
deixou de fora atividades físicas
próximas de casa, desde que res-
peitando a distância de um me-
tro entre as pessoas.
Insuficiente, segundo Mauri-
zio Casasco, diretor da Federa-
ção Europeia de Médicos Espor-
tivos, em entrevista ao jornal
Corriere della Sera. “A corrida é
um risco. Mesmo quando feita

individualmente”, disse. “É pre-
ciso parar tudo.”
Enquanto isso, prefeitos e go-
vernadores seguem contando
cadáveres sem saber onde enter-
rá-los, pois os cemitérios estão
fechados e os necrotérios, su-
perlotados. O Exército já circu-
la oficialmente por ruas da Cam-
pânia e da Sicília. Na quarta-fei-
ra, veículos militares foram usa-
dos para levar cerca de 60 cai-
xões de vítimas do coronavírus,
que morreram no hospital de

Bergamo, para crematórios de
outras 11 cidades.
O governo italiano ainda estu-
da outras medidas restritivas,
como o monitoramento dos mo-
vimentos dos cidadãos por
meio de telefones celulares. Por
iniciativa das empresas telefôni-
cas Telecom Italia, Vodafone e
WindTre, a Lombardia já vem
usando os dados para ver quan-
tas pessoas estão cumprindo a
quarentena. Fabrizio Sala, vice-
governador da região, garante
que o movimento é 60% menor
do que antes da covid-19 – mes-
mo assim, segundo ele, muita
gente ainda está na rua.
Mas a ideia de monito-
rar celulares, que foi apli-
cada na China, na Coreia
do Sul e em Israel, ainda
encontra resistência por
parte de muitas autorida-
des locais. Além de violar a
privacidade individual, os
críticos argumen-
tam que, se
os italia-

nos souberem que seus telefo-
nes estão sendo rastreados, dei-
xarão os aparelhos em casa.
Existe um choque claro entre
o que prefeitos e governadores
querem e aquilo que o governo
italiano está disposto a fazer, o
que mostra a dificuldade de se
conter uma pandemia em uma
democracia como a italiana. Na
sexta-feira, dez dias após o pri-
meiro decreto de Conte, o nú-
mero de casos de coronavírus
continuava subindo cerca de
15% diariamente, sobrecarre-
gando hospitais e necrotérios.
Para Conte, as restrições fun-
cionam. Os epidemiologistas
concordam, mas em parte. Se-
gundo eles, o erro da Itália foi
não ter confinado a população
semanas antes, quando dava
tempo. “A decisão tinha de ter
sido tomada no começo”, disse
Giorgio Palù, virologista da Uni-
versidade de Padova. Quando o
premiê assinou o primeiro de-
creto, segundo ele, a bomba-re-
lógio já havia sido acionada.

Em uma semana, 70 mil pessoas foram denunciadas e processadas por violação da proibição de movimentação, bem mais do que as 53


mil infectadas pela covid-19; sem conseguir segurar italianos em casa, país vê número de mortos sobrecarregar cemitérios e necrotérios


VENEZA


Na semana passada, o conselho
de ministros do governo italia-
no aprovou o decreto “Cura Itá-
lia”. Feito para salvar a econo-
mia e tirar os italianos da beira
da falência, o texto destina ¤ 25
bilhões (R$ 136 bilhões) para en-
frentar a crise provocada pelo
coronavírus. Cerca de ¤ 3,5 bi-
lhões vão para o sistema de saú-


de e ¤ 10 bilhões para o merca-
do de trabalho. O pacote é con-
sistente e lança medidas para
impedir demissões e conceder
benefícios para as empresas en-
frentarem a crise. Prevê até mes-
mo a cobertura de todos os tra-
balhadores informais e sazo-
nais com um cheque de ¤ 600
(R$ 3.270) em março.
Para o sociólogo Domenico
De Masi, a Itália não é a China.
“Somos uma democracia e, co-
mo tal, estamos diante de duas
questões: é melhor salvar a saú-
de ou a economia ou é melhor
salvar a saúde ou a democracia?
São escolhas que o governo tem
de fazer.” Segundo ele, quanto
mais o Estado tentar salvar uma

opção, mais prejudicará a outra.
“Estamos diante de uma pande-
mia absurda. Nesse caso, até on-
de você pode salvar a saúde sal-
vando a democracia – e vice-ver-
sa?”, questiona De Masi, para
quem “a solução pode fazer
com que a Itália se torne o mode-
lo para o mundo.”
O sociólogo argumenta que
hoje, mais do que nunca, os cida-
dãos estão se sobressaindo aos
partidos políticos. “(O premiê
Giuseppe) Conte, com seu hu-
manismo e equilíbrio, está se
destacando na política. Ele, que
não era um homem com expe-
riência nesse setor, está mos-
trando uma capacidade incrível
de lidar com os problemas des-

sa pandemia”, disse De Masi. A
última pesquisa realizada pela
Demos & Pi para o jornal La Re-
pubblica traduz em dados o que
De Masi argumenta.
As medidas emergenciais ado-
tadas por Conte e pelo governo
aumentaram sua popularidade.
O nível de confiança no Executi-
vo teve um crescimento de qua-
se 30%, passando dos 44% regis-
trados em fevereiro, aos atuais
71%. Em 30 dias, a popularidade
de Conte saltou de 52% para
71%.
Os números registram ainda
um cenário político fragmenta-
do durante a pandemia. A Liga,
partido do ex-vice-primeiro-mi-
nistro Matteo Salvini, mantém
a primeira posição das inten-
ções de voto, com 28,8%. O Par-
tido Democrático está em se-
gundo lugar, com 21%, e o Movi-
mento 5 Estrelas, tem 14,6%.
Os efeitos colaterais da disse-
minação do coronavírus reflete

também de outra maneira na po-
lítica. Após a contaminação de
alguns deputados, cogita-se o
fechamento do Parlamento, co-
mo defende Edmondo Cirielli,
do Partido Fratelli d’Italia, de
extrema direita.
Salvini, que até hoje compare-
ceu a apenas 10% das sessões
parlamentares, usou as redes so-
ciais para rejeitar a ideia e pedir
a todos que compareçam para
votar melhorias no decreto “Cu-
ra Itália”.

Segundo Gaetano Azzariti,
constitucionalista e professor
de direito da Universidade La
Sapienza, é inaceitável um Par-
lamento suspenso. “O Parla-
mento é um órgão igualmente
indispensável para a nossa vida
democrática e, portanto, não é
possível o fechamento. É neces-
sário garantir a continuidade
das atividades parlamentares,
encontrar uma maneira de fa-
zer com que todos os nossos re-
presentantes votem”, afirmou
Azzariti em entrevista ao jornal
Il Fatto Quotidiano.
A Câmara dos Deputados pro-
pôs que os trabalhos sejam fei-
tos de casa, por meio de disposi-
tivos eletrônicos. “Antes do co-
ronavírus, éramos cerca de 500
mil italianos que trabalháva-
mos em home office. Agora, so-
mos 10 milhões. Aconteceu
uma revolução e estamos em fa-
se de experimentação de mas-
sa”, disse De Masi. / J.C.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Sem conseguir impor quarentena, Itália


tem 793 mortes em 24h e 4.825 no total


lEm alta

ANDREA FASANI/EFE

lGuerra

Medidas extremas. Soldados do Exército italiano patrulham a Piazza del Duomo, no centro de Milão: esforço para manter a população dentro de casa e conter a pandemia da covid-


71%
é a popularidade atual do
premiê italiano, Giuseppe
Conte, que registrou uma alta
de 19 pontos porcentuais nos
últimos 30 dias, quando ele
começou a tomar medidas
para combater a pandemia

Para o sociólogo


Domenico De Masi,
quanto mais o Estado


optar por uma coisa,


prejudicará a outra


Governo deve escolher entre salvar


a saúde ou a economia, diz analista

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