O Estado de São Paulo (2020-03-22)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-15:20200322:
O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 22 DE MARÇO DE 2020 Internacional A


A


pandemia de coronavírus nos
coloca em contato com a di-
mensão mais primária de nos-
sa existência: a luta pela sobrevivên-
cia. À medida que a humanidade vai
compreendendo gradualmente as
implicações disso em suas vidas, faz
um movimento defensivo rumo ao
recolhimento. Quanto maior a capa-
cidade de autonomia de cada indiví-
duo, família, cidade e país, maior sua
resiliência perante essa ameaça bru-
tal. Quem tem mais reservas finan-
ceiras, quem sabe cozinhar, limpar a
própria casa, quem pode se isolar,

tem mais chances de sobrevivência. O
mesmo se aplica à escala dos países.
A prosperidade alcançada nas últi-
mas décadas é resultado de uma divisão
internacional do trabalho, da otimiza-
ção dos recursos, da especialização. Is-
so provocou a queda nos preços dos ali-
mentos, combinada com um aumento
de qualidade dos bens industriais, aper-
feiçoamentos e rupturas tecnológicas.
O preço disso é a interdependência. O
refluxo da globalização já havia começa-
do. Os marcos dessa reversão de ten-
dência foram a vitória do Brexit no refe-
rendo e a eleição de Donald Trump, am-

bos em 2016. O principal alvo desse mo-
vimento era a China, a grande beneficia-
da da globalização. Daí a ironia de o co-
ronavírus ter origem chinesa.
Isso não serve de fundamento para
nenhuma teoria conspiratória. A análi-
se do genoma do coronavírus mostra
que ele é resultado de processos natu-
rais de evolução dos seres vivos, segun-
do estudo de cientistas de EUA, Escó-
cia e Austrália, publicado na revista Na-
ture Medicine. A China corre mais riscos
de dar origem a doenças virais por cau-
sa de sua urbanização abrupta, culiná-
ria e medicina tradicionais fortemente
vinculadas ao consumo de animais sel-
vagens ou silvestres, suas aglomera-
ções humanas e seu papel de celeiro glo-
bal de manufaturados e de consumido-
ra de recursos naturais, que a coloca em
intenso contato com o resto do mundo.
A livre circulação de pessoas e merca-
dorias não é uma marcha inexorável da
humanidade. Ao contrário. A história é
feita de ciclos entre integração e isola-

mento, desencadeados muitas vezes
por guerras ou epidemias. O Império
Romano representou uma intensa ex-
periência de globalização. O seu des-
moronamento consistiu exatamente
na crescente autonomia dos inúmeros
povos que viviam nele – um retorno ao
artesanato, aos mercados locais, aos pe-
quenos negócios. Essa desintegração
avançou em direção ao feudalismo, um
sistema de isolamento e de ordenação
local das relações.
Agora, os economistas observam que
a pandemia desencadeou uma combi-
nação de demanda e oferta baixas ao
mesmo tempo. Isso é contraintuitivo.
Os ciclos do capitalismo se movem pe-
la tensão entre uma e outra. A razão
das duas coisas é a mesma: a paralisia
de grande parte das atividades. Nem
os trabalhadores estão produzindo
nem os consumidores estão compran-
do o que não seja essencial. Nessa si-
tuação, a ferramenta clássica dos ban-
cos centrais, a calibragem dos juros, é

inócua. Não existe incentivo econô-
mico possível para mudar um com-
portamento determinado pelo ins-
tinto de sobrevivência.
É essencial que os governos en-
tendam isso: a ameaça do coronaví-
rus é existencial. Nas minhas cober-
turas de guerras e catástrofes, teste-
munhei mudanças abruptas de
comportamento nas pessoas, ex-
postas ao risco de morte e à perda
de dignidade. O tecido social se des-
faz. A civilização dá lugar à bar-
bárie. Na Itália, os médicos relatam
o drama de escolher quem deverá
sobreviver, pela falta de leitos de
UTI e aparelhos respiratórios para
todos. É preciso evitar que a escas-
sez de recursos para salvar vidas
nos hospitais, o desabastecimento
e a queda de receita das famílias nos
levem a um estado de desespero e
violência. Todos temos de estar à
altura do desafio que o coronavírus
representa para nosso convívio.

LOURIVAL


SANT’ANNA


Fernanda Simas


Na sexta-feira, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) e
autoridades chinesas anun-
ciaram que, pela primeira vez
desde dezembro, a cidade de
Wuhan, epicentro da pande-
mia de covid-19, não regis-
trou nenhum caso da doença
em 24 horas. Aos poucos, a
China respira cada vez mais
aliviada e vislumbra a vida
pós-coronavírus.
Em quatro meses, o covid-
deu a volta ao mundo, infectou
mais de 250 mil pessoas e ma-
tou cerca de 10 mil. “Não houve
mais casos em Wuhan nas últi-
mas 24 horas”, afirmou Tedros
Adhanom Ghebreyesus, dire-
tor-geral da OMS, na sexta-fei-
ra. “A cidade dá esperanças ao
restante do mundo de que mes-
mo as situações mais extremas
podem ser superadas.”
Após 81 mil casos de covid-
na China, menos de 7 mil perma-
necem doentes. Na sexta-feira,
o país registrou poucos novos
registros, a maioria de pessoas
que vieram de outros países – e
apenas três mortes, o menor nú-
mero desde que as autoridades
começaram a divulgar os dados,
em janeiro.
Com isso, na semana passa-
da, o último hospital temporá-
rio montado em Wuhan foi fe-
chado e a Apple anunciou a rea-
bertura de todas as suas 42 lo-
jas no país. Aos poucos, bares e
restaurantes vão reabrindo em
Xangai, especialmente no
Bund, à beira do Rio Huangpu,
zona boêmia da cidade. Em Pe-
quim, o trânsito volta lenta-
mente ao caos habitual e, em
breve, o ar da capital ficará irres-
pirável de novo.
Para Fausto Godoy, que foi
embaixador do Brasil em países
da Ásia e é coordenador do Nú-
cleo de Estudos Asiáticos da
ESPM, a recuperação chinesa se
deve ao comportamento da so-
ciedade. “Governo e população
atuaram juntos e isso faz uma
diferença brutal”, disse. “Na
Ásia, em geral, o ser humano só
se realiza em sociedade. Ou se-
ja, temos valor quando agrega-
mos algo à sociedade. Esse é um
conceito fundamental para en-
tender a reação dos asiáticos ao
coronavírus.”


Pandemia. Em dezembro, a co-
vid-19 surgiu na China e se espa-
lhou pelo mundo, ganhando sta-
tus de pandemia dado pela OMS.
Inicialmente, o governo chinês
negou que houvesse um proble-
ma. Mas logo o país mudou de
estratégia, reconheceu a gravida-
de da situação e adotou medidas
extremas: confinamento em


massa – algumas vezes compul-
sório – e criação de centros de
saúde para atender apenas os
suspeitos de portarem o vírus.
“Foi uma atitude diferente da
que tiveram na época do surto de
Sars (entre 2002 e 2003). Na oca-

sião, Pequim escondia tudo. Ago-
ra, quando a coisa explodiu, a
China envia especialistas para
outros lugares”, disse Godoy.
Mas ainda é preciso cautela,
segundo a OMS. Restrições de
viagem ainda vigoram na Provín-

cia de Hubei, onde está localiza-
da a cidade de Wuhan, que per-
manece isolada. Autoridades di-
zem que a quarentena em mas-
sa só acabará quando não hou-
ver mais nenhum caso registra-
do por 14 dias consecutivos.

Preocupados com uma segunda
onda de contaminações, várias
regiões, incluindo Pequim, deci-
diram impor uma quarentena
de 14 dias para quem chega de
viagens internacionais.
“Evidentemente, precisamos

agir com precaução. A situação
sempre pode mudar. Mas a expe-
riência de cidades e de países
que lutaram e derrotaram o ví-
rus deve dar esperança e cora-
gem ao restante do mundo”, dis-
se o chefe da OMS. / COM AFP

Steven Lee Myers
Alissa Rubin
PEQUIM / REUTERS

O


presidente da China,
Xi Jinping, prometeu
enviar médicos à Itá-
lia e 2 mil testes rápidos de
diagnóstico de coronavírus às
Filipinas. O governo da Sérvia
pediu ajuda, mas não aos vizi-
nhos europeus, que restrin-
giam a exportação de equipa-
mentos médicos, mas aos chi-
neses. “A solidariedade euro-
peia não existe”, disse o presi-
dente sérvio, Aleksandar Vu-
cic. “É um conto de fadas no
papel. Acredito no meu irmão
e amigo Xi Jinping e na ajuda
chinesa.”
Algumas semanas atrás, a

China foi devastada pelo surto de
coronavírus, que começou na ci-
dade de Wuhan. Pequim aceitou
doações de máscaras e outros su-
primentos médicos de quase 80
países e 10 organizações interna-
cionais. Agora, com novos casos
diminuindo, a China montou
uma ofensiva diplomática para
ajudar o restante do mundo, que
luta para controlar o vírus.
Do Japão ao Iraque, da Espa-
nha ao Peru, os chineses prome-
teram ajuda humanitária, doa-
ções e informações médicas – o
que dá à China a chance de se po-
sicionar não como incubadora
de uma pandemia, mas como
ator global responsável em um
momento de crise mundial.
Ao fazer isso, Pequim assume
um papel que sempre foi do Oci-

dente em tempos de desastres
ou emergências de saúde públi-
ca, espaço que o presidente Do-
nald Trump cedeu com o isola-
mento cada vez maior dos EUA.
“Essa pode ser a primeira grande
crise global em décadas sem lide-
rança significativa dos EUA e
com protagonismo dos chine-
ses”, disse Rush Doshi, diretor da
China Strategy Initiative, do
Brookings Institution, de
Washington.
O surto, que começou em Wu-
han, infectou mais de 250 mil pes-
soas e já matou 11 mil em todo o
mundo, foi um revés para a lideran-
ça de Xi, provocando descontenta-
mento interno e questionamen-
tos no exterior sobre a eficácia do
Estado comunista. Mas agora fa-
lhas grotescas no enfrentamento
da pandemia, tanto na Europa
quanto nos EUA, deram à China
uma plataforma para provar que
seu modelo funciona – e, eventual-
mente, ganhar alguma tração geo-
política mais duradoura.
Como fez no passado, o Esta-
do chinês usa suas ferramentas
extensas e bolsos sem fundo para
construir parcerias em todo o
mundo, em comércio, investi-
mentos e se consolidando como
maior fabricante mundial de me-
dicamentos e máscaras proteto-

ras. A generosidade tem ajudado
a aliviar a raiva de muita gente
com a resposta ineficaz à pande-
mia.
“Eu não sei e não me interessa
de onde vem”, disse Michele Ge-
raci, ex-subsecretário do Ministé-
rio de Desenvolvimento Econô-
mico da Itália, quando questiona-
do se a assistência refletia as am-
bições geopolíticas da China. Ge-
raci disse que a questão mais ur-
gente é fornecer ajuda para sal-
var vidas, algo que a União Euro-
peia foi incapaz de fazer. “Se al-
guém está preocupado que a Chi-
na esteja fazendo demais, o espa-
ço está aberto a outros países”,
disse.
Há muito tempo a China aspi-
rava um papel maior na ONU e
em outras organizações interna-
cionais, buscando projetar sua in-
fluência política, econômica e mi-
litar em mais partes do mundo –
muitas vezes em concorrência di-
reta com os EUA. “A China está
tentando reparar sua imagem in-
ternacional danificada no mane-
jo incorreto do surto em Wuhan,
em janeiro”, disse Minxin Pei,
professor do Claremont McKen-
na College, na Califórnia. “Doar
suprimentos médicos mostra
que a China é uma potência mun-
dial responsável e generosa. Pe-

quim também está divulgan-
do seu sucesso em conter o
surto para sugerir que o regi-
me de partido único é supe-
rior às democracias decaden-
tes do Ocidente, em particular
os EUA.”
Na quarta-feira, a China dis-
se que forneceria 2 milhões de
máscaras cirúrgicas, 200 mil
máscaras especiais e 50 mil
kits de testes para a Europa.
Um dos principais empresá-
rios da China, Jack Ma, ofere-
ceu 500 mil testes e 1 milhão
de máscaras para os EUA, on-
de os hospitais enfrentam es-
cassez, apesar de terem tido
várias semanas para se prepa-
rar. Em fevereiro, os EUA
transportaram 17 toneladas
de suprimentos para Wuhan
em quatro voos, que depois re-
tiraram os americanos da cida-
de.
“Não é mais um desafio que
um país pode resolver sozi-
nho. Exige que todos trabalhe-
mos juntos”, disse a fundação
de Ma, em comunicado que lis-
tou doações para dezenas de
países, incluindo todas as 54
nações da África.
As autoridades chinesas afir-
mam que a pandemia deve ser
uma arena para cooperação
política, não competição. Mas
o sucesso em reduzir a propa-
gação da doença encorajou au-
toridades e a mídia estatal a
irem mais longe – às vezes, de
maneira desajeitada. Um por-
ta-voz da chancelaria, Zhao Li-
jian, apresentou uma teoria de
que o Exército dos EUA estava
por trás do vírus.
A mídia estatal também
vem aproveitando o caos na
Europa e nos EUA para de-
monstrar uma espécie de ale-
gria discreta. Nesta semana, o
Diário do Povo comemorou o
fato de o ritmo de infecções e
mortes no exterior ser agora
maior do que na China. “A pan-
demia se tornou um campo de
batalha”, disse Bruno Maçães,
ex-secretário de Estado para
Assuntos Europeus em Portu-
gal, hoje membro do Hudson
Institute. “Vejo a China foca-
da em usar a crise como uma
oportunidade para reprodu-
zir a superioridade de seu mo-
delo.”

EMAIL: [email protected]
LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Potência em expansão

PEQUIM ADOTA


DIPLOMACIA DO


CORONAVÍRUS


Bolívia adia eleições presidenciais


depois de decretar quarentena


Com casos diminuindo, China monta blitz de


ajuda a países, assumindo papel do Ocidente


China começa a viver fase pós-pandemia


País ainda se preocupa com uma possível segunda onda de contágio e prevê quarentenas, mas cidades já começam a retomar sua rotina


Auxílio. Trabalhador produz máscaras de proteção que serão doadas a países que enfrentam a pandemia da covid-

A ameaça do vírus


LA PAZ


O Tribunal Supremo Eleitoral
(TSE) da Bolívia adiou ontem


indefinidamente a eleição presi-
dencial prevista para 3 de maio,
horas após o governo decretar
uma quarentena total por 14

dias a partir de hoje em razão da
pandemia de coronavírus, Há
19 casos no país.
O órgão eleitoral disse que es-
pera um “diálogo amplo e plu-
ral com todas as organizações
políticas participantes no pro-
cesso” para definir “uma nova
data para a eleição geral de

2020”, indicou o TSE em um co-
municado.
As eleições de 3 de maio fo-
ram convocadas de forma ex-
traordinária após a anulação da
votação de 20 de outubro de
2019, depois que uma auditoria
da Organização dos Estados
Americanos (OEA) denunciou

irregularidades em favor do en-
tão presidente, Evo Morales
(2006- 2019), que concorria a
um quarto mandato.
Evo, o primeiro líder indíge-
na que governou o país por qua-
se 14 anos, foi obrigado a renun-
ciar após três semanas de pres-
são nas ruas e de perder o apoio

dos militares. Ele está refugia-
do na Argentina.
A maioria dos oito candida-
tos havia sugerido adiar a vota-
ção. Mas Luis Arce, candidato
do Movimento Ao Socialismo
(MAS), de Evo, e Carlos Mesa,
do Comunidade Cidadã, defen-
diam manter a data inicial. / AFP

CHINA DAILY / REUTERS
Free download pdf