O Estado de São Paulo (2020-03-22)

(Antfer) #1
André Cáceres

“É um negócio perigoso, Frodo, sair pela sua por-
ta”, alerta o hobbit Bilbo Bolseiro ao seu sobrinho
e tutelado. “Você dá um passo na Estrada e, se não
cuidar dos seus pés, não há como saber para onde
você poderá ser arrastado.” É assim que se sente o
leitor ao dar início à jornada de 1.680 páginas de O
Senhor dos Anéis. Em meio à reedição da obra de
J.R.R. Tolkien no Brasil, em curso desde 2018, a
HarperCollins lança a nova tradução, vertida do
inglês por Ronald Kyrmse, deste que é um dos tra-
balhos fundamentais da literatura fantástica.
O livro se passa na Terra-média, palco da mitolo-
gia elaborada por Tolkien ao longo de décadas, e
embora seja comumente referido como uma trilo-
gia, trata-se de um romance em três volumes publi-
cado originalmente entre 1954 e 1955. Em uma car-
ta ao seu editor Milton Waldman, o
escritor explica: “Tive a intenção de
criar um corpo de lendas mais ou me-
nos interligadas, que abrangesse des-
de o amplo e cosmogônico até o nível
da estória de fadas romântica”.
Indo do micro ao macro, nas duas
pontas desse espectro estão O Hob-
bit (1937) e O Silmarillion (1977). O
primeiro é uma história infantojuve-
nil aventuresca escrita para entreter
seus filhos, com linguagem simples e
ares bem-humorados; o outro, publi-
cado postumamente com edição de
seu filho Christopher Tolkien, é uma
espécie de Velho Testamento desse universo, uma
reunião de mitos desde a origem do mundo, em
tom solene, chave épica e com linguagem arcaica.
O Senhor dos Anéis interliga esses dois livros cro-
nológica, temática e, o principal, linguisticamente


  • aspecto que a nova edição brasileira enfatizou:
    “Vários povos e culturas aparecem, e cada um de-
    les fala de uma forma diferente”, explica o tradu-
    tor Ronald Kyrmse, em entrevista ao Aliás. “Os
    hobbits são burgueses, interioranos, têm uma fala
    simples, prática, direta. Já o reino humano de Gon-
    dor é antigo, então eles falam de uma forma refina-
    da, culta. Os elfos são imortais, estão ali há milha-
    res de anos, a história, para eles, aconteceu ontem,
    e isso se reflete na fala, no original.”
    Kyrmse estuda a obra de Tolkien há quatro déca-


das e foi consultor da edição anterior, publicada
nos anos 1990 pela Martins Fontes. “Nas tradu-
ções anteriores, todo mundo se trata por ‘você’.
Mesmo no inglês, com ‘you’, não é assim. Um hob-
bit não pode se dirigir a um elfo por ‘você’. As no-
vas traduções restituem os pronomes”, analisa
Kyrmse. “A própria gramática dos hobbits é mais
simples, enquanto a dos elfos é mais sofisticada.”
Simultaneamente aos primeiros esboços da mi-
tologia de Tolkien, o crítico literário russo Mikhail
Bakhtin desenvolvia sua Teoria do Romance, na
qual afirma que “cada palavra exala um contexto”
e “todas as palavras e formas são povoadas de in-
tenções”. Tolkien, filólogo e professor em Oxford,
sabia como poucos a importância de sopesar cada
palavra. “Esse aspecto linguístico era tão impor-
tante que ele chegou a dizer que primeiro inven-
tou as línguas élficas e depois escreveu um roman-
ce no qual essas línguas pudessem ser
usadas. Conhecendo Tolkien, pode até
ser verdade”, afirma Kyrmse.
O Senhor dos Anéis retrata o recrudes-
cimento do poderio de Sauron, uma en-
tidade perversa que já assolou a Terra-
média séculos antes. Em uma era ante-
rior aos acontecimentos do romance,
Sauron havia presenteado os reis de vá-
rios povos com anéis mágicos, mas for-
jou secretamente um anel para si que
lhe garantiria soberania sobre os ou-
tros. Uma aliança de humanos, elfos e
anões derrota Sauron, destituindo-o
de seu artefato, que se perde nas pro-
fundezas de um rio. Mas, como o mago Gandalf
vaticina, “sempre, depois de uma derrota e uma
folga, a Sombra assume outra forma e volta a cres-
cer”. Por isso, séculos mais tarde, com o reapareci-
mento do anel – evento narrado brevemente em O
Hobbit –, o hediondo poder de Sauron torna a vice-
jar e, para impedir o avanço de suas hostes, um
novo pacto entre os povos é firmado. Cabe ao hob-
bit Frodo a missão de levar furtivamente o artefa-
to ao único lugar em que ele poderia ser destruído:
a Montanha da Perdição, onde Sauron o forjou.
Embora assentada em uma complexa cadeia de
eventos anteriores, a trama de O Senhor dos Anéis é,
em seu nível mais superficial, simples e poderosa,
servindo de inspiração para praticamente toda a
literatura de fantasia publicada desde então e tida

como um dos principais exemplos da Teoria do
Monomito – ou Jornada do Herói –, popularizada
pelo mitólogo Joseph Campbell.
Embora Tolkien abominasse expressamente a
alegoria, não se pode compreender em plenitude
sua obra sem levar em conta suas convicções. Em
seu ensaio Sobre Contos de Fadas, no livro Árvore e
Folha, ele chega a afirmar categoricamente que “a
maneira pela qual se vive e trabalha no século 20
cresce em barbaridade em uma velocidade alar-
mante”. Para ele, vivemos em um mundo em cons-
tante decadência. Essa visão pessimista reflete as
temáticas centrais de sua obra, que gira em torno
de três eixos: a queda, a mortalidade e a máquina.
“Não pode haver qualquer ‘história’ sem queda


  • todas as histórias, no fim, são sobre a queda –,
    pelo menos não para mentes humanas tal como as
    conhecemos e possuímos”, Tolkien escreve a
    Waldman. Por “queda”, ele se refere tanto à queda
    bíblica – replicada no Silmarillion, quando os elfos
    se exilam de Valinor, onde habitam os deuses, para
    viver na Terra-média – quanto à decadência moral
    que o escritor via no estilo de vida moderno.
    A mortalidade ocupa seu imaginário de forma
    maciça. Diversas vezes, os imortais elfos expres-
    sam cobiça pela capacidade humana de morrer – e
    duas personagens élficas chegam a abdicar de sua
    imortalidade para viver com um humano. “A Sina
    (ou a Dádiva) dos Homens é a mortalidade, a liber-
    dade para além dos círculos do mundo”, escreve
    Tolkien. “Ela é um mistério de Deus sobre a qual
    nada mais é sabido além de que ‘o que Deus desig-
    nou aos Homens permanece oculto’ – um pesar e
    uma inveja para os Elfos imortais.”
    Já a “máquina” ele define como “o uso de planos
    ou artifícios (aparatos) externos em vez do desen-
    volvimento dos poderes ou talentos interiores ine-
    rentes – ou mesmo o uso desses talentos com o
    motivo corrupto da dominação”. A visão de mun-
    do de Tolkien condiz com a vivência de quem teste-
    munhou o resultado do tão alardeado “progresso
    tecnológico” quando serviu o exército britânico
    na 1ª Guerra Mundial e perdeu dois de seus melho-
    res amigos de infância na carnificina promovida
    pelos inovadores tanques e metralhadoras. Talvez
    por isso os exércitos de Sauron e do mago Saru-
    man sejam tão bem guarnecidos por máquinas.
    Antes o mais sábio dos magos, Saruman é descri-
    to por Barbárvore, uma sábia criatura análoga a
    uma árvore falante, como alguém que tem “uma
    mente de metal e rodas”. Isso se reflete em sua
    torre Orthanc, em Isengard, que “fora outrora ver-
    dejante”, mas onde “não crescia nada verde nos
    últimos dias”. As descrições dos cenários, aliás,
    traduzem o espírito geral dos personagens que o
    habitam.Não por acaso, Mordor, a “terra odiosa”
    de Sauron, é “um deserto queimado e estrangula-
    do” onde os hobbits Frodo e Sam podiam ouvir,
    vindo debaixo do solo, “um rumor e barulho como
    de grandes máquinas pulsando e trabalhando”.
    Certa vez, Tolkien escreveu que Sarehole, a bu-
    cólica região em que ele cresceu, “estava sendo
    miseravelmente destruída” pelo progresso. O
    Condado dos Hobbits passa por subversão seme-
    lhante no livro (no filme, não), e seus habitantes,
    assim como ele, “não compreendem e não gostam
    de máquinas mais complicadas que um fole de
    forja, um moinho d’água ou um tear manual”.
    Apesar da aversão de Tolkien, a tecnologia vem
    ajudando o processo de edição de sua obra, como
    conta Kyrmse, que faz parte de um verdadeiro con-
    selho de tradutores formado pela HarperCollins.
    “Se essa tradução fosse deixada para um tradutor
    sem nenhum tipo de crítica, de revisão, poderia
    ficar uma coisa muito pessoal. E não é para ser
    assim. Nós, tradutores, estamos nos consultando
    mutuamente e, quando surge alguma dúvida, usa-
    mos um aplicativo, que é um software colaborati-
    vo onde a gente posta, como se fosse um painel,
    nossas dúvidas e discutimos propostas.”
    Diante desse retrato de um mundo hostil, pode
    parecer que Tolkien rejeite a ideia de mudança.
    “Nunca antes estive fora de minha própria terra”,
    diz o hobbit Merry a certa altura. “E se eu soubesse
    como era o mundo aqui fora não acho que teria
    tido coragem de deixá-la.” No entanto, O Senhor
    dos Anéis não propõe o retorno a um passado ideali-
    zado, mesmo que evoque a nostalgia de eras ante-
    riores e grandiosas. Os conservadores hobbits são
    repreendidos por um elfo, que aponta para a inevi-
    tabilidade das mudanças: “O amplo mundo está
    em todo vosso redor: podeis vos encerrar em uma
    cerca, mas com cerca jamais podereis repeli-lo”.
    Permeando toda a obra, há uma certa melanco-
    lia em relação às metamorfoses pelas quais a Ter-
    ra-média passa, que soam familiares a qualquer
    pessoa que vive tempos de grandes transforma-
    ções. “Há alguns dentre nós que cantam que a Som-
    bra recuará, e a paz há de vir de novo”, diz o elfo
    Haldir. “Porém não creio que o mundo ao nosso
    redor volte outra vez a ser como foi outrora, ou a
    luz do Sol como era antigamente.” Apesar dessas
    mudanças todas, os valores são (ou deveriam ser)
    imutáveis, para Tolkien. A certo ponto, os heróis
    Aragorn, Legolas e Gimli encontram um guerreiro
    que se queixa: “É difícil ter certeza de alguma coisa
    entre tantas maravilhas. O mundo todo se tornou
    estranho”, e indaga: “Como um homem há de jul-
    gar o que fazer em tempos tais?” Ao que Aragorn
    replica: “Como sempre julgou (...) O bem e o mal
    não mudaram desde antanho”.
    Essa é a grande reflexão proposta por Tolkien,
    em meio aos temas recorrentes de sua obra: a per-
    manência da moralidade em meio à entropia e à
    constante transformação do universo. Porém, ain-
    da que a ameaça de Sauron seja vencida, a Terra-
    média nunca voltará a ser como antes. As várias
    eras narradas em sua mitologia mostram que a
    história é cíclica, se repete com pequenas varia-
    ções, e sempre de maneira menos eloquente. Por
    isso, no encontro final entre dois dos mais antigos
    personagens vivos, Barbárvore e Galadriel, o ser
    vegetal constata: “O mundo está mudando: sin-
    to-o na água, sinto-o na terra e farejo-o no ar”.


Nova tradução
de ‘O Senhor
dos Anéis’, por
Ronald Kyrmse,
busca restaurar
o estatuto épico
da obra de J.R.R.
Tolkien por
meio do uso da
linguagem

RETORNO

À TERRA-MÉDIA DE


TOLKIEN

O SENHOR DOS ANÉIS
AUTOR: J.R.R. TOLKIEN
TRADUÇÃO: RONALD KYRMSE
EDITORA: HARPERCOLLINS
1.680 PÁGINAS
(3 VOLUMES)
R$ 199,90


Aliás, Literatura


Valfenda. Ilustração do próprio Tolkien mostra o vale em que vive o elfo Elrond, e onde se forma o conselho para decidir o destino do anel


HARPERCOLLINS

%HermesFileInfo:E-1:20200322:E1 DOMINGO, 22 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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