O Estado de São Paulo (2020-03-22)

(Antfer) #1
Nina Siegal
THE NEW YORK TIMES / AMSTERDÃ, HOLANDA

O quadro Dois Negros, pintado por Rembrandt
Harmenszoon van Rijn em 1661, é uma das obras
mais inescrutáveis desse antigo
mestre holandês.
Um homem, trajando vestes ao
estilo romano com um xale, parece
fazer um discurso, enquanto outro
se apoia no ombro deste, atento.
A tela foi pintada com finas cama-
das de tons de terra e parece inaca-
bada, mas traz a assinatura do artis-
ta em sua superfície.
Por que Rembrandt a pintou? E
quem eram os retratados?
Essas eram algumas das pergun-
tas que a curadora de arte Stepha-
nie Archangel fez em 2015, quando
ficou algum tempo contemplando a tela no mu-
seu Mauritshuis, na cidade de Haia, localizada
nos Países Baixos.
Formada em sociologia, ela procurava nos
quadros “negros nos quais eu pudesse me reco-
nhecer”, disse Stephanie, nascida e criada em
Curaçao, ilha caribenha que já foi uma colônia
holandesa.
Descrita no site do museu Mauritshuis como
um provável retrato de “homens livres que vi-
viam em Amsterdã”, a tela de Rembrandt trans-
mitia uma sensação “humana e digna”, disse
Stephanie.
“Foi a primeira vez que vi negros do século 17
pintados por um mestre holandês, olhando para
mim orgulhosamente”, afirmou Stephanie, que
atualmente trabalha como assistente da curado-
ria do Rijksmuseum.
“Indaguei-me se isso seria mesmo verdade,
ou se era apenas a minha imaginação, ou a mi-
nha esperança de encontrar uma representação
orgulhosa como essa”, acrescentou ela.
Na época, Stephanie trabalhava no departa-
mento de ensino do Museu Casa de Rembrandt,
em Amsterdã. Ela entrou em contato com um
membro da curadoria da instituição, Elmer Kol-
fin, também professor de arte na Universidade
de Amsterdã, para perguntar se havia mais ima-
gens como aquela produzidas na era de ouro da
pintura holandesa.
Para a sua surpresa, Kolfin respondeu que, na
verdade havia muitas, mas estas frequentemen-
te eram ignoradas.
Foi daí que nasceu a exposição Here: Black in
Rembrandt’s Time (Aqui: De Volta à Época de Rem-
brandt), que ficaria aberta até 31 de maio na Casa
de Rembrandt, se não fosse pela pandemia glo-
bal do novo coronavírus, que fez com que a mos-
tra fosse fechada por tempo indeterminado, co-
mo vem acontecendo com exposições, shows,
peças de teatro e outros eventos culturais ao
redor do mundo.
A seleção de obras foi o resultado de um pro-
cesso de pesquisa e investigação realizado por
Stephanie, Kolfin e seus colegas do museu ao
longo de quatro anos.
A exposição conta com 56 telas, impressões e
objetos de arte da era de ouro da pintura holan-
desa, incluindo sete de Rembrandt (mas Dois

Negros, que inspirou a exposição, não está entre
elas; uma das condições da sua doação é jamais
deixar o museu Mauritshuis). Além disso, a ex-
posição inclui 15 obras de arte contemporâneas
ligadas ao mesmo tema.
Here: Black in Rembrandt’s Time é
parte de uma mudança cultural para-
digmática nos Países Baixos, onde a
era de ouro holandesa é frequente-
mente associada aos feitos – e retra-
tos – de uma elite branca e majorita-
riamente masculina do século 17.
Essa chamada descolonização dos
museus não é um movimento adota-
do por todos, mas, para aqueles que
não viram sua história refletida nas
exposições dos museus, a ideia pare-
ce um passo na direção certa.
Stephanie disse que o foco da ex-
posição são as imagens que represen-
tam “os muitos papéis diferentes desempenha-
dos pelos negros na sociedade, e os muitos pa-
péis diferentes que eles desempenhavam nas
pinturas para os artistas”. De acordo com ela, “a
exposição retrata mais do que aquilo que já sa-
bíamos, com imagens que geralmente mostra-

vam servos e escravos”.
No século 17, os Países Baixos estavam muito
envolvidos no comércio internacional de escra-
vos, mas a escravidão era proibida em solo holan-
dês. Os descendentes de africanos que viviam
nos Países Baixos na época traziam famílias de
imigrantes, disse o historiador Mark Ponte, do
Arquivo Municipal de Amsterdã, principal pes-
quisador da exposição da Casa de Rembrandt.
Ponte e os curadores disseram que desejavam
ligar os moradores negros do bairro em que
Rembrandt vivia às imagens criadas pelo artista.
No total, Rembrandt produziu pelo menos 26
imagens de negros, de acordo com a contagem
de Kolfin (12 pinturas, oito gravuras e seis dese-
nhos), e a maioria delas provavelmente foi feita
a partir de seus vizinhos, seja posando para ele
ou durante uma observação casual nas ruas.
“Os artistas holandeses gostam de pintar aqui-
lo que está na sua frente”, disse Kolfin. Entre as
décadas de 1620 e 1660, foi notável o aumento
da presença de negros em Amsterdã, acrescen-
tou ele, como revelado pela pesquisa de Ponte.
“Mas é impossível ligar os nomes aos rostos, o
que é muito frustrante", acrescentou Kolfin.
É claro que Rembrandt não era o único mestre
antigo que pintava negros. Milhares de imagens
da diáspora africana na arte europeia, que re-
montam ao período da antiguidade, estão rela-
cionadas na série de livros The Image of the Black
in Western Art (A Imagem do Negro na Arte Ociden-
tal), que consiste em dez volumes, iniciada nos
anos 1960 e atualmente publicada pela Harvard
University Press.
Os negros podem ser encontrados “em um
número considerável de imagens do século 17”,
disse Kolfin. “No entanto, sempre são menores,
ou estão posicionados perto do fundo, ou do
canto, sempre em papel coadjuvante.” Quando
um pintor tinha em um negro a figura central de
uma tela, este era habitualmente retratado co-
mo personagem bíblico, como Gaspar (um dos
três reis magos), ou como eunuco.
A exposição também inclui os três únicos re-
tratos de negros encomendados a um pintor ho-
landês do século 17, de acordo com Kolfin. São
telas de tinta a óleo produzidas por Jasper
Beckx, mostrando o Emissário do Congo, Don
Miguel de Castro, e seus dois servos, Pedro Sun-
da and Diego Bemba.
Castro, que trabalhava para o Rei do Congo,
não era tão “digno” quanto Stephanie esperava.
Durante uma negociação no Brasil, ele comprou
200 escravos como presente aos holandeses,
destacou ela.
De acordo com Stephanie, é uma situação
irônica. Quando temos um retratado “de rosto e
nome definidos”, disse ela, “o resultado é quase
doloroso”.
Independentemente disso, ela ficou feliz ao
ver tantas imagens da época. “Depois que come-
çamos a procurá-las, encontramos muitas de-
las”, disse Stephanie.
“Há escolhas que fizemos e empréstimos que
recebemos, e havia muito mais obras às quais
pedimos acesso, mas não o conseguimos. Havia
um universo de imagens muito maior do que eu
supunha ao começar a pesquisa.” / TRADUÇÃO DE
AUGUSTO CALIL

A era de ouro
da pintura
holandesa é
frequentemente
associada a uma
elite branca,
mas os negros
também foram
presentes nesse
período

ARTE EM TODAS AS


CORES


Aliás, Visuais


CONTEÚDO EXTRA: ESTADÃO JORNAL DIGITAL


Congolês. Don Miguel de Castro, retratado por Jasper Beckx (1643)

STATENS MUSEUM FOR KUNST

Século 17. Retratos
de homens negros
por Gerrit Dou e
Hendrik Heerschop

MIKE BINK/REMBRANT HOUSE MUSEUM

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 22 DE MARÇO DE 2020 Aliás

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