O Estado de São Paulo (2020-03-22)

(Antfer) #1
Anthony Tommasini
THE NEW YORK TIMES

Assisti no meu computador, em casa, uma apresen-
tação da Filarmônica de Berlim transmitida via
streaming, tocando Sinfonia, de Luciano Berio.
As câmeras mostraram a plateia: ninguém. Os
músicos, vestidos a rigor, pareciam não saber
exatamente o que fazer. No fim, cumprimenta-
ram-se entre si, e então encararam o salão vazio.
Foi uma das apresentações mais profundas e
chocantes que já vi. Desde o dia em que a Metro-
politan Opera começou a transmitir suas apre-
sentações pelo rádio, nos anos 1930, as formas
de disseminação da música se tornaram muito
mais sofisticadas. Mas a meta continua a mesma:
trazer você (o ouvinte, ou, mais recentemente, o
espectador) para dentro do teatro de ópera ou sa-
la de concerto, dando a sensação de quase fazer
parte do público “real” nos assentos.
Mas, desta vez, aqueles que sintonizaram para
assistir a óperas, concertos e apresentações de
música de câmara via streaming não estavam in-
vejando a plateia. Eles eram o único público.
Respondendo à proibição de aglomerações,
uma ampla gama de instituições poderia ter can-
celado totalmente sua programação, coisa que
muitas fizeram. Mas alguma prosseguiram com a
programação prevista, tocando para plateias va-
zias e transmitindo o resultado pela web.
Foi um espetáculo estranho e notável: músi-
cos vestindo fraques para se apresentar para o
público em casa. Foi como se a música tivesse en-
trado em uma nova esfera, com um novo elo en-
tre artista e público – temporário, é claro, mas
com implicações para o futuro após a pandemia.
No passado, elogiei as transmissões de rádio e
de alta definição como ferramentas poderosas

para atender aos fãs da música clássica, e talvez
apresentá-la os leigos. Ao mesmo tempo, enfati-
zei que essa é uma forma de arte que deve ser
apreciada ao vivo – em salões com acústica natu-
ral, quanto menor o público, melhor.
Mas depois de assistir via streaming a seis apre-
sentações ao vivo diferentes durante a tarde e a
noite, senti-me privilegiado por ser parte desse
público exclusivamente online. Escutei com
atenção redobrada e gratidão.
Esse episódio pode chamar mais atenção para
serviços de streaming disponíveis há anos. E,
quando a crise imediata passar, é possível que te-
nhamos dado um novo passo e nos acostumado
à ideia de que o streaming não é apenas uma al-
ternativa à maneira “correta” de se apreciar
música, mas um suporte viável para concertos.
Conforme os cancelamentos proliferaram nos
dias mais recentes, os anúncios de apresenta-
ções via streaming começaram a se acumular.
No intervalo de poucas horas, surgiu uma fartu-
ra de alternativas, o que me obrigou a fazer esco-
lhas difíceis. Comecei com a apresentação de
Carmen, de Bizet, pela Ópera Estatal de Berlim,
que ocorreu à noite na Alemanha, mas de tarde
para mim; pode ser vista em rbb-online.de.
Durante o prelúdio da orquestra, Daniel Baren-
boim tirou dos músicos uma apresentação impe-
cável, precisa. Os cantores não poderiam ter sido
melhores: o tenor Michael Fabiano, usando as
roupas escuras e o rosto sujo de um incansável
vigarista, cantou Don José com energia jovial e
um timbre poderoso. A voz da mezzo-soprano
Anita Rachvelishvili soou forte e voluptuosa.
Uma das artistas de ópera mais emocionantes da
nossa era, ela conseguiu cantar com sutil encan-
to e intimidade, ainda assim sugerindo uma Car-
men perigosa e determinada.

Enquanto Carmen estava em andamento, sin-
tonizei periodicamente aquilo que o genial pia-
nista Igor Levit chamava de “concerto caseiro pa-
ra as redes sociais”: tivemos a sonata Waldstein,
de Beethoven, tocada no apartamento dele em
Berlim com transmissão ao vivo por sua conta
no Twitter. O som do piano ficou um pouco me-
tálico na transmissão, mas o músico estava inspi-
rado e o resultado foi comovente. Não foi ideal,
mas teve que bastar, disse ele aos espectadores,
até que “possamos nos reunir novamente para
repetir a dose na vida real”.
Então sintonizei no concerto da Filarmônica
de Berlim. O teatro da orquestra tem assentos
em torno do palco, tornando ainda mais óbvias
as circunstâncias especiais dessa apresentação.
Recentemente a Filarmônica anunciou que todo
o conteúdo da sua plataforma Digital Concert
Hall estaria disponível gratuitamente.
Simon Rattle comandou um programa que há
muito era esperado, mas pareceu feito sob medi-
da para o momento atual: Sinfonia, de Berio, e o
Concerto para Orquestra, de Bartok. A obra de Be-
rio – composta em 1968, outro momento de con-
vulsão – é como uma “exploração da memória”,
disse Rattle ao público virtual. Com uma orques-
tra e um grupo de cantores, a obra é um e mais;
uma música que retrata o caos.
Depois do intervalo veio a peça de Bartok,
que, como Rattle mencionou, foi “composta
em meio à 2.ª Guerra Mundial por um refugia-
do moribundo”. De fato, Bartok, depois de fu-
gir da Hungria, vivia em Nova York, sentindo-
se deslocado e doente quando compôs a obra.
De acordo com Rattle, ele enfrentava questões
que os refugiados de hoje ainda vivenciam: “Co-
mo levar a um lugar desconhecido o que é pro-
fundamente importante para si?” Foi uma apre-
sentação magnífica.
Um programa da Sociedade de Música de Câ-
mara do Lincoln Center, no pequeno Rose Thea-
ter, incluiu o Trio de Cordas de Schoenberg, peça
composta depois de sofrer um ataque cardíaco,
de assombrosa intensidade e trechos de lirismo
agridoce. No Miller Theater, a pianista Simone
Dinnerstein apresentou um programa de obras
de Bach com músicos da orquestra Baroklyn.
Escutar Bach é sempre emocionante. Mas,
neste momento particularmente inquietante,
ouvir a cantata Ich Habe Genug – sobre alguém
que, depois de sentir o abraço do salvador, não
se sente mais parte desse mundo conflituoso
–, na voz da mezzo-soprano Kady Evanyshyn,
foi de arrepiar.
Yannick Nézet-Séguin comandou a Orquestra
da Filadélfia em seu lar, o Kimmel Center, em
apresentações empolgantes e incisivas da quinta
e da sexta (a Pastoral) sinfonias de Beethoven.
Pude ouvir a Pastoral quase inteira, e a apresenta-
ção tinha uma energia nova, quase caótica, verda-
deiramente rústica, palpável mesmo na tela do
computador. No fim, os músicos de ergueram
em silêncio e saudaram a nós, o verdadeiro públi-
co. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Com a restrição
a aglomerações,
orquestras ao
redor do mundo
transmitem
apresentações
via streaming,
levando música
aos ouvintes na
quarentena

CONCERTOS À


DISTÂNCIA


Aliás, Música


STEPHAN RABOLD

CONTEÚDO EXTRA: ESTADÃO JORNAL DIGITAL


‘Carmen’. Ópera
Estatal de Berlim
toca via streaming

PETER ADAMIK

Alemanha. Simon Rattle regeu a Orquestra Filarmônica de Berlim com obras de Berio e Bartok com plateia vazia


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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 22 DE MARÇO DE 2020 Aliás

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