O Estado de São Paulo (2020-03-23)

(Antfer) #1

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F2 Metrópole SEGUNDA-FEIRA, 23 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


l]
ARMINIO FRAGA
MIGUEL LAGO
RUDI ROCHA

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


David E. Sanger
David D. Kirkpatrick
Sui-Lee Wee
Katrin Bennhold / NYT


Está em curso uma corrida ar-
mamentista global por uma
vacina contra o coronavírus.
Nos três meses que se passa-
ram desde que o vírus come-
çou a se espalhar, China, Eu-
ropa e Estados Unidos saí-
ram em disparada para se tor-
narem os primeiros a produ-
zir a vacina.

Mas, ainda que exista coope-
ração em muitos níveis, paira so-
bre o esforço a sombra de uma
abordagem nacionalista que po-
deria dar ao vencedor a chance
de beneficiar a própria popula-
ção e ganhar vantagem para li-
dar com as consequências eco-
nômicas e geoestratégicas da
crise. O que começou como
uma questão de quem receberia
os elogios científicos, as paten-
tes e, finalmente, as receitas
por uma vacina bem-sucedida,
de repente se tornou uma ques-
tão mais ampla e urgente de se-
gurança nacional.
E por trás da disputa há uma
dura realidade: qualquer nova
vacina que se mostre eficaz con-
tra o coronavírus – já estão sen-
do realizados ensaios clínicos
em Estados Unidos, China e Eu-
ropa – certamente será escassa,
pois os governos farão de tudo
para garantir que a própria po-
pulação seja a primeira da fila.
Na China, mil cientistas es-
tão trabalhando no imunizan-
te, e o problema já foi militariza-
do: pesquisadores afiliados à
Academia de Ciências Médicas
Militares desenvolveram o que
é considerada a vacina com
maior chance de sucesso e es-
tão recrutando voluntários pa-
ra ensaios clínicos. A ideia é
“não ficar para trás dos outros
países”, disse Wang Junzhi, es-
pecialista em controle de quali-
dade de produtos biológicos da
Academia Chinesa de Ciências,
na terça-feira, em Pequim. O es-
forço ganhou feições de propa-
ganda. Já foi denunciada como
fake uma fotografia comparti-
lhada de Chen Wei, virologista
do Exército de Libertação Popu-
lar, recebendo uma injeção do
que seria a primeira vacina, em
uma viagem que ela fez a Wu-
han, onde surgiu o vírus.


O presidente Donald Trump
vem conversando em reuniões
com executivos do setor farma-
cêutico sobre maneiras de ga-
rantir a produção de uma vaci-
na em solo americano, para ga-
rantir que os Estados Unidos
controlem sua distribuição. Au-
toridades do governo alemão
disseram acreditar que o presi-
dente americano tentou atrair
uma empresa alemã, a Cure-
Vac, para fazer a pesquisa e pro-
dução de uma possível vacina
nos Estados Unidos. A empresa
negou ter recebido uma oferta
de aquisição, mas seu principal
investidor deixou claro que hou-
ve algum tipo de abordagem.
Questionado pela revista ale-
mã Sport 1 sobre como se deu o
contato, Dietmar Hopp, cuja
Dievini Hopp BioTech Holding
detém 80% da empresa, disse
não ter conversado “pessoal-
mente com o presidente

Trump”. “Ele falou com a em-
presa, e imediatamente eles me
contaram e perguntaram o que
eu pensava, e desde o primeiro
momento, concluí que era algo
fora de cogitação.”
O relato da abordagem foi su-
ficiente para levar a Comissão
Europeia a encaminhar mais
US$ 85 milhões à empresa, que
já contava com o apoio de um
consórcio europeu de vacinas.
No mesmo dia, uma empresa
chinesa ofereceu US$ 133,3 mi-
lhões por uma participação acio-
nária em outra empresa alemã
na corrida da vacina, a BioNTe-
ch. “Houve um despertar global
para a noção de que a biotecno-
logia é uma indústria estratégi-
ca para nossas sociedades”, dis-
se Friedrich von Bohlen, dire-
tor da holding que detém 82%
da CureVac.
E, assim como as nações fize-
ram questão de construir os pró-
prios drones, seus próprios
aviões stealth e as próprias ar-
mas cibernéticas, elas não que-
rem depender de uma potência
estrangeira para ter acesso aos
medicamentos necessários na
hora da crise. Depois de duas
décadas terceirizando a produ-
ção de medicamentos para a
China e a Índia, “queremos to-
do o processo de produção per-
to de casa”, disse Von Bohlen.
Alguns especialistas veem a
concorrência geopolítica como
algo saudável, desde que todos
os sucessos sejam compartilha-
dos com o mundo – o que as au-
toridades governamentais sem-
pre dizem que vão fazer. Mas
elas não dizem como, ou, mais
importante, quando. E muitos
analistas lembram o que aconte-
ceu durante a epidemia de gripe
A em 2009: exigiu-se que a em-
presa australiana que foi uma
das primeiras a desenvolver
uma vacina de dose única aten-
desse à demanda da Austrália
antes de receber os pedidos de
exportação para os Estados Uni-
dos e outros países.
Isso provocou indignação,
teorias da conspiração e audiên-
cias no Congresso sobre as ra-
zões da falta de vacinas. “Quere-
mos que todos cooperem, que
todos corram o mais rápido pos-
sível rumo à vacina e os melho-
res candidatos avancem”, disse
o Dr. Amesh Adalja, do Centro
de Segurança em Saúde da Uni-

versidade Johns Hopkins.
Executivos das principais em-
presas farmacêuticas do mun-
do disseram na quinta-feira que
estavam trabalhando juntos e
com os governos para garantir
que uma vacina seja desenvolvi-
da o mais rápido possível e dis-
tribuída de forma equitativa.
Mas eles imploraram aos gover-
nos que não monopolizem a va-
cina que vier a ser desenvolvi-
da, dizendo que isso seria devas-
tador para o objetivo mais am-
plo de eliminar a pandemia de
coronavírus.
“Gostaria de aconselhar a to-
dos a não entrarmos na armadi-
lha de dizer que agora temos de
guardar tudo em nossos países
e fechar fronteiras”, disse Seve-
rin Schwan, executivo-chefe da
Roche, uma empresa farmacêu-
tica suíça. “Seria completamen-
te errado adotar um comporta-
mento nacionalista que real-
mente atrapalharia as cadeias
de suprimentos e prejudicaria
as pessoas no mundo todo.”

Sem bloqueios. São os gover-
nos que decidem como a vacina
é aprovada e onde ela pode ser
vendida. “Se os países disse-
rem: ‘Vamos bloquear o supri-
mento para que possamos pro-
teger nossa população’, então
será um desafio levar a vacina
para os locais onde ela pode fa-
zer a maior diferença em ter-
mos epidemiológicos”, disse Se-
th Berkley, executivo-chefe da
GAVI, uma organização sem
fins lucrativos que fornece vaci-
nas para os países em desenvol-
vimento.
Cientes desses perigos, vá-
rios governos europeus e gru-
pos sem fins lucrativos já toma-
ram medidas para impedir que
os Estados Unidos ou a China
tenham monopólio sobre uma
potencial vacina contra o coro-
navírus. Depois que a epidemia
de ebola atingiu a África Ociden-
tal entre 2014-16, Noruega,
Grã-Bretanha e outros países,
sobretudo europeus, juntamen-
te com a Fundação Bill & Melin-
da Gates, começaram a contri-
buir com milhões de dólares pa-
ra uma organização multinacio-
nal, a Coalition for Epidemic
Preparedness Initiative (Coali-
zão para Iniciativas de Prepara-
ção para Epidemias), para finan-
ciar a pesquisa de vacinas.
Todos os seus acordos de fi-
nanciamento incluem cláusu-
las para acesso igualitário, ga-
rantindo que “as vacinas apro-
priadas estejam disponíveis pa-
ra as populações quando e onde
forem necessárias para inter-
romper um surto ou reduzir
uma epidemia, independente-
mente da capacidade de paga-
mento”, informou a organiza-
ção em comunicado. Nos últi-
mos dois meses, a coalizão fi-
nanciou pesquisas sobre oito
das vacinas mais promissoras
contra o coronavírus – até na
CureVac. E tudo isso deixa ain-
da mais obscuro o que exata-
mente Trump queria com a Cu-
reVac. / TRADUÇÃO DE RENATO
PRELORENTZOU

Crise coronavírus: prefeituras podem virar o jogo


N


a última sexta-feira (20/03),
o ministro da Saúde Luiz
Henrique Mandetta decla-
rou que o período de pico de infec-
ções por covid-19 no Brasil será nos
meses de abril, maio e junho. O mi-
nistro já admite que ao final de abril
nosso sistema de saúde entrará em
colapso. Esse cenário se apresenta
como ainda mais severo que o vivi-
do pelos italianos. Para evitar um
caos hospitalar dessa magnitude, a
semana que se inicia é crucial. O
governo federal, os estados e muni-
cípios precisam tomar medidas
imediatas que possam achatar a
curva de contágio e organizar o flu-
xo de atendimento do sistema de
saúde.
O impacto da covid-19 em nossos
hospitais será tremendo. O Brasil já
não tem capacidade hospitalar sufi-
ciente para atender o quadro sanitá-

rio existente. Persistem em nosso ter-
ritório os desertos sanitários: são ao
todo cento e vinte três regiões sanitá-
rias sem nenhum leito em UTI. O au-
mento de demanda por leitos ocasio-
nado pelo coronavírus agrava essa si-
tuação e exigirá um aumento significa-
tivo da produção hospitalar. O Institu-
to de Estudos de Políticas de Saúde
(IEPS) estima que cada um por cento
de população infectada corresponde-
rá a um bilhão de reais de gastos em
hospitalizações adicionais em unida-
des de tratamento intensivo. Com a
declaração do estado de calamidade, o
Tesouro está livre para fazer este in-
vestimento, sem dúvida de alto retor-
no social e humanitário.
Existem outras e rápidas medidas
que podem contribuir para limitar os
danos da pandemia. No topo da lista
está o distanciamento social. Evidên-
cias demonstram que tal medida é ca-
paz de achatar a curva de contágio da
epidemia, o que minimizaria o núme-
ro de casos graves desatendidos.
No entanto, é ilusório acreditar que
o terço mais pobre do Brasil, compos-
to de pessoas que ganham menos de
meio salário mínimo, deixará de circu-

lar nas cidades só com decretos imposi-
tivos, toques de recolher e outras medi-
das de vigilância. É necessário garantir
um mínimo de assistência para com-

pensar a extraordinária perda de ren-
da causada pelo distanciamento so-
cial. E é necessário fazer isso já. O go-
verno federal tem as condições de inje-
tar recursos na economia ainda nesta
semana, diretamente a mais de seten-
ta milhões de brasileiros. O Brasil
dispõe de uma base de dados organiza-
da com informações que identificam
esses indivíduos – o Cadastro Único,
que lista beneficiários de todos os pro-
gramas sociais focados nas famílias de
baixa renda. Ao abarcar os indivíduos
listados no Cadastro Único, sem neces-
sidade de triagem adicional, o governo
federal poderá evitar importantes cus-
tos e demoras de implementação.
Essas medidas de apoio socioeconô-
mico contribuirão imediatamente ao
controle do contágio. Mas elas não são
suficientes: é fundamental que sejam
complementadas com esforços na tria-
gem e organização do atendimento
hospitalar. Nesse sentido o SUS é fun-
damental, com sua rede de Atenção
Básica resolutiva, cuja responsabilida-
de compete aos municípios. No mo-
mento, existe grande disparidade na
capacidade de resposta por parte das
prefeituras.

É fundamental que elas come-
cem a trabalhar de maneira coorde-
nada, cumprindo um mínimo de re-
pertório de ações. O IEPS preparou
um check list de enfrentamento à
covid-19 direcionado aos municí-
pios, prevendo ações de rápida im-
plementação em quatro dimensões
essenciais. O protocolo indica co-
mo as prefeituras podem orientar
suas ações a partir dos dados e evi-
dências existentes; adaptar a organi-
zação dos serviços de saúde; fortale-
cer a prevenção através da comuni-
cação com a população; e, por fim,
reformular estratégias de gestão ins-
taurando uma cadeia de comando e
controle eficiente durante o perío-
do de crise. Não há tempo a perder:
se quisermos evitar o total colapso
do sistema hospitalar do país den-
tro de um mês, é necessário que go-
verno federal e as prefeituras imple-
mentem essas ações esta semana.

]
SÃO RESPECTIVAMENTE PRESIDENTE DO
CONSELHO, DIRETOR-EXECUTIVO E DIRE-
TOR DE PESQUISA DO INSTITUTO DE ES-
TUDOS PARA POLÍTICAS DE SAÚDE.

Imunizante ainda


vai demorar pelo


menos 12 meses


Mortes no Brasil chegam a 25 pessoas. Pág. F3 }


Pesquisa de vacina


se torna uma


competição global


Só se passaram 3 meses e China, Europa e Estados Unidos saíram


em disparada para se tornarem os primeiros a produzir imunizante


Artigo


FELIPE RAU/ESTADÃO

Ação. Distanciamento social
é medida das mais importantes

l Embora medicamentos antivi-
rais para tratar os efeitos do coro-
navírus possam ser testados sob
as diretrizes de “uso compassi-
vo”, as quais permitem experi-
mentos com pacientes desespe-
radamente graves, a vacina ain-
da vai demorar pelo menos 12 a
18 meses, afirmam autoridades
dos Estados Unidos e líderes de
grandes empresas farmacêuti-
cas. “As vacinas são injetadas
em pessoas saudáveis. Por isso,
precisamos garantir a seguran-
ça”, disse na quinta-feira David
Loew, vice-presidente executivo
da Sanofi Pasteur, na França.
Sua empresa está trabalhando
com a Eli Lilly e a Johnson &
Johnson nos Estados Unidos, a
Roche e a Takeda no Japão.
Em uma teleconferência na
quinta-feira, executivos das cinco
maiores empresas farmacêuti-
cas disseram que estavam traba-
lhando para aumentar a capaci-
dade de fabricação do setor, com-
partilhando recursos para au-
mentar a produção assim que for
identificada uma vacina ou um
medicamento antiviral.

Identificação

COMO SE FAZ UMA VACINA

O coronavírus
tem esse nome
porque possui
"espinhos" como
uma coroa

Uma vez
conectadoà
célula humana
ele se reproduz

Espinhos são
possíveis alvos
da vacina

RECEPTOR
ACE 2

ANTÍGENO

FRAGMENTOS
DO VÍRUS ANTICORPO

GENOMA
DO VÍRUS

CÉLULA
HUMANA

●Vacinas precisam de muitos estágios de desenvolvimento.
Desde a criação, passando por testes em animais e humanos,
até a aprovação por orgãos reguladores e a fabricação

1
A primeira coisa a
fazer é identificar o
agente causador da
doença. No caso o
coronavírus

(^2) Fragmentação
A vacina usa o vírus
inativo e fragmentado
para produzir
antígenos que irão
estimular o corpo a
produzir anticorpos
contra a doença
(^3) Testes
Os testes podem ser
iniciados em camundongos
transgênicos que
carregam o receptor ACE2
(^4) Testes em humanos
(^5) Fabricação
Pequenos grupos de
voluntários sadios
Fase 1
Centenas de
voluntários
escolhidos de forma
aleatória, incluíndo
alguns pertencentes
a grupos de risco
Produção em larga escala,
controle de qualidade e
acompanhamento para
detectar possíveis efeitos
adversos
Testa a
eficácia
da vacina
Fase 2
Milhares
de testes
Para avaliar
a eficácia em
condições
naturais de
presença da
doença
Fase 3
O vírus usa os espinhos
para se conectar ao
receptor ACE2 das
células humanas
Avalia a segurança
e eficácia em gerar
respostas do
sistema imunitário
Se obtiver sucesso a vacina é submetida às
autoridades regulatórias
INFOGRÁFICO/ESTADÃO

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