O Estado de São Paulo (2020-03-23)

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O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 23 DE MARÇO DE 2020 Metrópole F3


DANIEL MARTINS


DE BARROS


Q


uanto maior o instinto de so-
brevivência dos nossos ante-
passados, maiores as chan-
ces de eles enfrentarem obstáculos,
fugirem de ameaças, lutar por comi-
da e encontrar abrigo. Logo, maior a
chance de deixarem descendentes.
Quem pouco se importava em so-
breviver ou morrer, morria. E não se
reproduzia. Logo, somos todos des-
cendentes de gente com grande ape-
go à vida, característica que ficou
gravada em nosso cérebro.
Esse impulso de fugir da morte
com certeza servia muito bem a es-
se propósito quando estávamos de-
cidindo entre ficar sentados ou sair
correndo quando ouvíamos o rugi-
do de um leão. Decisões imediatas
eram necessárias quando as amea-
ças eram imediatas. Isso tudo mu-
dou de figura, contudo, quando nos-

so entorno mudou. Decisões imedia-
tas que eram importantes para sobre-
viver – comer o quanto puder, por
exemplo – tornaram-se péssimas para
nossa saúde agora que vivemos mais e
temos alimento em abundância.
A dificuldade enfrentada por médi-
cos em cuidados paliativos é outra
consequência desse impulso de sobre-
vivência. Há doenças em que, chega
uma hora, é preciso tirar o foco da cu-
ra e investir no alívio do sofrimento.
Os paliativistas, profissionais especia-
listas nesses cuidados, sofrem resis-
tência para convencer a família disso.
O paciente irá morrer de qualquer for-
ma, mas só poderá fazê-lo de forma
tranquila se não nos recusarmos tão
peremptoriamente em aceitar a mor-
te, insistindo com medidas extremas
para mantê-lo vivo. O que fazemos
mesmo à custa de grande sofrimento.

A pandemia atual entrará para a
história como um evento coletivo
em que esse instinto de sobrevivên-
cia imediato foi acionado na humani-
dade toda de uma só vez.
Pela primeira vez acompanhamos
ao vivo a contagem das mortes à me-
dida que ocorrem. O desconforto
dessa experiência é tamanho que de-
sejamos fazer qualquer coisa para
controlar a doença. Agora. O urgente
é impedir óbitos já. Para conseguir
isso, entretanto, as medidas têm que
ser drásticas. Mas parecem justificá-

veis. Afinal, são vidas humanas. A úni-
ca coisa em que queremos pensar
por enquanto é no que fazer – seja o
que for – para sobreviver.
Mas é importante começar a pensar
também no que acontecerá depois.
Lembre-se que as decisões imedia-
tas que eram úteis nas cavernas atual-
mente trazem consequências impre-
vistas. Só vamos conseguir parar pa-
ra pensar nisso, contudo, depois que
estivermos nos sentido seguros em

casa e os boletos começarem a che-
gar por baixo da porta. Sem qualquer
fonte de renda, o medo de morrer
que motivou a adoção de algumas me-
didas se transformará em desespero
financeiro. Talvez nessa hora a pres-
são popular se inverta, e não duvido
que comecem cobranças pelo fim
das restrições.
Isso não significa priorizar a econo-
mia sobre a vida. Significa que não po-
demos deixar de nos esforçar para pen-
sar adiante. Os EUA já estimam que
irão despencar do pleno emprego para
taxas de desemprego de 20%. Um em
cada cinco americanos. A Alemanha
prevê encolher 9%. A recessão será glo-
bal, com aumento da pobreza e do de-
semprego. Claro que é um horror ver
subir a contagem de mortes por coro-
navírus. Mas o impacto de uma reces-
são como a que se avizinha não será
apenas trágico. Será letal. Mas como
as mortes serão distribuídas no tem-
po, não chamarão tanta atenção.
Por crescer rapidamente, diante
de nossos olhos, os milhares de óbi-
tos por coronavírus são mais angus-
tiantes do que os quarenta e cinco
mil suicídios anuais ligados ao de-
semprego, que ficam fora do nosso
radar. Mas para dar uma ideia da gra-

vidade do momento, o aumento
do desemprego após a crise econô-
mica de 2008 acrescentou cinco
mil suicídios a esse total – só no
ano seguinte. Estudo feito sobre a
grande recessão dos anos 1990 na
Suécia mostrou que o desemprego
estava associado, no longo prazo,
a risco de mortes até 60% maior
entre homens. Já as mortes relacio-
nadas ao uso de álcool chegaram a
ser cinco vezes maior em mulhe-
res sem emprego.
As manchetes sobre os médicos
italianos sendo obrigados a esco-
lher quem vive e quem morre por
falta de aparelhos de respiração
nos tocam profundamente. Mas
de alguma forma nós também esta-
mos fazendo escolhas. Temos que
ter coragem para encarar o fato de
que nossas decisões determinam
não só quantas pessoas morrem
no presente por falta de UTI mas
também no futuro, por falta de em-
prego. E coragem para pensar em
como equilibrar essa equação.
Não tenho pretensão de saber o
melhor curso de ação. Mas não po-
demos mais atravessar os próxi-
mos dias fingindo que esse dilema
não existe.

facebook/danielbarrospsiquiatra
ESCREVE QUINZENALMENTE

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Quando sociedades atuam
em função de emoções, há
um problema bem maior

Pacaembu começa


a receber hospital


Anne Warth
Eduardo Rodrigues
Felipe Frazão
João Ker


O Ministério da Saúde confir-
mou neste domingo, 22, que o
País tem 25 mortes causadas
pelo novo coronavírus. De
acordo com a pasta, são 1.546
casos confirmados da doen-
ça. Em relação aos dados di-
vulgados no sábado, 21, são
418 casos a mais, um aumen-
to de 37%, e mais sete mortes,
um crescimento de 39%. São
Paulo continua tendo o
maior número mortes, agora
são 22, e também de casos
confirmados, 631. No sábado,
eram 15 mortes no Estado. As
sete novas mortes de São Pau-
lo aconteceram na capital.

De acordo com o Ministério
da Saúde, todos os Estados do
País já têm casos confirmados –
até sábado Roraima não tinha e
agora registra dois. No Norte,
são 49 casos, 3,2% do total. No
Nordeste, 231 ocorrências,
14,9% do total. No Centro-Oes-
te, 161 casos, 10,4% do total. No
Sul, 179 vítimas, 11,6% do total.
O Sudeste concentra o maior
número, 926 ao todo, com
59,9%, e todas as mortes foram
registradas em São Paulo e no
Rio de Janeiro.


Durante a coletiva, o minis-
tro da Saúde, Luiz Henrique
Mandetta, afirmou que os mais
de 5 milhões de testes rápidos
encomendados pelo governo
para os próximos oito dias virão
de uma fabricante chinesa e
apresentam sensibilidade de
86,43% e especificidade de
99,5%. A expectativa é que ocor-
ram de 30 a 50 mil exames por
dia. Mandetta disse ainda que o
Brasil tem capacidade para pro-
duzir e exportar cloroquina, um

dos medicamentos que têm ti-
do resultados promissores em
testes para tratamento do novo
coronavírus. Segundo ele, tan-
to a Fiocruz quanto o Laborató-
rio do Exército têm condições
de produzir a medicação – que
serve para combate da malária,
lúpus e artrite reumatoide.
Segundo ele, alguns pacien-
tes com o novo coronavírus já
vêm sendo tratados com essa
medicação, mas ainda não é pos-
sível dizer se a cloroquina foi

decisiva ou não para a melhora
do estado de saúde. “Agora,
quando uma pessoa entra em es-
tado grave, fica quase impossí-
vel ao médico negar o medica-
mento e dizer que ainda são es-
tudos”, afirmou o ministro.
Mandetta disse, porém, que o
governo ainda não definiu o pro-
tocolo para a medicação – dosa-
gem, intervalo entre as doses e
quem deve ou não usá-la, se to-
dos os infectados ou apenas os
internados. Mandetta alertou,

ainda, que há efeitos colaterais
que podem ser graves e dano-
sos, “muito mais graves que
uma gripe”, e que não faz senti-
do que pessoas adquiram a clo-
roquina para estocar em casa
sem necessidade.
O ministro disse ainda que a
estimativa é que metade da po-
pulação seja contaminada pelo
novo coronavírus e, desse total,
mais da metade não terá sinto-
mas. Dos que tiverem sinto-
mas, segundo Mandetta, 15% de-
vem necessitar de internação
hospitalar, e o restante não se-
rão casos graves. Ele disse que o
fato de o Brasil ter uma popula-
ção jovem pode contribuir no
enfrentamento da doença, for-
mando um grande cordão imu-
nológico com menos casos gra-
ves. “Uma minoria vai necessi-
tar de internação hospitalar. Se
ocorresse ao longo do ano, seria
uma gripe forte e uma epidemia
para idosos”, afirmou. “Como
não temos e ninguém tem imu-
nidade, está acontecendo de
maneira abrupta e levará muita
gente ao sistema de saúde, co-
mo se tivesse apenas uma gela-
deira e de repente todo o quar-
teirão precisasse dela.”
Mandetta disse que o SUS pre-
cisa ganhar tempo para que o
sistema e aumente sua capilari-
dade, leitos e CTIs.

O ministro também relem-
brou que a campanha de vacina-
ção contra a gripe começa no
País nesta segunda-feira, 23,
com foco em profissionais de
saúde e pessoas acima de 60
anos, como forma de evitar ca-
sos graves no futuro.
Para Mandetta, é necessário
ter “bom senso” na hora de sair
de casa. “Se seu município é pe-
queno e não tem nenhum caso
ainda, use o bom senso e ouça
seu secretário”, disse.

São Paulo. De acordo com a Se-
cretaria Estadual da Saúde, dos
sete novos óbitos confirmados
desde sábado em São Pauo, cin-
co são homens, com idades en-
tre 76 e 83 anos, e duas mulhe-
res, de 88 e 96 anos. Entre o to-
tal de mortes registradas até o
momento, 21 ocorreram em
hospitais privados e uma em
hospital público.

Agora e depois


O estádio do Pacaembu come-
çou a receber a estrutura de sus-
tentação metálica para a monta-
gem de um hospital de campa-
nha para atender as vítimas da
covid-19 de São Paulo. A acomo-
dação da estrutura, que ficará
no gramado, começou no sába-

do e seguiu sendo montada no
dia seguinte. Na última sexta-
feira, o prefeito Bruno Covas
(PSDB) anunciou que o local,
assim como o Anhembi, seria
utilizado para receber leitos
hospitalares.
Segundo informações da Alle-
gra, empresa que administra o
complexo do Pacaembu, em cer-
ca de dez dias a estrutura estará
pronta para receber uma tenda
de 6.300 metros quadrados. Em
seguida chegará o corpo médi-
co e em duas semanas o local já
estará recebendo pessoas.

De acordo com Covas, tanto
o hospital de campanha do Pa-
caembu quanto o do Anhembi
vão contar com a parceria do
hospital Albert Einstein. O está-
dio receberá 200 leitos e o
Anhembi terá 1.800. “Vamos
adaptar esses dois espaços, um
deles cedido pelo novo conces-
sionário do Pacaembu, que esta-
rá pronto em duas semanas. Já
as 1.800 vagas no Anhembi esta-
rão prontas em até três sema-
nas”, afirmou o prefeito, em en-
trevista coletiva concedida na
última sexta-feira.
Também na sexta-feira passa-
da, o secretário municipal de
Saúde, Edson Aparecido, expli-
cou como o local será utilizado.
“Faremos grandes hospitais de
campanha para abrigar as pes-
soas que ainda não estão agrava-
das nos nossos hospitais para
poder internar as pessoas que
precisam das UTIs. É uma nova
fase. São iniciativas de um enor-
me impacto do ponto de vista
de saúde pública”, explicou.
A Prefeitura ainda não defi-
niu quantos médicos vão traba-
lhar nesses hospitais. A tendên-
cia é que novas estruturas como
as do Pacaembu sejam monta-
das em outras regiões da cidade
à medida que a demanda por
atendimento aumente. O Corin-
thians e o São Paulo colocaram
seus estádios (Arena Corin-
thians e Morumbi, respectiva-
mente) à disposição para aju-
dar, caso seja necessário.

Tulio Kruse


Os moradores de Paraisópolis,
segunda maior favela da cidade
de São Paulo, tentam organizar
um plano independente para
conter as infecções pelo novo
coronavírus. A mobilização te-
ve de ser acelerada neste fim de
semana, após líderes comunitá-
rios serem informados sobre
cinco casos confirmados na co-
munidade, além de 315 suspei-
tos na região do Campo Limpo,
onde fica a favela.
São 100 mil moradores em to-
da a comunidade. Desses, 25 mil
têm acima de 60 anos. Consulta-
da, a Secretaria Estadual de Saú-
de disse que não pode confir-
mar dados pessoais sobre pa-
cientes, nem confirmar se hou-
ve casos em Paraisópolis. O rela-
to de internações entre morado-
res, e o crescimento de casos
suspeitos em isolamento, alar-
mou os líderes comunitários.


“Vai morrer muita gente em
Paraisópolis, a situação é mais
grave do que a gente imagina”,
diz Gilson Rodrigues, que admi-
nistra a União de Moradores e
do Comércio local. Ele cobra
uma política de prevenção para
a periferia. As condições de mo-
radia, acesso a água e a produ-
tos de higiene devem agravar a
transmissão do coronavírus na
favela. A associação quer recru-
tar 420 voluntários para vigiar
os 21 mil domicílios do local.

“As condições em que eles vi-
vem são extremamente favorá-
veis à disseminação de doenças
respiratórias”, diz o epidemio-
logista Eliseu Waldman. Ques-
tionado, o governo estadual dis-
se que as medidas anunciadas
valem para toda a população. A
Prefeitura passou a usar carros
de som com alertas de orienta-
ção na periferia assim como as-
sistentes sociais conversam
com moradores e distribuem ál-
cool gel e máscaras.

Estratégia. Ministro disse que Brasil precisa de tempo para ampliar capacidade do SUS

País tem 1.546 casos confirmados da covid-19; Mandetta confirmou ontem que os testes rápidos serão importados da China


l Análise

‘Cidade’ com 100 mil pessoas,


Paraisópolis tenta se organizar


Avenida Paulista vive um domingo sem pessoas e sem carros. Pág. F4 }


ISAC NÓBREGA/PR

Mortes já chegam a 25; só três não são em SP


“Uma minoria vai
necessitar de internação
hospitalar. Se ocorresse ao
longo do ano, seria uma
gripe forte e uma epidemia
para idosos”,
Luiz Henrique Mandetta,
MINISTRO DA SAÚDE

BEATRIZ OLIVEIRA/ALLEGRA PACAEMBU

Estrutura provisória vai
ser instalada no gramado
e receberá pacientes
de São Paulo infectados
pelo novo coronavírus

Previsão. Local deverá receber 200 leitos de tratamento

Mobilização ganhou força


após notícias circularem


dando conta de que cinco


casos já tinham ocorrido


dentro da comunidade


WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Ação. Prefeitura começou a fazer alertas nas periferias
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