O Estado de São Paulo (2020-03-23)

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O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 23 DE MARÇO DE 2020 Metrópole F5


Gonçalo Junior
Priscila Mengue


Na linha de frente no comba-
te ao novo coronavírus, médi-
cos e enfermeiros confessam
medo, insegurança e apreen-
são com o avanço da doença.
Eles não temem apenas o pró-
prio contágio, mas também a
transmissão para a família – o
que faz mudar até a rotina
dentro de casa. Além disso, os
profissionais da saúde se
queixam de falta de mate-
riais, como luvas, máscaras e
álcool em gel, em algumas uni-
dades hospitalares.

Os índices de contaminação
entre os profissionais de saúde
é alto. A Federação das Ordens
dos Médicos Cirurgiões e Den-
tistas da Itália, país com maior
número de casos na Europa,
criou um site em homenagem
aos “mortos em combate”. Já
são 17 os médicos mortos pela
covid-19 no país europeu. No
Brasil, não foram registrados
óbitos de profissionais de saú-
de – há um caso em investiga-
ção em São Paulo.
O cirurgião de coluna Luiz
Cláudio Rodrigues, do Hospital
Santa Marcelina, também usa a
metáfora da guerra. “Estamos
em uma guerra e fomos convo-
cados. Não temos opção de di-
zer ‘não’. A informação que a po-
pulação recebe é a mesma que
temos”, conta.
O Conselho Federal de Medi-
cina e a Associação Médica Bra-
sileira orientaram os profissio-
nais que atuam com questões
não urgentes, como cirurgias
eletivas e atendimentos ambu-
latoriais, a fecharem consultó-
rios. Foi o que aconteceu com
Marcus Yu Bin Pai, especialista


em dor e acupuntura. “Existe
desinformação e incerteza.
Existe grande temor de conta-
minação entre os médicos que
atuam nos prontos-socorros e
hospitais.”
Quando é possível, os pró-
prios médicos adotam para si
uma espécie de quarentena.
Aos 71 anos, o oncologista Artur
Malzyner, consultor científico
da Clínica de Oncologia Médica
(Clinonco) e médico do Hospi-
tal Albert Einstein, afirma pas-

sar 90% do tempo em casa. “Te-
mo a contaminação, sim.”
A preocupação também se es-
tende a enfermeiros. “Nosso
ambiente de trabalho está ten-
so, pois estamos tendo confli-
tos. Os médicos estão assusta-
dos e cobram mais de nós”, diz
uma enfermeira que atua em
uma Unidade Básica de Saúde
(UBS) na zona leste de São Pau-
lo. “O que mudou na nossa roti-
na foi trabalhar com medo.”
Rogério Medeiros, coordena-

dor nacional da Rede Saúde Fi-
lantrópica, entidade que reúne
as Santas Casas de Misericór-
dia, Hospitais e Entidades Filan-
trópicas, afirma que a falta de
materiais é parcial. “Ninguém
trabalhava com estoque para es-
se tipo de demanda. Já existem
programações de compra. A pri-
meira semana é de desespero.
O uso foi indiscriminado.”
Ao menos 43 denúncias de fal-
ta de proteção adequada para
profissionais de saúde durante

a pandemia do coronavírus fo-
ram registradas desde terça-fei-
ra, no Sindicato dos Médicos de
São Paulo (Simesp). A entidade
cogita procurar o Ministério Pú-
blico e até entrar com ações na
Justiça.

Einstein. Alguns hospitais es-
tão adotando regras rígidas
com a prevenção dos funcioná-
rios. No Albert Einstein, pionei-
ro na detecção de casos e com
pacientes hospitalizados com

coronavírus, os cuidados com
profissionais foram intensifica-
dos. É preciso usar a máscara no
momento em que o funcionário
entra no hospital. Ela deve ser
substituída a cada duas horas; a
lavagem das mãos é constante.
Casos com sintomas respirató-
rios evidentes são isolados ime-
diatamente para avaliação. Em
caso positivo para coronavírus
ou influenza, quarentena de 14
dias. Não há dados sobre funcio-
nários afastados.

Com templos fechados no mun-
do todo, o papa Francisco con-
vocou para quarta-feira uma
oração universal do pai-nosso,
para a qual pediu apoio de to-
das as igrejas cristãs e confis-
sões religiosas. Além disso, na
sexta-feira, fará uma declara-
ção universal em que destacará
o perdão espiritual para as pes-
soas que combatem o coronaví-
rus, para as que morreram em
decorrência da doença e para
as que rezam por todos.
“Na sexta, darei a Bênção Ur-
bi et Orbi (à cidade de Roma e
ao mundo, normalmente usada
na Páscoa e no Natal), à qual
será acompanhada a possibili-
dade de receber a indulgência
plenária. Queremos responder
à pandemia com a universalida-
de da oração, da compaixão, da
ternura. Permaneçamos uni-
dos. Façamos com que as pes-
soas mais sozinhas e em maio-
res provações sintam a nossa
proximidade”, afirmou Francis-
co ontem.
Um Decreto da Penitenciaria
Apostólica do Vaticano conce-
deu na sexta-feira a possibilida-
de da chamada indulgência ple-
nária aos doentes de coronaví-
rus, aos que cuidam deles e a
todos os fiéis do mundo que re-
zam por eles. Na Igreja Católi-
ca, essas indulgências se refe-
rem às penas temporais a se-
rem pagas em caso de desobe-
diência a Deus. Há variadas for-
mas de receber a indulgência,
que vão de uma récita de pai-
nosso, credo e uma oração a Ma-
ria até a leitura de meia hora da
‘Bíblia’, por exemplo.
O Vaticano também abriu a
possibilidade de absolvição co-


letiva neste momento de grave
necessidade. No catolicismo, o
perdão é dado por meio de uma
confissão individual com o pa-
dre. Com as dificuldades trazi-
das pelo coronavírus que le-
vam ao isolamento social, o fe-
chamento de templos e impos-
sibilidade de cerimônias coleti-
vas – só no Brasil metade das
dioceses fechou templos, inclu-
indo anteontem a Arquidioce-
se de São Paulo –, caberá a cada
bispo estabelecer essa necessi-
dade.
“Cabe a ele determinar, no
território de sua circunscrição
eclesiástica e em relação ao ní-
vel de contágio pandêmico, os
casos de grave necessidade em
que é permitido dar absolvição
coletiva: por exemplo, na entra-
da das repartições hospitala-
res, onde se encontram interna-
dos os fiéis contagiados em pe-
rigo de morte, utilizando, na
medida do possível e com as de-
vidas precauções, os meios de
amplificação da voz a fim de
que a absolvição possa ser ouvi-

da”, explica o texto oficial.
A Penitenciaria também pe-
de para avaliar “a necessidade e
a oportunidade de criar, onde
for necessário, e de acordo com
as autoridades de saúde, gru-
pos de ‘capelães hospitalares
extraordinários’, também de
forma voluntária e conforme as
regras de proteção contra o con-
tágio, para garantir a necessá-
ria assistência espiritual aos
doentes e agonizantes”.
O papa voltou a reiterar a ne-
cessidade de seguir as ordens
das autoridades. “A nossa proxi-
midade aos médicos, aos profis-
sionais da saúde, enfermeiros e
enfermeiras, voluntários... A
nossa proximidade às autorida-
des que devem tomar medidas
duras, mas para o nosso bem.
Nossa proximidade aos poli-
ciais, aos soldados, que nas
ruas procuram manter sempre
a ordem, que se realizem as coi-
sas que o governo pede para o
bem de todos nós. Proximida-
de a todos.”
Na última quarta-feira, o pa-
pa Francisco solicitou apoio a
uma oração universal, incluin-
do todas as religiões. “Convido
todos os chefes das igrejas e os
líderes de todas as Comunida-
des cristãs, junto a todos os cris-
tãos das várias confissões, a in-
vocar o Altíssimo, Deus Todo-
Poderoso, recitando simulta-
neamente a oração que Jesus
Nosso Senhor nos ensinou. Por-
tanto, convido todos a recitar o
pai-nosso ao meio-dia da próxi-
ma quarta-feira”, disse ele, vol-
tando a abençoar ontem uma
Praça de São Pedro vazia, sem
fiéis, por causa do avanço da co-
vid-19. / COM AGÊNCIAS
INTERNACIONAIS

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Profissionais de saúde relatam que rotina com a covid-19 traz mais desafios, estresse e receios; sindicato cogita ir ao MP e à Justiça


l Pedido

Preocupação maior


é não levar a doença


para dentro de casa


Isoladas, famílias tentam se reinventar. Pág. F6 }


NANDO CARVALHO-1/10/2017

Eles estão na linha de frente. E têm medo


Para o combate. ‘Estamos em uma guerra e fomos convocados’, diz o médico Luiz Cláudio Rodrigues, do Santa Marcelina

“Façamos com que as
pessoas mais sozinhas e em
maiores provações sintam a
nossa proximidade”
Papa Francisco

ALBERTO PIZZOLI/AFP

Vaticano também abriu a


possibilidade de absolver


coletivamente neste que


é considerado momento


de extrema gravidade


Papa convoca oração


universal e dará


perdão extraordinário


Sem fiéis. Ontem o papa abençoou a praça vazia no Vaticano

lAlém do receio de contamina-
ção, os profissionais de saúde
também se preocupam em não
levar o vírus para casa. Quando
volta para casa, Luiz Cláudio La-
cerda Rodrigues tira os sapatos
e passa direto para a lavanderia.
O médico de 42 anos coloca para
lavar toda a roupa que usou du-
rante o dia. Tudo separado das
outras peças. Em seguida, vai
tomar banho. Só depois, ele abra-
ça e beija a mulher Glayce e os
filhos, Luiz Felipe, de 18 anos, e
Julia, de 9 anos. Antes não era
assim. O abraço na família era
obrigatório logo na chegada.
Já uma enfermeira do Hospital
Nove de Julho tomou uma atitu-
de radical: decidiu usar as econo-
mias para alugar um apartamen-
to e ficar longe dos pais por dois
meses. Ela está indo para o Jaba-
quara enquanto o pai, de 62
anos, e a mãe, 56, vão continuar
na zona norte.
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