O Estado de São Paulo (2020-03-23)

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F6 Metrópole SEGUNDA-FEIRA, 23 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


DEPOIMENTO


Gilberto Amendola

A


família que “janta jun-
to todo dia e nunca
perde essa mania”
não está mais apenas naque-
le hit radiofônico da banda
Titãs, lançado nos anos 1980.
A família nos tempos da pan-
demia de coronavírus está
jantando junto todo dia, tra-
balhando, estudando, se di-
vertindo e esperando.
A família da Thaís Sabino,
de 38 anos, está toda de qua-
rentena. Ela, que trabalha na
comunicação interna de em-
presas, e o marido, o veteriná-
rio Renato Cavalcanti, de 37
anos, foram postos em home
office. O casal tem duas fi-
lhas, a Isabela, de 1 ano e 10
meses; e a Lara, de 10 anos.
“No início, a escola das crian-
ças ainda estava mantendo
as aulas, mas nós optamos
por deixá-las em casa”, con-
tou Thaís. “Mas o problema é
que duas crianças pequenas
em um apartamento é uma
coisa muito difícil.”
Para arejar um pouco o con-
finamento, Thaís fez uma tro-
ca com os pais, que moram
em Indaiatuba, no interior.
“Eles vieram fazer quarente-
na em São Paulo. E nós vie-
mos para Indaiatuba – princi-
palmente para as crianças te-
rem um pouco mais de espa-
ço”, afirmou Thaís.
Na busca da manutenção
de alguma rotina, Thaís e Re-
nato tentam alternar fun-
ções. Enquanto ela está em
alguma call com clientes,
ele fica com as crianças.
“Me tranco no quarto e ten-
to trabalhar”, confessou
Thaís. “Às vezes, sou eu e
ele pendurados no telefone
e com as crianças gritando,

o cachorro latindo. Não é per-
feito, mas é o que dá para fa-
zer”, completou.
Enquanto as aulas online da
Lara não começam (a escola de-
la já está trabalhando nisso), Re-
nato vai descobrindo as delícias
de ficar mais perto das crianças.
“No apartamento, elas ficavam
tocando o terror. Agora, aqui, é
mais tranquilo. A TV fica nos
programas infantis e consigo
participar mais da rotina delas,
brincar, conversar e ficar por
perto”, contou o pai. “A minha
filha mais velha está entre os
dois sentimentos. Tem vezes
que é ‘oba, estou de férias’; e ou-
tras, que já é de alguma preocu-
pação por entender o que está
acontecendo”, falou a mãe.
A família do técnico em infor-
mática Leandro Cozzi, de 41
anos, e da autônoma Daniele As-
sumpção, de 33, também está se
adaptando à nova rotina. “Essa
é a primeira vez que eu faço ho-
me office. Ainda é um caos que
eu estou precisando organizar,
como mudar meu ambiente de
trabalho. Mas aos poucos vou
me adaptando”, falou Cozzi.
“Acredito que o mais importan-
te é manter a saúde mental da
família. Temos de conversar
bastante e manter nosso coti-
diano saudável”, disse Daniele.
O filho do casal, Luigi, de 8
anos, começou suas aulas onli-
ne na semana passada. “É um
tal de ‘mamãe, vem aqui me
ajudar com isso e aquilo’ o tem-
po todo”, disse Daniele. “Tam-
bém estou me transformando
em professora. Você vai viran-
do multitarefa”, completou.
O casal espera que entre todos
os perrengues não esteja a ne-
cessidade de estocar produ-
tos. “Não chegamos nesse pon-
to. E espero não chegar”, disse
Cozzi.

Juntos. A quarentena da prepa-
radora física especializada em
golfe Gabriela Arantes, de 37
anos, foi juntar dois núcleos fa-
miliares debaixo do mesmo te-
to. Ela e a irmã gêmea, Daniela
Arantes, pegaram os maridos e
as crianças e foram coabitar em
uma casa de campo. Gabriela e a
irmã trabalham juntas. Então,
enquanto uma está fazendo ‘fa-
cetime’ ou ‘live’ com alunos gol-
fistas (passando exercícios onli-
ne), a outra fica com as crian-
ças. Carolina e Gabriel têm 6
anos e já estão tendo suas pri-

meiras lições remotas. “Claro,
elas precisam de ajuda para
abrir links, tirar dúvidas”, co-
mentou. “Tudo o que está acon-
tecendo é muito difícil, mas
acho que nunca passei tanto
tempo com a minha filha como
tenho passado agora. Se for pra
achar um lado bom nisso, é es-
se”, completou.
A dinâmica da casa se comple-
ta com Marcus Gusmão, de 38
anos, que é superintendente de
uma instituição bancária; e Feli-
pe Gama, que trabalha no ramo
de hotelaria. “Eles se trancam,

cada um em um quarto, e pas-
sam o dia em reuniões e calls
dentro do quarto. “Não saem pa-
ra nada. Entram às 8 horas da
manhã e saem só depois das 18
horas”, falou Gabriela.
Para manter alguma ativida-
de física e diversão familiar, Ga-
briela está organizando com to-
da a família um fim de semana
de brincadeiras em casa, exercí-
cios físicos, futebol e etc... “Va-
mos passar por isso da melhor
forma possível. E fazer a nossa
parte para impedir o avanço do
coronavírus”, afirmou.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


É preciso cuidar


da saúde mental,


dizem especialistas


‘Me recuso a organizar atividades escolares caseiras’


THE NEW YORK TIMES


Graças ao coronavírus, meus
gêmeos do 3.º ano estão em
casa o dia todo, situação que
não deve mudar no futuro
próximo. Não vou recriar as
atividades escolares para eles.
Podem me julgar. Em respeito
aos incríveis professores de-
les, faço um esforço legítimo
para que as crianças cumpram
as tarefas escolares que rece-
bem em casa, mas isso está
longe de corresponder ao que
teria sido um dia de aula. De-
pois de realizarem o mínimo,
o objetivo é sobreviver e assis-
tir TV até não aguentar mais.
Comemos porcarias de todo o
tipo e torcemos pelo melhor.
Amamos uns aos outros e ten-
tamos não enlouquecer.
Quando ficamos sabendo
que as escolas fechariam, tive
certeza de que logo surgiriam
publicações nas redes sociais
com dicas de organização das
atividades escolares em casa,
atividades incríveis e relativa-
mente trabalhosas (para os
adultos) destinadas às crianças.
Minha previsão estava correta:
vimos agendas escolares organi-
zadas por cor, com cada minu-
to programado, recursos online
ensinando as crianças a prati-
car ioga e meditação, aulas de
francês, e até um passo a passo


de como construir um foguete.
Pais e mães compartilham re-
ceitas de bom equilíbrio nutri-
cional para melhorar a produti-
vidade dos estudos. Muitos já
começaram a lamentar ao ver
que não conseguiriam atender
essas novas expectativas.
Quero mandar um recado
aos pais, e principalmente às
mães que trabalham, que inevi-
tavelmente assumirão a maior
parte desse fardo caseiro ao
mesmo tempo em que traba-
lham remotamente: será uma
bagunça, e tudo bem. Não sou
especialista em turmas de 3.º
ano, e não tenho as habilida-
des das professoras de um dos
meus filhos, que tem necessi-
dades especiais e recebe nu-
merosos serviços de educado-
res profissionais todos os dias
para garantir desenvolvimen-
to. Somos infinitamente gra-
tos a esses profissionais e aos
professores do meu outro fi-
lho por sua paciência, sabedo-
ria e habilidade. Sabemos que
não temos essas qualidades.
E não sou especialista na
criação de crianças – algo ób-
vio para quem conhece meus
maravilhosos e às vezes selva-
gens filhos. Mas sei, a partir
de experiências às vezes dolo-
rosas em primeira mão, que
transformar a maternidade
em um esporte competitivo é

algo nada saudável. Não é um
jogo do qual eu esteja dispos-
ta a participar. Eu e meu mari-
do trabalhamos em período
integral. Como tantos outros,
estamos tentando manter nos-
sa família em segurança e ali-
mentada durante o fechamen-
to geral imposto pelo governo
estadual em resposta à covid-
19 enquanto tentamos conven-
cer nossos pais a praticar o
distanciamento social, man-
tendo o contato com os entes
queridos e evitando o pânico.
Mesmo quando tudo na nos-
sa vida funciona como deve-
ria, e com todos os privilégios
dos quais gozamos – nosso
sólido sistema de saúde, nossa
estabilidade econômica, nossa
branquitude – frequentemen-
te nos sentimos sobrecarrega-
dos. Assim sendo, essa pande-
mia parece a gota d’água. Tive-
mos de encará-la: segurando a
respiração, cruzando os de-
dos. E sem julgamentos.
Ouvi previsões de outros
pais, dizendo que esse período
sem ensino na sala de aula pode-
ria levar meus filhos (eles têm 8
anos) a ficarem tão defasados
no ensino que a universidade
não estará mais entre as opções
para o futuro. Detesto pensar
em como outros pais mortos de
preocupação com a perda de
renda e as dificuldades no abas-

tecimento devem se sentir ten-
tando garantir o bem-estar de
suas famílias. Talvez seja o mo-
mento perfeito para um tempo
na disputada corrida acadêmica

que nunca foi saudável.
Sim, aceitamos a necessidade
de uma programação, alternan-
do-nos para dar atenção aos fi-
lhos enquanto eles navegam

pela internet para garantir que
estejam interagindo com con-
teúdo apropriado para a sua ida-
de (claro que um dos meninos
queria aprender a respeito de
bombas).
Mas não há fichas de conteú-
do nem projetos pré-prepara-
dos para “enriquecer” a rotina
deles. Não pedimos que escre-
vam trabalhos nem garanti-
mos que seus experimentos se
enquadrem nas disciplinas do
núcleo básico. Não há horário
oficial para “mexer o corpo”
ou estudar música. Não prepa-
ramos uma sala de aula impro-
visada nem demos um nome à
“escola” da família.
Por enquanto, os meninos
jogaram mais videogame e as-
sistiram a mais horas de TV
do que em qualquer outra se-
mana antes do fechamento
das escolas. É algo que os
mantêm distraídos enquanto
eu e o pai deles tentamos ter-
minar as reuniões antes que o
programa falhe. Nós nos ama-
mos, gritamos, pedimos des-
culpas, rimos, eles brigam, gri-
tamos um pouco mais, e faze-
mos as pazes. Vivemos, tenta-
mos manter viva a compaixão
e esperamos que tudo isso se-
ja logo apenas uma lembran-
ça. E, quando tudo passar, o
dever de casa estará esperan-
do. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

l Visões

Quarentena

Convivência entre pais e filhos se intensifica em
meio ao caos do trabalho e das tarefas de casa

lO isolamento em casa pode
deixar as pessoas mais ansio-
sas. Por isso, psiquiatras e
psicólogos dizem que é preci-
so que as famílias criem for-
mas de proteção também pa-
ra a saúde mental. “É preciso
preocupar-se com os mais
idosos, recomendar o isola-
mento deles, mas ajudá-los a
enfrentar o momento”, diz o
psiquiatra Renato Mancini.
Para ele, devem-se buscar
medidas práticas, como auxi-
liá-los a usar aplicativos de
pedir refeições e pedir aos ne-
tos para gravar vídeos para os
avós.
Para a psicóloga Desirée
Cassado, mestre em Psicolo-
gia Experimental pela Universi-
dade de São Paulo (USP), o
momento é de redobrar os
cuidados. “Pessoas não foram
feitas para isolamento social.
Sentir-se só é muito prejudi-
cial à saúde.” Segundo a psicó-
loga, é importante buscar co-
nexões e organizar a rotina –
tanto das crianças quanto dos
adultos. /PABLO PEREIRA

ROB CARR/GETTY IMAGES/AFP

Desinfecção. Limpeza de prédio em uma área de Maryland

Jennie Weiner, professora-assistente de liderança pedagógica da Universidade de Connecticut (EUA)


RENATO CAVALCANTI

Trio. Luigi tem aula online enquanto o pai trabalha em casa

ACERVO PESSOAL/LEANDRO COZZI

“Duas crianças em um
apartamento é uma coisa
muito difícil”
Thaís Sabino
MÃE DE DUAS MENINAS, DE 1 E 10 ANOS

“Tudo o que está
acontecendo é muito difícil,
mas acho que nunca passei
tanto tempo com a minha
filha como tenho passado
agora.”
Gabriela Arantes
MÃE DE CAROLINA, DE 6 ANOS

“Ainda é um caos que eu
estou precisando organizar”
Leandro Cozzi
TÉCNICO EM INFORMÁTICA

Malabarismo. Thaís e Renato estão aprendendo a conciliar o home office com os cuidados com as filhas de 1 e 10 anos

ISOLADAS,


FAMÍLIAS


TENTAM SE


REINVENTAR

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