O Estado de São Paulo (2020-03-24)

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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 24 DE MARÇO DE 2020 Metrópole A


André Borges / BRASÍLIA
Caio Nascimento


Richard dorme ao lado de mais
de mil homens todas as noites
no albergue Arsenal da Esperan-
ça, o maior centro de acolhi-
mento de São Paulo, na zona les-
te. Dividindo espaço com mora-
dores de rua em beliches a um
metro de distância uma da ou-
tra, o homem, de 30 anos, sente
medo de a aglomeração de pes-
soas no local virar um foco de
disseminação do coronavírus.
“Os abrigos têm pouca venti-
lação e quartos grandes com
exaustores ligados a noite to-
da... fica batendo vento e quem
tem complicação respiratória
sempre começa a tossir e espir-
rar”, relata. Assim como Ri-
chard, grande parte das mais de
24,3 mil pessoas em situação de
rua da cidade não tem onde se
abrigar com segurança.
Dados do último Censo da
População em Situação de Rua
de São Paulo apontam que 11,
mil delas dormiram em centros
de acolhida em 2019.
Maycon, de 34 anos, dorme


no mesmo abrigo há mais de
um ano e conta que ele e cole-
gas não receberam amparo sufi-
ciente. “(Não estão oferecendo)
máscara, álcool gel (para levar
para fora do albergue, já que não
podem passar o dia dentro da uni-
dade) e fecham completamente
parques e locais públicos onde
a gente poderia se abrigar sem
ficar amontoados.”

No Centro Temporário de
Acolhimento (CTA) da Mooca,
funcionários disseram ao Esta-
do que a única recomendação
que haviam recebido até quinta
era de que servidores deveriam
usar máscaras e os moradores
de rua entrariam no local em pe-
quenos grupos para fazer a tria-
gem, reduzindo o contato. As-
sistentes sociais disseram que

estão com pontos de álcool gel
dentro das unidades, pedindo
para todos lavarem as mãos
com frequência e voltarem para
a casa de parentes, se possível.
Relataram ainda que máscaras
estão sendo distribuídas.
O Ministério Público de São
Paulo recomendou à Secretaria
de Assistência e Desenvolvi-
mento Social (Smads) da Prefei-

tura, na segunda, medidas para
ampliar a prevenção, como
obras emergenciais para refor-
çar a ventilação natural dos dor-
mitórios. Ao todo, o município
conta com 89 centros de acolhi-
mento, totalizando 17,2 mil va-
gas. A Smads informou que
“prestará os esclarecimentos”.
Pias serão instaladas no cen-
tro da cidade, onde se concen-
tra o maior número de pessoas
nesta situação para que possam
fazer higienização. Ao Estado,
o governador João Doria
(PSDB) disse que não faltará as-
sistência. “Não seremos omis-
sos nem levianos com a popula-
ção de rua e estaremos ao lado
das prefeituras no acolhimento
de quem mais precisa.”

Solidão. O problema se repete
em Brasília. Na rodoviária da ca-
pital federal, a três quilômetros
do Palácio do Planalto, onde o
presidente Jair Bolsonaro abra-
çou pessoas uma semana atrás,
o morador de rua Rubens da Sil-

va, de 53 anos, afirma que está
com medo da doença, mas que
vê riscos de, antes, morrer de fo-
me. “A gente fica com medo.
Mas para mim, a tristeza mes-
mo é não ter o que comer. Eles
fecharam tudo. A gente tá fican-
do sozinho na rua.”
Sem abrigo para todos, em
muitas situações essas pessoas
preferem seguir nas ruas. “Eu
prefiro a rodoviária, melhor
que ficar no albergue. Aqui tem
luz, tem câmera filmando a gen-
te, é menos perigoso”, diz Mar-
lon Alves, de 45 anos.
Em Brasília, o governo come-
çou a catalogar a população em
situação de rua – foram identifi-
cados, até o momento, 1.851 ci-
dadãos. Os idosos são priorida-
de. A primeira medida tomada
foi verificar a existência de al-
gum vínculo familiar ou comu-
nitário, para que o idoso retor-
ne à família de origem. Se não
houver, a pessoa será encami-
nhada para uma unidade de aco-
lhimento. Um serviço especiali-
zado em abordagem social tem
procurado informar as pessoas
sobre os riscos da doença e dis-
tribuído máscaras.
Na Esplanada dos Ministé-
rios, sentado em uma calçada,
Marlon Alves ajusta uma másca-
ra suja de fuligem em seu rosto.
“Falaram para eu usar. Vai ficar
tudo bem. Não tenho medo,
não.”

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


SP quer usar hotel


e verba de multa


para internações


Fundos, como o que recebe dinheiro de infrações de trânsito, têm


R$ 5 bi, rede hoteleira também deve abrigar médicos e enfermeiras


Moradores de rua seguem expostos à doença


lMedo

‘Estado’ cria caderno para tornar quarentena mais leve. Pág. A12 }


Bruno Ribeiro


Mesmo com a expectativa de
criar mais 2 mil leitos de inter-
nação de baixa e média com-
plexidades em hospitais de
campanha no Estádio do Pa-
caembu e no Complexo do
Anhembi, a Prefeitura de São
Paulo já avalia internar parte
dos pacientes em hotéis. E,
para custear os dois novos
hospitais, o Município quer
usar verba de multas de trân-
sito e de outorgas (direitos


de construir) pagas por cons-
trutoras ao poder público.
A Secretaria Municipal de
Saúde visitou hotéis no fim de
semana para avaliar a possibili-
dade de usar o complexo hote-
leiro durante a crise do novo co-
ronavírus. O principal entrave,
segundo as primeiras avalia-
ções, são os carpetes nesses lo-
cais, tipo de piso que não pode
ser limpo da forma que as insta-
lações de saúde precisam ser pa-
ra garantir a esterilização.
Entretanto, um dos hotéis já

foi requisitado. Todos os 700
quartos do hotel Holiday Inn
do Complexo do Anhembi fo-
ram cedidos à Prefeitura, segun-
do o secretário de Saúde, Edson
Aparecido. “Vão ser usados pe-
los profissionais que vão traba-
lhar no hospital de campanha
que vai funcionar no Anhembi,
caso o médico, o enfermeiro
queira ficar hospedado lá.”
Os hospitais de campanha de-
vem começar a funcionar sema-
na que vem. Há previsão de que
mais de mil profissionais de saú-

de trabalhem nos dois pontos A
avaliação é de que é preciso re-
forçar a estrutura para que, em
duas semanas, quando a crise
deve se agravar, haja espaço pa-
ra ampliar o atendimento caso
a demanda por vagas seja maior
que os 2 mil leitos extras de
Anhembi e Pacaembu e os qua-
se 500 leitos novos de UTI.
O prefeito Bruno Covas
(PSDB) afirmou que cerca de
R$ 2 bilhões que a Prefeitura ti-
nha em caixa para obras este
ano devem ser transferidas pa-

ra o enfrentar o coronavírus.
Além disso, “com o decreto de
calamidade pública, não preci-
saremos cumprir metas fiscais
deste ano”, disse ele, que visi-
tou as obras do hospital de cam-
panha do Pacaembu ontem.

Dinheiro extra. Para custear as
ações de combate à nova doen-
ça, a Prefeitura pediu à Câmara
Municipal autorização para
transferir os recursos de todos
os fundos municipais para a
área da saúde.

Os fundos são como contas
bancárias em separado manti-
das pela Prefeitura, alimenta-
das com receita própria e que só
podem ser usadas em áreas es-
pecíficas. Custeiam as princi-
pais ações de construção de mo-
radias e manutenção de alber-
gues. Os fundos da cidade têm,
somados, cerca de R$ 5 bilhões.
O Fundo Municipal de Desen-
volvimento Urbano (Fun-
durb), por exemplo, recebe as
taxas que as incorporadoras pa-
gam para aproveitar o uso máxi-
mo de terrenos, para erguer ar-
ranha-céus. E esses recursos só
poderiam ser usados para me-
lhorar a infraestrutura dos bair-
ros. Já o Fundo Municipal de De-
senvolvimento do Trânsito
(FMDT) é alimentado com di-
nheiro de multas, e pode ser usa-
do para engenharia de tráfego e
ações de tapa-buraco, por exem-
plo. Agora, poderá ir para o tra-
tamento de infectados.
A ideia é que os principais fun-
dos, o das operações urbanas,
que respondem por cerca de R$
3 bilhões, sejam deixados para
um segundo momento, sendo
usados apenas caso os outros
fundos se esgotem. Esses fun-
dos são compostos pela venda
de títulos imobiliários para
construtoras que querem em-
preender em algumas áreas es-
pecíficas, como as regiões da
Água Branca, zona oeste, ou da
Avenida Engenheiro Luís Car-
los Berrini, na zona sul.
O entendimento é de que es-
ses são fundos especiais, com
emissão de títulos sendo acom-
panhada pela Comissão de Valo-
res Mobiliários (CVM) e mes-
mo a aprovação de lei na Câma-
ra não bastaria para que os re-
cursos fossem canalizados para
o combate ao coronavírus - se-
riam necessários decretos adi-
cionais por parte do Prefeito.
Ao menos metade da verba
dos fundos das operações urba-
nas é carimbada para a constru-
ção de moradias populares, que
obedece uma fila de espera de
anos coordenada pela Secreta-
ria Municipal de Habitação. A
fonte de financiamento dessas
obras teria de ser rediscutida,
após a crise ser controlada, se
os recursos forem todos canali-
zados para salvar vidas.
A ideia foi levada ontem pela
Prefeitura a um Câmara Temáti-
ca montada para acompanhar
gastos com o coronavírus, for-
mada p0r membros do Tribu-
nal de Contas, da Câmara e téc-
nicos. A minuta do projeto de
lei deve ser enviada hoje ao Le-
gislativo. A Prefeitura discute
ainda internamente se há espa-
ço para tentar obter benefício
que a livre, temporariamente,
do pagar a dívida pública com a
União, a exemplo do que Esta-
do obteve na Justiça.

TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO -19/3/

Abrigos cheios deixam


população de rua


insegura; em Brasília,


eles temem ficar sem o


que comer na quarentena


Lotação. Moradores de rua no Centro Temporário de Acolhimento da Mooca, na zona leste

“A coisa está feia até para o
pedinte, porque as pessoas
estão com medo de se
aproximar. Está difícil viver
nesse caos.”
Richard
MORADOR DE RUA EM SÃO PAULO

ANDERSON LIRA/FRAMEPHOTO

Pressa. Trabalhadores
erguem estrutura
no Pacaembu

FELIPE RAU/ESTADÃO

Novo espaço. Anhembi recebe obra de hospital emergencial

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