O Estado de São Paulo (2020-03-24)

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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 24 DE MARÇO DE 2020 Metrópole A


Felipe Frazão / BRASÍLIA


A Associação Nacional de Juris-
tas Evangélicos (Anajure) ape-
lou a pastores e igrejas para que,
“por solidariedade cristã e em
nome do espírito coletivo”, se
sujeitem às determinações e re-
comendações de governos e
não realizem cultos presen-
ciais, reuniões religiosas ou
eventos públicos durante a pan-
demia de covid-19.
“A Anajure pede à comunida-
de evangélica que continue se-
guindo as recomendações do
poder público com relação ao
isolamento social, ainda que al-
gumas delas sejam questioná-


veis do ponto de vista constitu-
cional”, apelou a entidade, em
nota. “A resistência por parte
de alguns grupos religiosos, ain-
da que em pequeno número, de-
monstra desconexão com a gra-
vidade do contexto enfrentado
pelo País e falta de compaixão

por seus fiéis, vez que os coloca
em perigo e eleva o potencial de
proliferação da doença, inclusi-
ve, no meio de grupos de risco,
como os idosos.”
O Ministério da Saúde afirma
que os templos podem perma-
necer abertos para assistência

ou orações individuais, mas
orienta que não promovam cul-
tos e quaisquer atividades com
aglomeração. A associação diz
ser “prudente” usar meios de
comunicação virtuais para cul-
tos, aulas e seminários teológi-
cos, além de sugerir o trabalho
em casa aos funcionários admi-
nistrativos das denominações.
Houve igrejas que adotaram
alternativas, como a transmis-
são dos cultos na TV e internet,
adiaram grandes eventos e esti-
mularam a realização de cultos
domésticos. Porém, a insistên-
cia de pastores em manter cul-
tos que reúnem centenas ou mi-
lhares de pessoas, o que contra-
ria as orientações de autorida-
des públicas de saúde e sanitá-
rias, levou a entidade a publicar
duas notas sobre o caso nos últi-
mos cinco dias.
Uma das que adotou medidas
de afastamento dentro dos tem-
plos, mas manteve as reuniões

foi a Igreja Universal do Reino
de Deus, do bispo Edir Macedo.
Também houve resistência por
parte do pastor Silas Malafaia
(Assembleia de Deus Vitória
em Cristo), que só suspendeu
os cultos presenciais no dia 19.

Santa Sé. O Vaticano orientou
as dioceses que estejam em
emergência sanitária pela co-
vid-19 a manter missas sem fiéis
mesmo durante a Semana San-
ta e transferir as tradicionais

procissões para setembro. Sob
consultas, a Congregação para
o Culto Divino e a Disciplina
dos Sacramentos destacou que
a festa da Páscoa não pode ser
transferida de data.
Em relação ao tríduo pascal,
que começa na Quinta-Feira
Santa, a orientação é para que
“mesmo sem a participação dos
fiéis, o bispo e os párocos cele-
brem os mistérios litúrgicos,
avisando os fiéis da hora de iní-
cio de modo a que se possam
unir em oração nas respectivas
habitações”. E ainda se estimu-
la o uso das redes sociais.
Prevê-se especificamente pa-
ra a Sexta-Feira Santa que “na
oração universal, o bispo dioce-
sano terá o cuidado de estabele-
cer uma intenção especial pelos
doentes, pelos defuntos e por
aqueles que sofreram alguma
perda” por causa da covid-19.
Metade das dioceses paulis-
tas já adotou restrições. As pro-
cissões tradicionais de Domin-
go de Ramos e da Sexta-Feira
Santa poderão ser transferidas
para outras datas.

WASHINGTON


As comunidades que vivem
em locais mais quentes pare-
cem ter uma vantagem compa-
rativa para retardar a trans-
missão de infecções por coro-
navírus, de acordo com uma
análise inicial de cientistas do
Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT), nos
EUA. Os pesquisadores desco-
briram que a maioria das trans-
missões de coronavírus ocor-
reu em regiões com baixas tem-
peraturas, entre 3°C e 17°C.
Enquanto países com climas
equatoriais e no hemisfério sul,
que acabaram de sair do verão,
relataram casos de coronavírus,
regiões com temperaturas mé-
dias acima de 18°C representam
menos de 6% dos casos globais
até agora. “Onde quer que as
temperaturas estivessem mais
baixas, o número de casos come-
çou a aumentar rapidamente”,
disse Qasim Bukhari, cientista
do MIT e coautor do estudo.
“Você vê isso na Europa, mes-
mo com os serviços de saúde en-
tre os melhores do mundo”.
A subordinação à temperatu-
ra também é clara nos EUA, dis-
se Bukhari. Estados do sul, co-
mo Arizona, Flórida e Texas, ti-
veram um crescimento mais
lento do surto em comparação
com Washington, Nova York e
Colorado. Os casos de coronaví-
rus na Califórnia cresceram a


uma taxa que varia entre os dois
cenários.
O padrão sazonal é semelhan-
te ao que os epidemiologistas ob-
servaram com outros vírus. De-
borah Birx, coordenadora global
da resposta ao HIV nos Estados
Unidos e também diretora da
força-tarefa do governo Donald
Trump contra o coronavírus, dis-
se durante uma recente entrevis-
ta que a gripe, no hemisfério nor-
te, geralmente segue uma ten-
dência de novembro a abril. Os
quatro tipos de coronavírus que
causam o resfriado comum to-

dos os anos também diminuem
com o clima mais quente.
Deborah também observou
que o padrão era semelhante à
epidemia de Sars em 2003. Mas
ela enfatizou que, como os sur-
tos de vírus na China e na Co-
reia do Sul começaram mais tar-
de, era difícil determinar se o
novo coronavírus seguiria o
mesmo curso. A possível corre-
lação entre casos de coronaví-
rus e clima não deve levar as lide-
ranças políticas e o público à
acomodação. “Ainda precisa-
mos tomar fortes precauções”,

disse Bukhari. “Temperaturas
mais altas podem tornar esse ví-
rus menos eficaz, mas a trans-
missão menos eficaz não signifi-
ca que não há transmissão.”
O fato de a transmissão local
estar ocorrendo no hemisfério
sul sinaliza que esse vírus pode
ser mais resistente a temperatu-
ras mais quentes do que a gripe
e outros vírus respiratórios. É
por isso que as autoridades da
Organização Mundial da Saúde
(OMS) ainda insistem que os
países ajam com urgência e
agressividade para tentar con-

ter o vírus enquanto os núme-
ros de casos são relativamente
baixos e aqueles que mantive-
ram contato podem ser facil-
mente rastreados e colocados
em quarentena.
“Um dos grandes perigos em
assumir que o vírus é menos pe-
rigoso em temperaturas mais al-
tas, entre idades específicas ou
para qualquer grupo específico
é a complacência”, disse Julio
Frenk, médico que atuou como
ministro da Saúde no México e
agora é presidente da Universi-
dade de Miami.

Mas como a alta umidade e o
calor só se alinham perfeita-
mente durante principalmente
julho e agosto em algumas par-
tes do hemisfério norte, Bukha-
ri alertou que os efeitos do cli-
ma mais quente na redução das
transmissões podem durar ape-
nas um breve período em algu-
mas regiões.
E como sabemos ainda tão
pouco sobre ele, ninguém pode
prever se o vírus voltará com ta-
manha ferocidade no outono. /
THE NEW YORK TIMES / TRADUÇÃO DE
ROMINA CÁCIA

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


lOração por streaming

Associação de Juristas Evangélicos apela a pastores


lO diretor-geral da Organização
Mundial da Saúde (OMS), Tedros
Adhanom Ghebreyesus, criticou
ontem o uso de remédios não tes-
tados contra o coronavírus. Ele
esclareceu que ainda não há tra-
tamento comprovadamente efi-
caz contra o vírus e pediu ações
coordenadas entre os países.
“O uso não testado de medica-
mentos sem evidências corretas
pode gerar falsas esperanças, cau-
sar mais mal do que bem e provo-
car a escassez de medicamentos
essenciais necessários para tratar

outras doenças”, advertiu.
Ele destacou que a OMS lan-
çou um teste internacional (soli-
darity trial) capaz de gerar evidên-
cias robustas e de qualidade. “Pe-
quenos estudos aleatórios não
nos darão as respostas que preci-
samos. Quanto mais países se
inscreverem no estudo, mais rapi-
damente obteremos resultados.”
Ghebreyesus afirmou ainda
que a “pandemia se acelera”,
mas que é possível “inverter es-
sa trajetória” com a conscientiza-
ção da população. “Pedir às pes-
soas que fiquem em casa e (esta-
belecendo) outras medidas físi-
cas de distanciamento é uma ma-
neira importante de desacelerar
o vírus e economizar tempo”, dis-
se. / PAULO BERALDO

ENTREVISTA


Jorge Kalil, diretor do Laboratório de Imunologia do Incor


‘A vacina não será para essa onda da epidemia’


WERTHER SANTANA/ESTADÃO

‘Solidariedade cristã’ e


‘espírito coletivo’ é o que


pedem o grupo, que luta


para que cultos, reuniões


e eventos sejam adiados


“Rezemos pelas pessoas que
por causa da pandemia
estão começando a ter
problemas econômicos,
porque não podem
trabalhar e tudo isso recai
sobre a família.”
Papa Francisco

Reuniões mantidas. Tempo de Salomão, da Igreja Universal

OMS critica o uso


de remédio que não


passou por testes


Clima quente freia


a transmissão da


doença, diz estudo


Maior propagação do coronavírus ocorreu em regiões com baixas


temperaturas, entre 3°C e 17°C, apontam cientistas dos EUA


Precaução. Homem de bicicleta com máscara cruza a Avenida Presidente Vargas, no Rio

Giovana Girardi


O Brasil também participa
dos esforços para a produção
de uma vacina contra o novo
coronavírus com pesquisado-
res do Laboratório de Imuno-
logia do Incor, ligado à Facul-
dade de Medicina da USP.
O trabalho se diferencia da
maioria dos que são feitos em
outros países ao impedir a pe-
netração do vírus nas células.
O grupo, liderado por Jorge
Kalil, diretor do Laboratório
de Imunologia do Incor, traba-
lha com partículas semelhan-
tes ao vírus, ou VLP, na sigla
em inglês. Elas têm caracte-
rísticas parecidas com o vírus,


o que faz com que possam ser
reconhecidas pelo sistema
imune, mas não têm o mate-
rial genético do vírus, o que as
torna mais seguras.
Em entrevista ao Estado,
Kalil, que teve de entrar em
isolamento voluntário após
seu filho ser contaminado com
o vírus, explica como está essa
corrida em todo o mundo.

lHá muitos esforços sendo fei-
tos em todo o mundo em busca
dessa vacina. Isso deve acelerar
o processo? Hoje o que o sr. diria
que é uma previsão factível para
termos o produto?
Existe uma profusão de pro-
postas de vacinas contra o

coronavírus. As farmacêuti-
cas seguram um pouco os da-
dos, mas há muita informa-
ção disponível, muita troca.
Mas a vacina não vai ser para
essa onda da epidemia. Não
acredito que saia antes de um
ano, um ano e meio. Muito
provavelmente teremos antes
algum medicamento já apro-
vado para outro uso que se
mostre útil também para o
coronavírus. Acho que isso
vai sair logo.

lO mundo científico já esperava
que mais cedo ou mais tarde sur-
giria uma pandemia como essa.
Qual era a preparação? Vocês
foram pegos de surpresa?

Em 2017, no Fórum Econômi-
co Mundial, em Davos, foi lan-
çado o Cepi (Coalizão para
Inovações em Preparação pa-
ra Epidemias), uma conver-
gência de várias nações, uni-
versidades, institutos que dão
recursos para o mundo se pre-
parar para grandes epide-
mias. A ideia era ter protóti-
pos de vacinas que pudessem
ser acionados rapidamente. O
mundo estava preocupado,
sabia que podia receber uma
emergência como essa. O que
pegou de surpresa foi o fato
de ser um vírus novo. Estáva-
mos com medo da Sars. Esse
coronavírus é um primo, mas
o que estávamos estudando

para a Sars não serve exata-
mente para ele. Sempre te-
nho a esperança de que va-
mos conseguir achar uma so-
lução, mas neste momento
não podemos contar que va-
mos ter isso agora.

lGovernantes em várias partes
do mundo, como Donald Trump,
nos Estados Unidos, e Jair Bolso-
naro, no Brasil, tiraram investi-
mento da ciência. E ao menos
nos EUA, Trump pediu ajuda da
ciência agora para encontrar
uma vacina. As reduções de ver-
bas podem prejudicar o desenvol-
vimento de uma solução?
A administração Trump não
acreditava muito na ciência e
agora teve de voltar atrás e
diz que tem a ciência mais for-
te do mundo. Os EUA são o
que são por uma razão. Por-
que sempre tiveram uma ciên-
cia forte e fizeram grandes

descobertas científicas e tec-
nológicas. No Brasil, tivemos
um período de investimento
que agora não temos mais.
Mas acredito que ainda somos
um refúgio que a sociedade
tem quando enfrentamos um
problema. Foi assim com o
zika. Identificamos em tempo
recorde a associação com a
microcefalia. Houve uma con-
tribuição de médicos e cientis-
tas impressionante. Com a fe-
bre amarela, também tivemos
uma reação rápida. Mesmo
agora, sem dinheiro, estamos
agindo rápido, com sequencia-
mento do genoma do corona-
vírus, com a produção dele
em laboratório. Estamos res-
pondendo, mas falta recurso.
Espero que esse momento sir-
va para mostrar que a ciência
não pode virar fator político.
Que lutar contra uma doença
não é partido, não é ideologia.

WILTON JUNIOR / ESTADÃO

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