O Estado de São Paulo (2020-03-24)

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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 24 DE MARÇO DE 2020 Especial H3


1000 filmes do Merten


Aliás,


Donny Correia ]


Com o avanço do novo coronaví-
rus e o consequente período de
isolamento ao qual seremos sub-
metidos, os cinemas estão fecha-
dos e os espectadores têm nos
serviços de streaming a princi-
pal opção de acesso a filmes. Mui-
to se debate a respeito do perfil
dos catálogos de diferentes pla-
taformas, como Netflix, Ama-
zon Prime e Apple TV. No entan-
to, é difícil dizer que entre os
pontos fortes de algum desses
cardápios estejam os clássicos
nacionais. Por falta de interesse
ou de conservação, a história do
cinema brasileiro vem se perden-
do para os clientes de serviços
de streaming.
Até meados dos anos 90, po-
diam-se ver na TV aberta clássi-
cos nacionais. Aspirantes se es-
pelhavam nas mostras dedica-
das ao tema. As locadoras eram


repletas de cinema brasileiro.
Mesmo os cineastas falecidos
eram celebrados e suas poéticas,
preservadas. Pois então, onde es-
tá a história do cinema brasileiro
hoje? Como as novas gerações
vão conhecer sua trajetória?
Com a democratização advin-
da do streaming, vimos que o
acervo audiovisual do mundo
pode chegar às telas domésticas
sem passar pela pirataria. Sites
como Archive.org e Mubi ofere-
cem filmes de todas as épocas e
nacionalidades. Mas raramente
há um repertório brasileiro.
Curiosamente, a produção ci-
nematográfica nacional, hoje,
empenha papel de destaque nas
novas plataformas, já que mui-
tas obras contam com parcerias
de tais empresas, o que aumenta
o investimento e a diversidade
do produto. No entanto, a im-
pressão é que, ao menos por ora,
a história do cinema zerou. Por
causa da irregularidade intrínse-
ca, a imagem é a de que o cinema
brasileiro começou ontem, e só
há dois ou três assuntos dignos

de serem abordados pelas gran-
des produções.
A política de preservação no
Brasil é constantemente negli-
genciada, portanto o que restou
dos primeiros 30 anos de produ-
ção nacional representa uma pe-
quena amos-
tra. Pode-se co-
meçar com o
cineasta pau-
lista José Medi-
na, de quem
restam apenas
dois longas: O
Exemplo Rege-
nerador (1919)
e Fragmentos
da Vida (1929).
A importância
de Medina ain-
da há de ser ex-
plorada, mas
sua obra conti-
nua isolada na curiosidade de
quem busca seu nome na inter-
net. Já a obra de Vittorio Capella-
ro, italiano que se radicou no Bra-
sil e dirigiu épicos históricos de
extrema ousadia e inventivida-

de, nem aí se encontra...
Nem mesmo os marcos abso-
lutos de nossa trajetória escapa-
ram da marginalidade. Dirigido
por Mário Peixoto, Limite (1930)
foi adotado por fundações inter-
nacionais, obteve uma conside-
rável verba pa-
ra seu restau-
ro e, assim
mesmo, é qua-
se inacessível.
O mesmo
ocorre com
obras igual-
mente cru-
ciais, como O
Segredo do Cor-
cunda (1924) e
São Paulo, Sin-
fonia de uma
Metrópole
(1929), as
chanchadas
carnavalescas e produções da Ve-
ra Cruz e de outros estúdios in-
dependentes. Além de péssimas
cópias disponíveis na rede, con-
seguem-se exemplares desse pe-
ríodo, entre os anos 1940 e 1960,

somente em sites de venda dire-
ta – sempre transferências ruins
de fitas de vídeo dos anos 1980.
Ainda é possível assistir a mui-
to do que produziram Saraceni,
Ruy Guerra, Sganzerla, Mautner
e José Agrippino de Paula, mas a
qualidade é sempre duvidosa. Já
o espólio de Glauber Rocha,
após uma bem-sucedida cole-
ção com seus filmes mais conhe-
cidos, aguarda a recuperação de
seu trabalho realizado no exílio.
Nelson Pereira dos Santos teve
sua obra inteira recuperada para
o DVD, mas o alcance de tais ini-
ciativas está sempre aquém da
importância do homenageado,
em edições limitadas e de luxo.
A memória do filme brasileiro
parece ter morrido quando saí-
ram do ar programas como Cine
Brasil e Sessão de Cinema, am-
bos da TV Cultura, bem como
das sessões notívagas da Globo,
Band e Record. Fica a impressão
de que o cinema brasileiro pas-
sou a existir a partir de Cidade de
Deus. Ainda que pareça radical e
nostálgico de minha parte, dedi-

co-me ao incentivo de mostras
mais recorrentes do clássico ci-
nema nacional, porque me recu-
so a crer que seu apagamento se
dê pela falta de interesse comer-
cial ou audiência. A Cinemateca
Brasileira, castigada por cons-
tantes ameaças de extinção com-
pleta, é o repositório dessa me-
mória que se desfaz como o nitra-
to de prata de velhas películas.
Sustentar as ações de preser-
vação, redescobrir e colocar em
circulação os primórdios do fil-
me brasileiro e divulgar esse con-
teúdo é um dever intelectual, so-
cial e político de profissionais da
mídia, de grandes corporações e
do poder público. Somente as-
sim será revertida a tendência
histórica de incompletude que
está na base de nosso cinema e
as novas gerações poderão ter
uma real dimensão da riqueza
que já desfilou por nossas telas.

]
É CRÍTICO, ENSAÍSTA, DOUTOR
EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE
PELA USP E MEMBRO DA ABRACCINE

CLÁSSICOS

C


om as salas fechadas, multi-
plicam-se as opções de fil-
mes on demand, nas diferen-
tes plataformas de streaming, como
Now e Vivo Play. A rede Arteplex
adapta-se aos novos tempos e come-
ça a liberar sua cartela, mas o faz por
etapas, ainda em conta-gotas.
A seu favor pode-se dizer que são
todos filmes bons, de um perfil tal-
vez mais seletivo, mas capazes de
prender a atenção e segurar o inte-
resse de qualquer espectador, mes-

mo o mais desavisado.
Começa com um filme de futebol,
tanto mais atraente porque as competi-
ções esportivas estão suspensas e, pe-
lo menos por agora, bater bola só é pos-
sível na ficção. Guarde as datas.

Desafio de Um Campeão
A partir desta quinta-feira, 26. Suces-
so na Festa do Cinema Italiano, no ano
passado, o longa mostra jogador indis-
ciplinado que está arriscando sua car-
reira. O clube contrata um professor

introvertido para colocá-lo nos eixos.
O que começa como atrito vira amiza-
de graças ao trabalho do diretor Leo-
nardo D'Agostini e dos atores Stefano
Accorsi e Andrea Carpenzano.

Retablo
A partir do dia 2 de abril. O belíssimo
longa do peruano Álvaro Delago-Apari-
cio narra a pungente história de um
garoto que está sendo preparado pelo
pai para segui-lo na função de cons-
truir retábulos (construção de madei-

ra ou pedra, em forma de painel e com
lavores, que se coloca na parte poste-
rior dos altares). A descoberta de um
segredo íntimo do pai desestabiliza a
vida familiar e coloca em xeque a voca-
ção do rapaz. Uma maneira íntima e
sofrida de abordar questões ligadas à
família e à diversidade sexual.

Adam
Também a partir do dia 2 de abril. A
marroquina Maryam Touzanio foi indi-
cada por seu país para concorrer ao Os-
car de melhor filme internacional des-
te ano.
Não ficou entre os finalistas, mas a
história da viúva que acolhe em sua ca-
sa, e no pequeno negócio, uma jovem

grávida que terá o filho sozinha é
uma joia. O mundo visto do balcão
de uma lojinha. As atrizes Lubna Aza-
bal e Nisrin Erradi são admiráveis.

Pássaros de Verão
A partir do dia 9 de abril. Ciro
Guerra ganhou projeção quando O
Abraço da Serpente foi o primeiro fil-
me colombiano indicado para con-
correr ao Oscar.
O novo filme mostra como a cultu-
ra da droga disseminou-se no país e
virou um grande negócio. A disputa
de duas famílias no quadro da heran-
ça dos mitos da cultura indígena
Wayu, incluindo o presságio dos pás-
saros e a punição dos deuses.

BRASILEIROS FICAM DE FORA


DOS SERVIÇOS DE STREAMING


VERSÁTIL HOME VIDEO

Memória. Cena de ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, do cineasta Glauber Rocha, cuja obra foi restaurada, mas ainda é difícil rever filmes produzidos durante seu exílio, nos anos 1970


Sganzerla. Cinema Novo é acessível em qualidade duvidosa

SITES OFERECEM FILMES
DE TODAS AS ÉPOCAS E
PAÍSES. RARAMENTE HÁ
REPERTÓRIO BRASILEIRO

Com os espectadores longe das telonas durante a quarentena, memória do cinema nacional corre o risco de se perder


VERSÁTIL HOME VIDEO

NEM MESMO OS MARCOS
ABSOLUTOS DE NOSSA
TRAJETÓRIA ESCAPARAM
DA MARGINALIDADE

Filmes gratuitos da Arteplex


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