O Estado de São Paulo (2020-03-24)

(Antfer) #1

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H12 Especial TERÇA-FEIRA, 24 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


lNo encontro com a reporta-
gem do Estado, há duas sema-
nas, Chico César e Geraldo Azeve-
do estavam felizes por iniciar a
turnê Violivoz no Nordeste. A es-
treia seria em Natal, em maio.
Mas a disseminação do corona-
vírus fez com que a agenda fosse
alterada. A turnê deve começar
em julho e os shows no nordeste,
em setembro. “O momento agora
é de união e colaboração. Cuide-
mos uns dos outros”, diz Geraldo.

ENCONTRO


MAIS UM


Caderno 2


Chico César e Geraldo Azevedo estão juntos no show


‘Violivoz’, previsto para chegar a São Paulo em agosto


GRANDE

Renato Vieira


Há um ano, Geraldo Azevedo
fez um animado show de frevos
em São Paulo. Depois, foi para a
casa de Chico César, que estava
na plateia. Passaram horas to-
cando violão juntos, enquanto
era servido um baião de dois
(“No sertão é rubacão”, ressal-
ta Chico). Um interferiu no que
o outro tocava, abrindo novas
possibilidades para as canções.
Aquele encontro, pensaram
eles, não poderia ficar restrito à
sala de estar de Chico.
É esse clima de intimidade e
interação que os dois querem
preservar quando Violivoz cair
na estrada. O show que reúne
Geraldo e Chico vai rodar o Bra-
sil a partir do segundo semes-
tre. Em São Paulo, a apresenta-
ção está prevista para 8 de agos-
to, no Teatro Bradesco.
Apesar de se encontrarem pe-
la primeira vez em uma turnê,
os dois se conhecem há quase
30 anos. Em meio à repercussão
da chacina da Candelária, Car-
los Bezerra, o Totonho do
projeto Totonho & Os


Cabra, organizou um disco em
homenagem a meninos de rua.
Geraldo foi chamado para can-
tar uma música de Chico e ou-
viu uma gravação preliminar do
compositor. “Senti que o violão
dele era especial”, conta Geral-
do. A pedido dele, Chico foi pa-
ra o Rio e participou da faixa.
O projeto idealizado por To-
tonho não veio à luz e, al-
gum tempo depois, Chi-
co lançou o primeiro
álbum, Aos Vivos,

captado em um show de voz e
violão. Geraldo ouviu, viajou pa-
ra São Paulo e procurou Chico
para comprar alguns CDs direta-
mente dele. “Levei duas caixas,
saí dando os discos para as pes-
soas, até na Suíça e na França.
Essa coisa de voz e violão me
representa. Ele fez um disco
muito original e fiquei na expec-
tativa de ver o trabalho dele em
andamento”, relembra.
Chico acompanha a carreira
de Geraldo desde o início. Foi
na casa de um dono de arma-
zém nos arredores de Catolé do
Rocha, cidade da Paraíba onde
Chico nasceu, que ele escutou
com amigos Alceu Valença & Ge-
raldo Azevedo (1972), o trabalho
de estreia de ambos, além de ter
contato com a obra dos Novos
Baianos e do Quinteto Violado.
“Eles mostraram que era possí-
vel para jovens do interior do
nordeste fazerem música”, afir-
ma Chico, que depois se tornou
funcionário de uma loja de LPs
e acompanhou com atenção os
artistas nordestinos que chega-
vam com força, inclusive comer-
cial, no mercado fonográfico.
Ao lado de nomes como Al-
ceu, Belchior e Elba Ramalho,
Geraldo fez parte dessa gera-
ção. Ele diz que, como não hou-
ve um rótulo pa-
ra defini-los, a
importância
deles ain-
da não

foi devidamente reconhecida.
“Acho que esse movimento nor-
destino foi mais abrangente
que o tropicalismo. A gente sem-
pre esperou um prosseguimen-
to. Chico, Lenine e Zeca Baleiro
deram continuidade a ele”, res-
salta Geraldo.
A dupla ainda está montando
o repertório do show, que será
centrado em composições de
ambos, algumas conectadas pe-
la temática e pelo estilo. Chico
diz que Pensar em Você, dele, é
uma música que nasce de Dia
Branco, sucesso de Geraldo. As
duas têm cadência parecida e fo-
ram feitas na mesma tonalida-
de, ré maior. Dois xotes, Deus
me Proteja e Moça Bonita, tam-
bém se integram.
Para Chico, as músicas ganha-
ram novo aspecto com a união
do violão dele e de Geraldo. “É
importante que o público abra
mão da forma que ele nos conhe-
ce isoladamente em algumas
canções. Tem gente que vai fa-
lar, ‘ah, mas Bicho de 7 Cabeças II
não é assim’. Agora é”.
Nos primeiros encontros pa-
ra definir como seria o show,
surgiu uma nova música. En-
quanto Geraldo mostrava uma
melodia no violão, Chico fez
uma letra para o que se tornou
Tudo de Amor. “É sobre trazer
tudo de amor que você
tem dentro de si para
oferecer a vida ao ou-
tro, e levar amor

mesmo onde não houver amor.
É um pouco sobre o nosso tem-
po, mas com um a perspectiva
muito alegre, até ingênua” defi-
ne Chico sobre a canção inédita.
Torturado durante a Ditadu-
ra Militar, Geraldo já se manifes-
tou em entrevistas contra o
atual governo e Chico gravou
no ano passado o disco O Amor
é um Ato Revolucionário. Uma
das músicas, o reggae Pedrada,
fala sobre “cães danados do fas-
cismo”. Em Violivoz, porém, a
causa deles é outra.
Segundo a dupla, é um show
que pretende exaltar a figura do
‘cantautor’, que compõe e inter-
preta as próprias músicas. Chi-
co afirma que hoje a atitude e a
postura do artista chamam
mais atenção do que a música
que ele está fazendo. “Quere-
mos que o Brasil escute muito
esse tipo de canção. Não apenas
por nós, que temos nosso espa-
ço, mas pelos novos cantauto-
res. Sinto que eles estão cada
vez menos estimulados. Às ve-
zes parece que importa mais a
hashtag, o groove, o lugar de fa-
la, do que a canção em si.”

L


onge de mim querer ser desa-
gradável, ainda mais num mo-
mento como este, em que cha-
tices, aborrecimentos e dramas su-
plementares não nos faltam, mas
desconfio que o coronavírus vai en-
gordar as hostes dos malucos benig-
nos, assunto aqui na semana passa-
da. Sim, é bem provável que o confi-
namento a que estamos condenados
faça proliferar entre nós comporta-
mentos e manias que consideráva-
mos atributos exclusivos de tercei-
ros. Condições para isso, é óbvio,
vêm se multiplicando com velocida-
de quase comparável à do vírus em
questão. Mas fiquemos, por ora,
com a maluquice benigna que já te-
mos. Basta ver a enxurrada de infor-
mações e histórias suscitadas pela
crônica da última terça-feira.
A propósito, para começar, do su-
jeito que comprava pinturas em fei-
ras de rua para a elas acrescentar de-
talhes, houve quem sacasse a histó-
ria de uma senhora que, a bem da
moral cristã, usou pincel e tinta para
“sungar”, puxar para cima, um deco-
te que num retrato a óleo lhe pare-
ceu raso demais.
Do amigo e colega Ignácio de Loyo-
la Brandão me veio o caso de um ca-
marada seu que jamais atende o tele-
fone antes de soar o oitavo toque. Por

que não antes do sétimo, ou do nono?
Mistério. O fato de ser ele, como infor-
ma o Loyola, solteirão e misógino, não
chega a explicar a esquisitice. Mais esqui-
sito, só aquele sujeito que, também ele
vítima de Transtorno Obsessivo Com-
pulsivo, nunca usa a sigla TOC, e sim
COT, por lhe parecer obrigatório respei-
tar a ordem, inclusive a alfabética.
Também o querido Loyola, revele-
mos, tem lá suas manias. Você talvez
não saiba que o autor de Zero gosta de
contar algo além de histórias. Passos,
por exemplo. Convidado para escrever
um livro comemorativo dos 100 anos da
Paulista, em 1991, ele está em condições
de nos dizer que de uma ponta a outra a
avenida mede 3.181 passadas de Loyola.
Saiba-se também que, para escrever, tu-
do no seu escritório tem que estar em
ordem. O cesto de papel há de estar va-
zio. O colunista do Estadão não supor-
ta “livro de cabeça para baixo”, nem “li-
vro magro ao lado de livro gordo”. Al-
guns minutos de seu dia são gastos em
organizar, também, por ordem crescen-
te de valor, as notas de reais que tem no
bolso – e mais: em ajeitar as cédulas de
mesmo valor conforme a numeração.
Nesse capítulo monetário, o Loyola
faz lembrar um jornalista de minhas rela-
ções, que no banheiro não vê chance de
as coisas funcionarem se ele não tiver
algo para ler, ainda que seja a informa-

ção, no toalheiro, de que duas folhas de
papel bastam para secar as mãos. Um
dia, nem isso havia – e o camarada, em
desespero de causa, abriu a carteira, sa-
cou uma nota de 20 reais e se pôs a balbu-
ciar: “República Federativa do Brasil.
Banco Central do Brasil. Casa da Moeda
do Brasil. Mico-leão-dourado”. Funcio-
nou. Nem foi preciso recorrer às cédulas
de 100 (garoupa), 50 (onça-pintada), 10
(arara), 5 (garça) e à de 2 reais, ilustrada
com uma tartaruga, como em alusão a
intestinos lerdos.
E há também o cidadão belo-horizon-
tino de outros tempos, de quem me dá

notícia o Frei Betto. Lá pelos anos 1920,
30, contava o avô do Betto, a figura em
questão, toda semana, entrava no Banco
da Lavoura de Minas Gerais, ia ao caixa,
identificava-se como correntista e pe-
dia para ver se o seu dinheiro estava em
ordem. Contava nota por nota, e só en-
tão, tranquilizado, autorizava o atenden-
te a recolher ao cofre seus caraminguás.
Mas voltemos ao nunca assaz citado
Ignácio de Loyola, que, toda manhã, es-
pera encontrar o seu jornal tal como ele
saiu da impressora, com os cadernos em

ordem e sem folhas amassadas, o que
pode não acontecer se passou antes um
leitor menos cuidadoso.
Nesse particular, o Loyola teve outro-
ra uma alma gêmea, na pessoa de um
cavalheiro – quem conta é o Ivan Angelo


  • que também detestava ver seu jornal
    espalhado em cadernos, ou com as pági-
    nas fora de ordem. Para prevenir o caos,
    ele criou o hábito de grampear cada ca-
    derno na margem direita, de alto a bai-
    xo, tão logo recebia o jornal.
    E não era esta a sua única mania, acres-
    centa o Ivan: “Funcionário aposentado,
    ele fazia a barba de manhã, almoçava ce-
    do, botava camisa branca limpa, meias,
    sapatos, gravata, paletó, pronto para ir
    trabalhar... e ficava em casa, lendo jor-
    nais na sala ou na varanda. Às 5 e meia da
    tarde, subia ao quarto, tirava os sapatos,
    a gravata, calçava chinelos, vestia um ro-
    be de seda, que ele chamava de chambre,
    e ia ouvir rádio, à espera do jantar”.
    É também o Ivan Angelo quem nos
    traz outra ilustração de maluquice be-
    nigna. Trata-se de uma criatura que ao
    chegar em casa, tarde da noite, vai lim-
    par a cozinha, desconfiada de que pode
    ter trafegado ali uma barata. Incapaz
    de passar por uma pia sem lavar as
    mãos, é de imaginar o frenesi higiênico
    que ela estará vivendo nestes tempos
    de coronavírus. Lava roupa todo dia –
    não há manhã em que não ponha na
    máquina os lençóis e as fronhas ainda
    quentes. E não é pouco pano, pois em
    sua cama de casal ela e o marido têm,
    cada um, o seu lençol de cima, a sua
    colcha, o seu cobertor.


“É para evitar o puxa pra lá, puxa
pra cá”, explica o esposo, cujas ma-
nias de alcova, em regime de comu-
nhão de bens, não param por aí. Ao
se recolher, ele ajeita o seu lado da
cama, empilha três travesseiros – e,
em vez de se enfiar nos lençóis, vai se
deitar no chão, “para esfriar o cor-
po”. Cama, só no meio da noite, e
ainda assim nem tanto, pois deixa os
dois pés para fora do colchão – o que,
segundo más línguas, seria explica-
ção para o fato de tratar-se de um
irremediável pé-frio.
De manhã, antes de usá-la, ele lava
e enxuga a pia. Neurose de limpeza
como tem esse casal, convenhamos,
talvez nem mesmo uma falecida tia-
avó da leitora Denise, a qual, quando
já não tinha mais o que esfregar ou
polir, fazia uma buchinha de pano pa-
ra limpar por dentro as fechaduras, da-
quelas antigas, com chaves enormes.
E há, por fim, curioso além de edifi-
cante, o depoimento que me deu a
Ana Maria, a qual, acossada por uma
fartura de solicitações simultâneas,
adotou o hábito de orar enquanto
dirige. Só não reza em túnel, por me-
do de que a conexão com Deus pos-
sa cair. Também não reza de ré, pois
a palavra remete a retrocesso. Para
tais ocasiões, chegou a bolar versões
rebobinadas de algumas preces,
mas acabou concluindo que arran-
jos arrevesados como “Deus de
mãe, Maria Santa” ou “Tentação em
cair deixeis nos não” talvez não so-
em bem nos ouvidos do Senhor.

“ Tem gente que vai falar,
‘ah, mas Bicho de 7 Cabeças II
não é assim’. Agora é”
Chico César

Humberto Werneck


Parceria.
Dupla fez
uma canção
especial
para o
show, que
deve ser
gravado

ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

l]


Epidemia de malucos


lMemória

Agenda foi alterada


por causa do vírus


Não podia ver pia sem lavar
as mãos. Imagino sua euforia
em tempos de coronavírus

“Senti que o violão dele
(Chico) era especial”.
Geraldo Azevedo

ALEX SILVA/ESTADÃO

NA WEB
Vídeo. Chico e
Geraldo mostram
prévia do show

estadao.com.br/e/chicoegeraldo
6

lDiferenças

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