O Estado de São Paulo (2020-03-24)

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A6 Política TERÇA-FEIRA, 24 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


O ministro de Bolsonaro que provoca ciúmes no Planalto


Mateus Vargas / BRASÍLIA


Médico ortopedista, o minis-
tro da Saúde, Luiz Henrique
Mandetta, de 55 anos, vivia cor-
rigindo a postura de seus cole-
gas na Câmara, quando era de-
putado. Foi em uma dessas oca-
siões que ele se aproximou do
capitão reformado do Exército
Jair Bolsonaro, à época tam-
bém deputado. Bolsonaro e
Mandetta, que já trabalhou co-
mo médico militar tenente no
Hospital Geral do Exército, se
uniram na oposição ao gover-
no Dilma Rousseff (PT) – o ho-
je ministro foi contra o progra-
ma Mais Médicos e defende a
revalidação de diplomas para
profissionais estrangeiros.
Com a crise do coronavírus,
o ministro filiado ao DEM do
Mato Grosso do Sul vem ga-
nhando holofotes e tem des-
pertado ciúmes no Palácio do
Planalto. Pesquisas e monitora-
mentos de redes sociais indi-
cam que Bolsonaro perdeu po-
pularidade após o avanço da
doença, enquanto Mandetta ga-


nhou. No domingo, o titular da
Saúde provocou polêmica ao
sugerir o adiamento das elei-
ções de outubro. No Congres-
so, a proposta dividiu deputa-
dos e senadores, mas o fato é
que Mandetta tocou em um te-
ma já tratado nos bastidores
pelas cúpulas dos partidos.
Ao contrário dos tempos de
Congresso, quando tinham afi-
nidade na oposição ao PT, Bol-
sonaro e Mandetta, agora, pare-
cem bater cabeça. Na sexta-fei-
ra, enquanto o presidente fala-
va em “gripezinha”, o ministro
previa um “colapso” no siste-
ma de saúde no final de abril
Bolsonaro tem se queixado
de que, muitas vezes, o discur-
so de Mandetta provoca pâni-
co na população e cobra a mu-
dança de tom. Preocupado
com o reflexo da crise na eco-
nomia e, como consequência,
na sua popularidade, o presi-
dente quer que Mandetta e ou-
tros auxiliares façam pronun-
ciamentos mais otimistas, di-
zendo que o Brasil tem uma
economia sólida.
Na prática, até a eclosão da
pandemia, o ministro da Saúde
estava escanteado na equipe e
sempre saía pela tangente quan-
do abordado sobre assuntos po-
lêmicos, como a pauta de costu-
mes. Trata-se de uma estratégia
que não garante pontos com

Bolsonaro, já que o presidente
prefere perfis que partem para
o enfrentamento político.
No fim do ano passado, Man-
detta chegou a dizer a colegas
da Câmara que se candidataria
a prefeito de Campo Grande
(MS). A conversa foi vista como
uma forma honrosa de sair do
cargo, evitando o desgaste de
uma demissão. Recentemente,
porém, ele disse a aliados que
desistiu do plano e há quem di-
ga que ele esteja almejando
voos mais altos, como o gover-
no do Mato Grosso do Sul, em


  1. No Ministério da Saúde,
    Mandetta mudou de perfil: bai-
    xou o tom de críticas ao Mais


Médicos – programa ainda ativo
na sua gestão – e ganhou status
de voz ponderada no governo.
Ele começou a carreira políti-
ca no MDB, em 2005, quando
assumiu a Secretaria Munici-
pal de Saúde de Campo Gran-
de, cidade onde nasceu. Em
2010, deixou o cargo e o MDB
e concorreu a deputado fede-
ral pelo DEM. Foi reeleito em
2014, mas não tentou novo
mandato quatro anos depois.
Mandetta é um dos três mi-
nistros do DEM no governo –
além de Tereza Cristina (Agri-
cultura) e Onyx Lorenzoni (Ci-
dadania). Para chegar à Espla-
nada, teve apoio dos dois – à

época, Onyx havia sido indica-
do para a Casa Civil – e do go-
vernador de Goiás, Ronaldo
Caiado (DEM), além do aval
de frentes parlamentares da
saúde, que reúnem integrantes
de várias legendas.
Sobre o ministro pairam des-
confianças sobre sua afinidade
com planos de saúde, porque-
presidiu a Unimed em Campo
Grande e já disse que pautaria
mudanças sobre acesso à rede
pública de saúde.

Investigado. Com perfil discre-
to, ele é conhecido por não es-
conder “a real” situação dos fa-
tos. Quando foi convidado para

ingressar no ministério, avisou
Bolsonaro de que era investiga-
do por fraude em licitação, tráfi-
co de influência e caixa dois. O
presidente não fez reparo e ob-
servou, à época, que o médico
não era réu.
A suspeita é de que, quando
secretário, Mandetta tenha in-
fluenciado na contratação de
uma empresa, em 2009, para
gestão de informações na área,
em troca de favores em campa-
nha eleitoral. O Ministério da
Saúde repassou R$ 8,16 mi-
lhões ao contrato. E a prefeitu-
ra, R$ 1,81 milhão. Segundo
uma ação de 2015, movida pela
Procuradoria de Campo Gran-
de, o serviço não foi entregue e
o município teve de devolver à
União R$ 14,8 milhões. Man-
detta contesta a acusação.
Na véspera da votação da re-
forma da Previdência na Câma-
ra, no ano passado, quando a
Saúde liberou mais de R$ 1 bi-
lhão em emendas, Mandetta
admitiu que a pasta fazia um
“esforço” para aprovar a maté-
ria. A versão era oposta à de
Bolsonaro, que negava relação
do pagamento com a votação.
O Ministério Público Fede-
ral abriu investigação sobre
possível interferência de Bolso-
naro, de Mandetta e do presi-
dente da Câmara, Rodrigo
Maia (DEM), na votação da re-
forma sob a forma de libera-
ções de emendas. Procurado, o
Ministério da Saúde disse que
não vai se posicionar sobre “in-
quéritos não concluídos”.

ENTREVISTA


Guilherme Evelin


Principal empresa de consulto-
ria do mundo para avaliação
de risco político, a Eurasia mu-
dou para pior as perspectivas
do Brasil. Até a pandemia do
coronavírus, a consultoria acre-
ditava que, apesar da atitude
beligerante do presidente Jair
Bolsonaro, o Congresso avan-
çava para a aprovação de refor-
mas que levariam a maior cres-
cimento econômico, alimen-
tando um ciclo virtuoso, a lon-
go prazo, para o País. “Esse ci-
clo se quebrou”, diz Christop-
her Garman, diretor da consul-
toria para as Américas. “E po-
deremos ter um ciclo vicioso”.
Segundo Garman, por causa
dos desdobramentos da crise
do coronavírus, o País pode
correr, inclusive, o risco de um
conflito institucional mais sé-
rio se o presidente Jair Bolso-
naro, em reação a um enfraque-
cimento, continuar a apelar à
retórica antipolítica. Tudo vai
depender, na sua avaliação, de
como será a reação do Palácio
do Planalto, nas próximas se-
manas, ao aumento da propa-
gação da doença. Para Gar-
man, a postura inicial do gover-
no foi “desastrosa”, mas ainda
há tempo para ele tentar se re-
cuperar. “Os momentos mais
dramáticos, do ponto de vista
econômico e social, ainda es-
tão por vir. Os maiores testes
também”, diz.


lAlém do coronavírus, há outras
razões para maior pessimismo
com o Brasil?
Antes do coronavírus, nós está-
vamos num equilíbrio. Tínha-


mos o presidente com a postu-
ra de manter uma retórica con-
tra o establishment político.
Ao mesmo tempo, lideranças
no Congresso tinham chegado
à conclusão de que manter
uma agenda de reformas fis-
cais e econômicas era de seu
interesse eleitoral. Também
havia um alinhamento inédito
de governadores e líderes no
Congresso para aprovar uma
reforma tributária. Era um am-
biente com tensões políticas,
mas, paradoxalmente, com in-
centivos para que os atores
avançassem com as reformas.
Com o choque do coronavírus,
teremos dois momentos políti-
cos. Um será imediato e terá a
ver com como a classe política
reagirá à crise. As primeiras
reações do governo foram de-
sastrosas. O presidente mini-
mizou a crise, com medo da re-
percussão econômica. A rea-
ção da equipe econômica foi a
de querer acelerar as reformas.
Ou seja, o governo foi lento
em medidas para mitigar os
efeitos sociais e econômicos.
Mas, no curtíssimo prazo, ain-
da mantemos certo otimismo.

lPor quê?
Estamos enxergando um go-
verno mais focado numa agen-
da de mitigar os efeitos sociais
e econômicos para as empre-
sas e a população. Eles estão
atrasados, mas passaram a fa-
zer esse movimento. Estamos
também enxergando no Con-
gresso uma imensa boa vonta-
de para aprovar com celerida-
de toda essa agenda. Mas, de-
pois, nós vamos ter um segun-
do estágio: passados os primei-
ros três, quatro meses, vamos
viver as repercussões de uma
economia que deverá estar no
chão, com deslocamento so-
cial e econômico profundo e
crescimento baixo não só este
ano, mas também no próximo
ano. A dinâmica política nesse

segundo estágio nos preocupa.

lQue cenário o sr. vislumbra?
Nós poderemos ter crescimen-
to baixo; um presidente que
reage ao seu enfraquecimento,
indo às suas bases e reforçan-
do a retórica anti-establisment
contra a classe política e uma
classe política desesperada
com suas chances de reeleição
em 2022. Então, a coalizão re-
formista no Congresso tam-
bém poderá se fracionar. Aque-
le cenário de que aprovar refor-
mas era do próprio interesse
dos parlamentares, com um
presidente um pouco mais
tranquilo da sua posição políti-
ca e com um ciclo virtuoso de
reformas e crescimento econô-
mico se auto-alimentando, es-
se ciclo foi quebrado. E podere-
mos ter um ciclo vicioso.

lQue consequência terão os pa-
nelaços contra Bolsonaro?
O presidente fez uma leitura
muito equivocada de como de-
veria reagir à crise e deve pa-
gar um custo político pela pos-
tura que adotou. Estamos ven-
do que os governos que tratam
a crise do coronavírus como
uma guerra podem se benefi-
ciar disso. Nos EUA, o presi-
dente Donald Trump, num pri-
meiro momento, estava mini-
mizando a crise como apenas
uma gripe mais feia, porque es-
tava com medo que as pessoas
entrassem em pânico e a eco-
nomia parasse. Mas ele mu-
dou, tomou medidas mais
agressivas e a aprovação da
sua gestão da crise subiu de
38% para 47%. Se Bolsonaro fi-
zer uma mudança para tratar a
crise como uma guerra, ele po-
de até se recuperar.

lAcredita que a atitude belicosa
do presidente com os governado-
res continuará?
Minha aposta é que ele vai mu-
dar, assim como o presidente

Trump mudou, porque a crise
vai atropelar. A estratégia de
não gerar pânico para evitar a
economia entrando em colap-
so é perdedora. Não tem como
vencer. O presidente vai reco-
nhecer isso. Mas ele não vai fa-
zer uma reviravolta total. O cál-
culo do Palácio do Planalto é
que Bolsonaro chegou lá sem
apoio de ninguém e precisa ali-
mentar a narrativa contra o es-
tablishment, para se sustentar
politicamente. Quando entra
em dificuldades, o instinto do
presidente é redobrar a retóri-
ca polarizante.

lO apoio a essa retórica está
minguante ou não?
Não sabemos ainda o preço
que ele pagou pela minimiza-
ção da crise, mas pode ser rela-
tivamente grande. O preço vi-
rá na frente. Num cenário de
recessão, o presidente dificil-
mente manterá apoio. Enfra-
quecido politicamente, se ele
insistir numa retórica anti-es-
tablishment, isso pode se tor-
nar perigoso. Nós fizemos um

downgrade do Brasil a longo
prazo, porque a segunda deri-
vada dessa crise nos preocupa
muito mais do que o conflito
institucional de curtíssimo pra-
zo. Nesse primeiro momento,
o Congresso vai cooperar.

lHá possibilidade de um conflito
institucional sério mais à frente?
Essa hipótese, com certeza, en-
trou no radar. É isso que que-
ríamos sinalizar com um down-
grade a longo prazo. O cenário
político que virá depois da cri-
se vai depender muito do que
acontecerá nos próximos dois,
três meses. Os momentos
mais dramáticos, do ponto de
vista econômico e social, ainda
estão por vir. Os maiores tes-
tes, também. O governo está fa-
zendo uma mudança, mas a
avaliação de como ele passará
por esses testes vai depender
da agressividade das medidas.

lComo avalia as medidas toma-
das até aqui?
As primeiras iniciativas foram
tímidas. Acredito que a ajuda

às famílias e às empresas vai
aumentar muito. A pergunta é
se o governo vai liderar esse
processo ou não. Se for tími-
do, o Congresso vai agir com
propostas mais agressivas. En-
tão, o risco de haver medidas
não coordenadas ou que acar-
retam gastos permanentes na
estrutura fiscal aumenta. O
ideal é que o governo tome me-
didas muito agressivas, mas
com uma estrutura de gastos
temporária, de modo que a di-
nâmica fiscal possa ser equili-
brada, quando passada a crise.
Para isso funcionar, eles preci-
sam estruturar essas propos-
tas e colocar uma bala muito
forte. Eles estão agindo nessa
direção, mas estão ainda atrás
da curva. O perigo é que errem
na dosagem.

PERFIL


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Para o analista de Brasil


da consultoria de risco


político, País pode entrar


em “ciclo vicioso” após


choque do coronavírus


Christopher Garman, diretor de Américas da Eurasia


País tem 1.891 casos e 34 mortes. Pág. A8}


Risco. Segundo Garman, governo brasilero fez ‘leitura equivocada’ de como reagir à crise

NA WEB
TV Estadão.
Veja trechos da
entrevista

estadao.com.br/e/garman
6

MARCELLO CASAL JR/AGÊNCIA BRASIL - 17/3/

Pandemia. Ministro fala sobre medidas combate ao vírus

]Médico ortopedista, de 55
anos, Luiz Henrique Mandetta
entrou para a política em
2005, quando era filiado ao
MDB, e assumiu a secretaria
municipal de Saúde de Campo
Grande, no Mato Grosso do
Sul. Em 2010, já no DEM, foi
eleito deputado federal, reele-
gendo-se e 2014.
Em 2018, com a eleição de
Jair Bolsonaro à Presidência,
foi convidado a assumir o mi-
nistério da Saúde.

À frente de ações contra QUEM É?


ao covid-19, Mandetta


vem recebendo apoio


enquanto presidente


tem sido alvo de críticas


Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde


‘Hipótese de crise


institucional séria


entrou no radar’


RICHARD JOPSON/EURASIA - 12/4/

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