O Estado de São Paulo (2020-03-25)

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 25 DE MARÇO DE 2020 Metrópole A


RIO TEM DIA DE


PRAIAS VAZIAS E


LOJAS FECHADAS


Prefeitura multa comércio de aluguel de carros;
policiais alertam banhistas sobre quarentena

Caio Sartori / RIO

U


ma pequena e solitá-
ria sapataria na Aveni-
da Nossa Senhora de
Copacabana, em Copacaba-
na, na zona sul da capital flu-
minense, resistia, ontem, à
determinação do prefeito
Marcelo Crivella (Republica-
nos) para não funcionar por
causa da pandemia do novo
coronavírus.
Na porta, o proprietário do
negócio, Rafael Tavares, de 33
anos, olhava de manhã, com

ar de desolação, a principal via
comercial do bairro, vazia e com
lojas fechadas. Ele dispensou os
três empregados e foi trabalhar
sozinho. Queria argumento para
convencer os fiscais a deixá-lo
funcionar. Mas não havia clien-
tes.
“Moro aqui perto, então não
preciso pegar transporte aglo-
merado. Tem menos risco. A po-
lícia veio aqui de manhã, mas
expliquei isso e eles entende-
ram”, contou Tavares. Apesar
de estar aberta, a loja tem ficado
vazia para desespero do peque-

no empresário. “A cidade está
parando, mas as contas não pa-
ram de chegar”, disse.
As medidas de restrição im-
postas pela prefeitura passa-
ram a valer ontem – já havia de-
terminações do governo do Es-
tado. O comércio teve seu pri-
meiro dia fechado. A exceção
valeu para supermercados, far-
mácias, padarias, pet shops e
postos de gasolina – sem lojas

de conveniência. Bares e restau-
rantes só funcionam com entre-
gas por delivery.
Ao longo do dia, a Prefeitura
do Rio agiu com dureza contra
quem não acatava a ordem para
baixar as portas. A Coordenado-
ria de Controle Urbano anun-
ciou que fechou uma loja de alu-
guel de carros na Barra da Tiju-
ca, na zona oeste. O negócio es-
tava aberto ao público. Empre-

gados trabalhavam normalmen-
te. Segundo o órgão, o local foi
multado. Caso continue a des-
cumprir as determinações, será
denunciado por desobediência.
Em toda a cidade, o comércio
fechado causou reclamações.
O morador de rua Marcos Rogé-
rio, que trabalha com artesana-
to de plantas em Copacabana,
na zona sul, também perdeu di-
nheiro. Na rua semideserta em
plena um dia útil, ele contou ao
Estado que havia três dias que
não vendia – nem comia – nada.
É que, disse ele, mesmo antes
da ordem para fechar, já não
aparecia gente nos bares e res-
taurantes, seus principais lo-
cais de exposição, por causa do
medo da doença. De máscara
cirúrgica, ele explicou por que
não quer ir para um local de aco-
lhimento. “Lá tem muita gente
doente”, disse.
O transporte vem sendo esva-
ziado aos poucos. Depois de
uma segunda-feira de filas e
aglomerações nas estações de
trem, metrô e barca, ontem foi
mais tranquilo. Houve, porém,

algumas filas no início da ma-
nhã. No caso dos trens urba-
nos, a concessionária Super-
Via estimou em 70% a queda
no número de passageiros.
Os idosos, predominantes
em Copacabana, continua-
vam indo às ruas do bairro,
mesmo sendo um dos grupos
de risco para a covid-19. Poli-
ciais patrulhavam as avenidas
principais e a praia. Retira-
vam os moradores que, mes-
mo com a proibição, ainda ten-
tavam dar a sua corridinha à
beira-mar.
Moradores de rua, porém,
continuavam por lá. Um de-
les era Alessandro Freire, de
47 anos, que ergue esculturas
de areia na orla. Ontem, ele e
sua arte estavam lá, na altura
do Posto 5. “Não tem uma
pessoa para dar uma comida,
um dinheiro, nada”, recla-
mou ao lado de sua réplica do
Cristo Redentor com uma
máscara cirúrgica. “Até Ele
pode pegar ( a doença ), tá to-
do mundo pegando”, brin-
cou o artista.

José Maria Tomazela
SOROCABA
Pablo Pereira


A família da aposentada Ma-
ria da Conceição Costa, de 73
anos, que morreu com suspei-
ta de coronavírus, em Capão
Bonito, interior de São Paulo,
no sábado, não conseguiu se
reunir para a despedida. Por
causa da suspeita da doença,
o corpo foi apresentado aos
parentes em caixão fechado e
por um período máximo de
duas horas. O mais velho dos
nove filhos de dona Conce-
benta, como era conhecida,
mora em São Paulo e não che-
gou a tempo de acompanhar
o sepultamento.

No interior paulista, famílias
estão enterrando os mortos
com suspeita de coronavírus às
pressas, sem velório e sem ter
certeza se as vítimas foram con-
taminadas pelo vírus. Na capi-
tal, a covid-19 também já altera
a rotina de serviços funerários.
O Instituto Adolfo Lutz, labo-
ratório de referência para exa-
mes de contraprova, não dá con-
ta da demanda. Mais de 4 mil
amostras estão à espera de re-
sultados, que podem levar de
seis a dez dias ou mais para fica-
rem prontos. O instituto infor-
mou que dá prioridade a casos
graves e óbitos. Na segunda, o
governo anunciou uma rede de
testes com 17 laboratórios liga-
dos à Universidade de São Pau-
lo (USP) e apoio do Instituto
Butantã, elevando a capacidade
para 2 mil exames por dia.


Apenas no interior, até a tar-
de de ontem, haviam sido notifi-
cadas pelas prefeituras 26 mor-
tes suspeitas de coronavírus,
mas nenhuma tinha recebido a
confirmação oficial. Na maioria
dos casos, a coleta de amostras
foi feita no dia do óbito ou após
a morte, porque quase sempre a
internação se dá com o paciente
em estado grave. As vítimas são
enterradas rapidamente, sem

velório, em caixões lacrados.
Em Jarinu, uma mulher de 42
anos morreu com sintomas na
noite de sexta-feira. Amostras
foram enviadas para o Adolfo
Lutz no mesmo dia, mas o resul-
tado ainda não saiu. O corpo foi
enterrado na manhã seguinte,
no cemitério municipal. Mes-
mo sem saber a causa, o agente
funerário usou máscara e equi-
pamentos de proteção.
No caso de Maria da Concei-
ção, os parentes não se confor-
mam com a quebra de uma tradi-
ção: o velório em casa. “Minha
sogra era muito conhecida, reli-
giosa e merecia um velório com
reza do terço, mas o que teve foi
uma coisa fechada”, disse a no-
ra Maria Valdirene Queiróz.
“Agora, eu, meu marido e nossa
filha estamos em isolamento,
mesmo sem saber se precisa,
pois o resultado do exame não
saiu.” A coleta foi feita no dia 19,
quando a idosa foi internada.
Em Sorocaba, dois morreram
com sintomas da doença e fo-
ram enterrados sem que as famí-
lias soubessem o que causou as
mortes. A prefeitura determi-
nou sepultamento imediato pa-
ra mortes suspeitas.
A auxiliar de enfermagem
Cleide Renata Marques, de 43
anos, moradora de São Vicente,
na Baixada Santista, morreu
após ficar dez dias internada.
Conforme a filha, Bruna Mar-
ques, como o quadro era de
pneumonia aguda e complica-
ções respiratórias, houve sus-
peita de coronavírus, mas as
amostras só foram colhidas de-

pois que ela morreu. Após sepul-
tamento às pressas, a família en-
trou em isolamento e ainda es-
pera o resultado do exame.
Conforme o Instituto Adolfo
Lutz, o teste diagnóstico não de-
ve ser realizado em pessoas as-
sintomáticas, visando à otimiza-
ção e uso racional dos testes.
“Cabe ressaltar que o teste não
afeta o tratamento da pessoa,
que é feito apenas do ponto de
vista clínico”, disse, em nota.
A Associação Brasileira de
Medicina Legal e Perícias Médi-
cas explica que não se recomen-
da realizar necropsia em cadáve-
res de pessoas que morreram
pelo novo coronavírus, inde-
pendentemente de serem classi-

ficados como investigados, pro-
váveis ou confirmados, exceto
em situações clínicas bem fun-
damentadas e nos locais em
que for possível fazer uma análi-
se minimamente invasiva.
Ontem, os três primeiros se-
pultamentos no Cemitério do
Araçá, na capital, foram de pes-
soas que morreram pelo corona-
vírus. “Tivemos dois sepulta-
mentos de pessoas falecidas no
hospital Sancta Maggiore e um
caso do Hospital Metropolita-
no, da Lapa”, informou um fun-
cionário do serviço. “Sem veló-
rio, direto para sepultar.”

Regras. Conforme a Secreta-
ria da Saúde de São Paulo, as di-

retrizes para os óbitos foram pu-
blicadas no Diário Oficial no dia


  1. O texto informa que, uma
    vez que os corpos podem ser
    considerados de risco para con-
    taminação e difusão de vírus, as
    necropsias nos casos suspeitos
    ou confirmados estão suspen-
    sas. “As regras para sepultamen-
    to são definidas pelas adminis-
    trações municipais, seguindo di-
    retrizes do Centro de Contin-
    gência.” O Município de São
    Paulo também editou portaria
    com regras excepcionais para
    este período de registros de
    mortes. A covid-19 impede que
    familiares façam as últimas ho-
    menagens aos parentes mortos
    com diagnóstico da doença.


WILTON JUNIOR / ESTADÃO

Nova rotina

‘Quem não


tem máscara,


faz com pano’


Corpos cremados


coletivamente


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


A falta de máscaras descartáveis
para evitar a contaminação pelo
novo coronavírus levou o Minis-
tério da Saúde a orientar a popu-
lação a fazer a própria proteção,
com o uso de tecido e elástico,
caso não tenha o material des-
cartável. “É uma barreira física.
Vamos deixar as máscaras des-
cartáveis para serem utilizadas
pelos hospitais e profissionais
de saúde”, disse João Gabbardo
dos Reis, secretário executivo
do Ministério da Saúde.
“A máscara, para a população
que quer impedir de contami-

nar outras pessoas, é uma barrei-
ra. Faz com pano quem não tem
alternativa. Pega um tecido, co-
loca um elástico, é uma barreira
física para que não haja, ao falar,
ao tossir ou espirrar, a dissemi-
nação de gotículas que possam
contaminar outras pessoas”,
afirmou. “Vamos deixar as más-
caras, essas que têm registros,
aprovadas pela Anvisa, que se-
jam usadas nos hospitais, pelos
profissionais da saúde.”
O governo afirmou que tem
procurado adquirir máscaras
em outros países e já comprou
todo o estoque disponível no
Brasil. Mesmo assim, tem en-
frentado dificuldades. As expor-
tações foram proibidas. “A ques-
tão da máscara é insuficiente no
mundo inteiro”, disse. / ANDRÉ
BORGES e JULIA LINDNER

Restrição. Policial orienta banhista na Praia de Copacabana

PARA LEMBRAR

Marlla Sabino
Emilly Behnke / BRASÍLIA


Em linha com o presidente Jair
Bolsonaro, o ministro da Saú-
de, Luiz Henrique Mandetta,
afirmou que restrições impos-
tas nos Estados, como fecha-
mento de comércio, são “péssi-
mas” para o setor de saúde. Ape-
sar de afirmar que não vai pedir


aos governadores para afrouxa-
rem as medidas, disse que al-
guns estão percebendo que ace-
leraram decisões e será necessá-
rio fazer ajustes.
“Tem médicos fechando con-
sultórios. Daqui a pouco estou
lá cuidando de um vírus, mas
cadê o pré-natal? Cadê o cara
que está fazendo a quimiotera-
pia? Não dá para chegar e dizer
o que é essencial. Se precisar de
um mecânico para consertar
uma ambulância, ele é o mais
essencial naquele momento”,
disse, ao sair do Planalto, após
conferência com governadores
do Centro-Oeste e Sul.
O ministro disse ainda que

medidas restritivas, como fe-
chamento de aeroportos e rodo-
vias, podem atrapalhar por
exemplo o funcionamento de
fábricas de equipamentos médi-
cos e suprimento de materiais,
como máscaras.
Segundo o ministro, as ações

precisam ser sincronizadas e
não devem atender motivações
políticas, como tem visto em al-
guns casos. “Tenho visto prefei-
tos com eleições na frente. Te-
ve um que me ligou e falou que
já tinha fechado mercearia, bor-
racharia e açougue. Eu pergun-
tei o porquê e ele me disse que o
cara da oposição tinha dito na
rádio que, se ele não fechasse,
estava errado.”
Luiz Henrique Mandetta afir-
mou ainda que o País é autossu-
ficiente na produção de cloro-
quina, medicamento que tem si-
do usado em casos mais graves,
e alguns países até solicitaram o
remédio para o Brasil.

Tire as dúvidas em relação à contaminação de roupas. Pág. A12 }


Na Itália, com a população
confinada em razão da doen-
ça, muitos corpos tiveram
cremação coletiva, sem a
participação dos parentes.
Em Bérgamo, cidade da
Lombardia, no norte do país,
causaram intensa perplexida-
de imagens que mostraram
uma longa procissão de car-
ros blindados do Exército
retirando 70 caixões que se
acumulavam no cemitério
local, sem ninguém para fa-
zer o sepultamento. Na Sicí-
lia, 48 pessoas foram multa-
das por terem participado de
uma procissão fúnebre.
Na China, no auge da pan-
demia, os restos mortais de
pessoas infectadas tinham
de ser cremados no local
mais próximo.

l Crítica

Mandetta: restrição ao comércio é péssima


“Tem médicos fechando
consultórios. Daqui a pouco
estou lá cuidando de um
vírus, mas cadê o pré-natal?
Cadê o cara que está
fazendo a quimioterapia?”
Luiz Henrique Mandetta
MINISTRO DA SAÚDE

Ministro diz que alguns
gestores vão perceber


que aceleraram as


decisões e será


necessário fazer ajustes


ALEX SILVA / ESTADÃO

Suspeita de doença


faz enterro ser feito


às pressas em SP


Sepultamento é realizado sem velório para evitar contaminação,


mesmo que não tenha sido divulgado resultado de exame


Sem despedida. No Serviço Funerário da capital, a orientação é para impedir velórios

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