O Estado de São Paulo (2020-03-25)

(Antfer) #1
O DRIVE-IN QUE
FUNCIONA EM BRASÍLIA
EXIBIU ‘O ÚLTIMO CINE
DRIVE-IN’, DE 2015

Luiz Carlos Merten


Em tempos de confinamento
social provocado pela covid-19,
muita gente está tendo de mu-
dar o comportamento. Para o
jovem que já se acostumou a ver
filme no laptop e até no celular,
não deve fazer muita diferença,
mas a crítica do The New York
Times
, Manohla Dargis, escre-
veu um texto precioso sobre a
dificuldade de uma profissional
que sente falta da sala escura e
da liturgia de
ver o filme
acompanhada
pelo público.
Pode ser um
problema ge-
racional, mas
ninguém con-
segue prever a
consequência dessa fase difícil.
Mais pessoas presas em casa só
têm a alternativa de procurar
novas plataformas para seguir
vendo filmes.
E não são só os cinemas. Par-
ques também foram fechados
para evitar aglomeração. Estão
ficando na lembrança as corri-
das com amigos, as peladas de
futebol, o escurinho do cinema



  • agarradinhos, chupando dro-
    pes de anil. Os drive-ins, nem se
    fala. Antes do coronavírus só
    restava um cinema do tipo no
    Brasil – em Brasília –, mesmo
    que volta e meia iniciativas trou-
    xessem de volta o velho hábito.


Em outubro do ano passado,
um espaço em Interlagos, equi-
pado com uma tela gigantesca,
foi preparado para abrigar até
200 carros. Várias pessoas es-
premidas dentro de um carro?
Nem sonhar. O que agora se po-
de, e até deve, é viajar um pouco
na imaginação para lembrar o
drive-in como espaço ficcional.
Não os filmes no drive-in, mas o
drive-in nos filmes.
Em 1968, Peter Bogdanovich
era um crítico com menos de
40 anos (nas-
ceu em 1929),
que ganhou
projeção na-
cional (nos
EUA) e até in-
ternacional
por seu amor
dos velhos
mestres. John Ford, Allan
Dwan, Howard Hawks. Numa
época em que Fritz Lang ainda
era reverenciado por sua heran-
ça expressionista – a fase alemã
–, Bogdanovich ousou revisar a
fase hollywoodiana para mos-
trar que ela era tão boa, e até
mais, que a outra. Com os holo-
fotes dirigidos para ele, Bogda-
novich ligou-se ao chamado
mestre do cinema barato, Ro-
ger Corman, para sua estreia na
direção. Corman sempre foi li-
gado ao cinema de gênero (gân-
gsteres, o ciclo de terror inspira-
do em Edgar Allan Poe) e assim
não houve surpresa quando sur-

giu “Targets”.
Literalmente, Alvos – mas no
Brasil o filme chamou-se “Na
Mira da Morte”. A ficção de Bog-
danovich passa-se num drive-
in que apresenta um filme de
terror estrelado por um ator
muito conhecido por suas incur-
sões no gênero, Boris Karloff.
Ele se chama Byron Orlok e está
programado para acompanhar
a exibição de seu novo filme –
num drive-in. Em paralelo, Bog-
danovich mostra um tal Bobby
Thompson Jr., obcecado por ar-
mas. Ele mata a mulher, a mãe e
todo mundo que cruza seu cami-
nho, terminando por refugiar-

se em uma caixa d’água que fica
justamente atrás da tela que exi-
be o filme de Orlok. Por medida
de economia, o filme dentro do
filme é “O Terror”, de 1963, diri-
gido por Corman e com... Kar-
loff! Do nada, Bobby começa a
disparar contra os carros, ma-
tando seus ocupantes. Bogda-
novich não apenas investe con-
tra o culto das armas na socieda-
de norte-americana como
expõe o que Orlok diz numa en-
trevista no começo de “Tar-
gets” – o horror ingênuo dos fil-
mes não consegue mais dar con-
ta (e isso em 1968!) do horror
causado pela realidade.

Quatro anos mais tarde, foi a
vez de George Lucas – de 29
anos, pois nasceu em 1944 – vol-
tar ao drive-in com “American
Graffiti” (no Brasil, “Loucuras
de Verão”). Numa única noite
de despedida – alguns deles vão
morrer no Vietnã –, os jovens
dizem adeus à adolescência
amando, brigando, participan-
do de rachas de carros e idas ao
cinema (drive), tudo ao som de
uma irretocável trilha de rock.
Ah, sim, entre os jovens está
Harrison Ford. Quem imagina-
ria a extraordinária carreira que
ele trilhou depois? No Brasil,
justamente o drive-in de Brasí-

lia abrigou a trama de “O Últi-
mo Cine Drive-in”. O longa de
Iberê Carvalho, de 2015, venceu
o Festival de Gramado. Conta a
história de Marlonbrando (é!),
interpretado por Breno Nina,
que volta para casa, em Brasília,
e descobre que a mãe está mor-
rendo no hospital. Ele então se
une ao pai (Othon Bastos), com
quem não fala há anos – dono
do drive-in da cidade –, para rea-
lizar um desejo da mãe. Todos
esses filmes estabelecem o dri-
ve-in como espaço mágico, as-
sustador, de encontros e desen-
contros. Não é isso o cinema? A
vida?

CINEMA


A BORDO


NO DRIVE-IN, CARRO


VIRA POLTRONA


Nos EUA, cine


drive-in volta


a fazer sucesso


ALEX SILVA/ESTADÃO

Último espaço fixo do tipo no Brasil fica


em Brasília e foi até retratado em filme


Ar livre. No fim do ano passado o estacionamento do estádio do Pacaembu virou drive-in para exibição de filmes

LUCAS JACKSON/REUTERS

Com o avanço do coronavírus,
o drive-in, tipo de cinema em
que o espectador assiste o filme
de dentro do carro, é uma ótima
opção para reduzir o risco de
contágio. No Brasil há um últi-
mo remanescente do ramo, em
Brasília, mas nos Estados Uni-
dos essas “casas” de espetáculo
ao ar livre ainda fazem sucesso



  • e ganharam novo fôlego em
    tempos de covid-19.
    Ainda existem mais de 300 lo-
    cais desse tipo nos EUA, de acor-
    do com informações da Associa-
    ção de Proprietários de Teatro
    Drive-in. Ainda segundo a asso-
    ciação, apenas os Estados do
    Alasca, Delaware, Havaí, Loui-
    siana e Dakota do Norte não
    contam com drive-ins.
    Normalmente esses espaços,
    que não ficam abertos o ano to-
    do, funcionam a partir do início
    do verão. Mas, por causa da pan-
    demia e do fechamento de shop-
    pings, seus proprietários decidi-
    ram antecipar a abertura.
    “Quem diria que os filmes dri-
    ve-in voltariam a ser melhor op-
    ção para sair de casa?, pergunta
    Josh Frank, dono do Blue Starli-
    te, em Austin, no Texas.
    No Brasil, o último cine dri-
    ve-in fica em Brasília. Inaugura-
    do há 47 anos, tem capacidade
    para quase 400 carros. Não há
    lanchonete − para pedir comida
    ou bebida, basta acender a lan-
    terna do veículo.
    Hoje a programação inclui a
    animação “Dois Irmãos: Uma
    Jornada Fantástica”, às 18h40;
    “O Chamado da Floresta”, com
    Harrison Ford, às 20h20; e “Lu-
    ta por Justiça”, com Jamie Foxx
    e Brie Larson, às 22h.


Férias curtas. Drive-in dos
EUA anteciparam reabertura


I2DI São Paulo, 25 de março 2020|O ESTADO DE S. PAULO|


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