O Estado de São Paulo (2020-03-25)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 25 DE MARÇO DE 2020 Especial H3


AO COCRIADOR DE


‘ASTERIX E OBELIX’


Ilustrador provou por décadas sua capacidade de tratar de


temas delicados do passado por meio da chave humorística


Caderno 2


O ADEUS


CINCO MOMENTOS

UDERZO ABORDAVA
CONTROVÉRSIAS DA
HISTÓRIA COM HUMOR,
MAS NUNCA ACRÍTICO

lEm 2017, a HQ Asterix and the
Chariot Race ( Asterix e a Corrida
de Carruagens ), publicado por
Didier Conrad e Jean-Yves Ferri,
tinha um personagem
chamado ‘Coronavirus’. No
universo de Asterix , romanos cos-
tumam ter nomes terminados
em ‘us’ e gauleses em ‘ix’, o que
explica a coincidência.

André Cáceres


O quadrinista francês Albert
Uderzo morreu ontem, aos 92
anos, em sua residência, em
Neuilly-sur-Seine, comuna às
margens do Rio Sena, nos arre-
dores de Paris. Mais conhecido
por ter sido cocriador de Aste-
rix e Obelix
, o artista foi vítima
de um ataque cardíaco sem
qualquer relação com o corona-
vírus, segundo seu genro Ber-
nard de Choisy relatou à AFP.
Uderzo publicou, ao lado do
roteirista René Goscinny
(1926-1977), 24 livros da série
Asterix , que venderam, ao lon-
go de seis décadas, mais de 370
milhões de exemplares traduzi-
dos para mais de cem idiomas
em todo o mundo.
Após a morte de Goscinny, a
franquia seguiu adiante, ren-
dendo adaptações live action
estrelando Christian Clavier e
Gérard Depardieu, diversos fil-
mes de animação e jogos de vi-
deogame inspirados nas tra-
mas e cenários dos persona-
gens, além, é claro, de outros
álbuns em quadrinhos, sendo
alguns com arte do próprio
Uderzo e outros, mais recente-
mente, com autoria de outros
quadrinistas.
Desde a primeira publicação
de Asterix , em 1959, na edição
inaugural da lendária revista Pi-
lote
, René Goscinny e Albert
Uderzo já eram reconhecidos
como uma dupla bem estabele-
cida no competitivo mercado
de quadrinhos franco-belga,
talvez o mais qualificado do
mundo ainda hoje.
A bande dessinée humorísti-
ca de Asterix retratava a resis-
tência de um vilarejo gaulês
contra o irresistível avanço do
Império Romano sobre suas
terras no século 1.º a.C. O tema
pode até soar árido e mais ade-
quado a um livro de história an-
tiga do que ao entretenimento
infantojuvenil, mas Goscinny
e Uderzo provaram por déca-
das que eram magistrais em
transformar assuntos delica-
dos do passado em material pa-
ra deleite.
Após uma bem-sucedida par-
ceria com ninguém menos que
Jean-Jacques Sempé, Gos-
cinny trabalhou com Uderzo
em Oumpah-pah , quadrinho
que antecipa algumas das te-
máticas que viriam a ser apro-
fundadas em Asterix. Com um
nativo americano como prota-
gonista, a obra oferecia comen-
tários ácidos a respeito do colo-
nialismo francês na América
do Norte. Na época, Oumpah-
pah
já demonstrava a desenvol-
tura da dupla para trabalhar
com controvérsias da história,
como invasões e genocídios,
por uma ótica humorística,
mas nunca acrítica.
É surpreendente, aliás, que
um quadrinho que retrata este-
reótipos étnicos e nacionais
(do norte da África à península
escandinava, praticamente to-
dos os povos e países foram al-
vo de piadas de Uderzo e Gos-
cinny), como Asterix , tenha so-
brevivido tão bem na atual era
do politicamente correto. Isso
só demonstra a aptidão da du-
pla para fazer rir sem ofensas
preconceituo-
sas e desne-
cessárias – fa-
çanha não dis-
ponível a qual-
quer artista
que trabalha
com humor.
Se Asterix e
Oumpah-pah foram fortemen-
te inspirados tanto pelo movi-
mento franco-belga, especial-
mente pela obra de Hergé,
quanto pelos primórdios dos


quadrinhos americanos, com
destaque para os trabalhos ini-
ciais de Walt Disney, Albert
Uderzo provou que também sa-
bia refletir sobre a história em
traços mais só-
brios. Uma de
suas mais pre-
ciosas obras,
ainda pouco
conhecida no
Brasil, é Les
Aventures de
Tanguy et La-
verdure , quadrinho com tom
realista que acompanha dois pi-
lotos da Força Aérea Francesa
durante a 2.ª Guerra Mundial.
A HQ foi realizada em parce-

ria com o roteirista Jean-Mi-
chel Charlier e, assim como a
estreia de Asterix , figurou na
edição inaugural da Pilote. A re-
vista, que teve em suas páginas
mestres do século 20 como
Jean “Moebius” Giraud, Philli-
pe Druillet e Hugo Pratt, foi
concorrente de outras publica-
ções fundamentais para a histó-
ria do quadrinho europeu, co-
mo as belgas Tintin e Spirou e a
francesa Métal Hurlant , e foi pu-
blicada durante 30 anos, entre
1959 e 1989.
Os anos 1960, contudo, fo-
ram a era de ouro da parceria
entre Uderzo e Goscinny, quan-
do as tramas mais aclamadas

pelos fãs de Asterix foram publi-
cadas, como seu encontro com
Cleópatra no Egito, suas aven-
turas na Bretanha e seus emba-
tes com Júlio César.
No Brasil, Asterix foi publica-
do pela editora Record, princi-
palmente ao longo dos anos
1980, mas a maioria da saga per-
manece fora de catálogo. É pos-
sível encontrar alguns dos li-
vros clássicos da dupla, como
A Cizânia, Asterix Entre os Bre-
tões, A Odisseia de Asterix e Aste-
rix e Cleópatra , em sebos e sites
que vendem livros usados, co-
mo Estante Virtual e Amazon,
por preços que variam, em mé-
dia, de R$ 19 a R$ 59.

Após a morte precoce de Gos-
cinny, no entanto, Uderzo dei-
xou de publicar Asterix por vá-
rios anos. Eventualmente, ele
mudou de ideia e teve de en-
frentar críticas e controvérsias
ao prosseguir com a publica-
ção da saga como roteirista e
ilustrador. Com o tempo, ele
passou a convidar outros artis-
tas para trabalhar na série, até
que se aposentou de vez dos
quadrinhos em 2011.

Direitos. Com seu afastamen-
to e a posterior venda dos direi-
tos dos personagens, o ilustra-
dor chegou a passar por uma
desgastante disputa judicial
com a própria filha, a editora
francesa Sylvie Uderzo, ao lon-
go de vários anos. Em um arti-
go ferino publicado no jornal
Le Monde , ela e seu marido, o
escritor Bernard de Choisy,
acusaram Albert Uderzo de
“deixar os portões da vila gaule-
sa abertos para a invasão dos
romanos”, em uma referência
a Asterix.
Poderia se dizer que, com a
morte de Uderzo, os romanos
finalmente venceram. Entre-
tanto, com o enorme sucesso
de seus personagens, que ain-
da hoje se espalham por deze-
nas de filmes, videogames, re-
leituras literárias e sequências
quadrinísticas, é seguro afir-
mar que os portões da vila gau-
lesa permanecem firmemente
guardados – e assim ficarão por
muito tempo.

Asterix – A Cizânia
l Sem conseguir subjugar a vila
dos gauleses por meio da força
militar, o imperador romano
Júlio César envia seu agente
secreto Tulius Detritus para
provocar discórdia entre os
habitantes e tentar destruí-los de
dentro para fora, jogando uns
contra os outros e minando a
amizade de longa data entre
Asterix e Obelix.

Asterix Legionário
l Obelix se apaixona pela gaule-
sa Falbala, mas ela lamenta pelo
seu próprio interesse romântico,
Tragicomix, que foi recrutado
pelos invasores da Gália para
servir à Legião Romana em suas
guerras na África. Com o intuito
de impressionar Falbala e
resgatar seu conterrâneo, Obelix
e seu amigo Asterix se alistam
no exército de Júlio César.

Asterix e Cleópatra
l Uma paródia do épico ‘Cleópa-
tra’ (1963), de Joseph L.
Mankiewicz, esse quadrinho re-
trata o declínio do Egito enquan-
to Cleópatra tenta convencer Jú-
lio César da grandeza de seu rei-
no ao erigir, em três meses, um
palácio tão suntuoso quanto as
Pirâmides ou a Esfinge – com a
ajuda de Asterix e Obelix, é claro.

Asterix e Obelix
Contra César
l Primeira adaptação das HQs
para o cinema, de 1999, conta
com Christian Clavier como
Asterix e Gérard Depardieu como
Obelix, e mostra como a vila dos
gauleses mantém a própria
independência por meio de uma
poção mágica.

Asterix e o Domínio
dos Deuses
l Nesta animação de 2014, o
imperador romano Júlio César
muda sua estratégia e tenta
dominar os gauleses não pela
guerra, mas sim pelo consumo,
ao oferecer moradias de luxo do
lado de fora da vila em que
moram Asterix e Obelix.

Asterix ‘previu’


coronavírus?


ALBERT UDERZO H 1927 = 2020


REPRODUÇÕES

ORION CHILDREN’S BOOKS

Quadrinista. Uderzo com seus personagens mais famosos, Asterix e Obelix; artista teve um ataque cardíaco aos 92 anos

STEPHANE DE SAKUTIN /AFP - 19/4/2007

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