O Estado de São Paulo (2020-03-25)

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 25 DE MARÇO DE 2020 Política A


VERA


MAGALHÃES


Q


uando parecia que os líderes
das principais nações do
mundo estavam convergin-
do para compreender a gravidade e o
ineditismo da crise decorrente da
pandemia de covid-19 e para adotar
medidas restritivas à atividade econô-
mica e à circulação de pessoas para
tentar conter a velocidade da expan-
são do contágio, a semana iniciou sob
o signo do risco de grave retrocesso.
Nos Estados Unidos, candidato a
novo epicentro da pandemia graças
à velocidade com que os casos de
infecção pelo novo coronavírus
crescem, Donald Trump recuou da

postura mais comedida que vinha ado-
tando nos últimos dias para dizer que
quer o país “reaberto” na Páscoa.
Essa declaração contraria todas as
projeções de epidemiologistas, que
acreditam que o pico da doença ainda
não chegou aos EUA. A volta de Trump
ao negacionismo tem uma razão evi-
dente: a aproximação das eleições. Sua
candidatura foi atingida em cheio pela
constatação, literalmente na pele das
pessoas, de que o sistema de saúde ame-
ricano não é funcional e, num momen-
to de calamidade pública, pune até
com a morte aqueles que não têm recur-
sos para bancar exames e internações.

A pandemia colocou em pauta, mais
do que antes, as propostas do Partido
Democrata para a reforma do sistema.
O problema é que os humores do pre-
sidente norte-americano sempre in-
fluenciam diretamente os de seu admi-
rador brasileiro. E não demorou.
Jair Bolsonaro, que tinha levado um
susto com o combo comitiva majorita-
riamente enferma, repúdio à sua ida ao
Coronapallooza, panelaços em doses
diárias, pesquisas mostrando um der-
retimento de sua popularidade e prota-

gonismo dos governadores no comba-
te ao coronavírus, voltou a zombar do
risco em cadeia nacional de rádio e TV.
Não que ele tivesse se convencido da
gravidade do que ainda estamos pres-
tes a viver em algum momento: toda
sua tentativa de soar colaborativo com

governadores ou compassivo soava
forçada, do discurso recitado à expres-
são corporal incomodada.
O “vamos abrir na Páscoa” de Trump
foi um convite ao relaxamento de Bol-
sonaro. Em rede nacional, o presidente
foi cínico. Encontrou espaço para inva-
dir o confinamento de milhões de brasi-
leiros aflitos para dizer que seu passa-
do atlético faria com que, mesmo que
contraísse covid-19, para ele seria uma
“gripezinha” ou “resfriadinho”.
Além de zombaria com milhares de
doentes e dezenas de mortos, essa pos-
tura é uma tentativa patética de vaci-
na: o Hospital das Forças Armadas se
recusa a fornecer os testes de dois inte-
grantes da comitiva bolsonarista aos
EUA. Ao mesmo tempo o governo ten-
ta restringir a Lei de Acesso à Informa-
ção Pública com um pretexto justa-
mente neste momento. Coincidência?
O presidente encontrou energia para,
no momento em que se espera que seja
adulto, responsável e lidere o País, brin-
car com a Rede Globo e ironizar um

médico do quilate de Drauzio Varel-
la, que tem uma vida dedicada à saú-
de pública e aos mais vulneráveis.
Trump não é o único estímulo a que
Bolsonaro volte a calçar o Rider da ir-
responsabilidade. O presidente é sus-
cetível às redes sociais, e ali o que não
falta é idiota clamando que existe “his-
teria” da mídia com uma pandemia
cuja letalidade ainda não é conhecida.
Mais: alguns empresários boçais des-
denharam da pandemia nos últimos
dias ao dizer que um número “x” de
mortes não era pior que um número
“y” de falências ou empregos perdidos.
Não se pode mercadejar com a vi-
da. Isso é uma verdade absoluta para
qualquer país, todas as religiões e in-
distintas ideologias. É o que nos se-
para da barbárie. Transigir com mor-
tes em nome de uma incerta retoma-
da econômica é nos privar, além de
tudo de que já abrimos mão em no-
me da solidariedade, daquilo que
nos é inalienável e não entra em qua-
rentena nunca: nossa humanidade.

E-MAIL: [email protected]
TWITTER: @VERAMAGALHAES
POLITICA.ESTADAO.COM.BR/COLUNAS/VERA-MAGALHAES/

Convite ao genocídio


● De onde deputados
sugerem tirar dinheiro
para destinar ao
combate à pandemia
da covid-

VERBA

INFOGRÁFICO/ESTADÃO

*VALORES REFERENTES A 2019

Salário de
parlamentares

Cartão
corporativo
do Executivo

Jetons

Fundo
eleitoral

Fundo
Partidário

Emendas
parlamentares

R$ 52,
milhões*

R$ 20
milhões

R$ 18
milhões*

R$ 2
bilhões

R$ 841
milhões

R$ 8
bilhões

Camila Turtelli
Patrik Camporez / BRASÍLIA


Pressionados pelas redes so-
ciais, deputados e senadores já
enxergam no combate ao novo
coronavírus a chance de mu-
dar a imagem desgastada do
Congresso. Um grupo de parla-
mentares começou a propor o
remanejamento de gastos pre-
vistos no Orçamento para en-
frentar a pandemia. A lista das
despesas passíveis de corte in-
clui o cartão corporativo do
presidente, os fundos eleitoral
e partidário e até o salário dos
congressistas.
No Senado, líderes de vários


partidos farão uma reunião vir-
tual hoje para tratar do impacto
da covid-19. Um dos temas será
a possibilidade de redução das
remunerações no Legislativo. A
possibilidade de adiamento das
eleições municipais, como suge-
riu o ministro da Saúde, Luiz
Henrique Mandetta, é outro as-
sunto já tratado nos bastidores
do Congresso, embora ainda
não haja consenso.
A proposta de corte de salá-
rios também enfrenta resistên-
cia. Líderes do Centrão não têm
gostado da forma como o presi-
dente da Câmara, Rodrigo Maia
(DEM-RJ), vem conduzindo a
crise, falando sobre medidas
drásticas sem consultá-los. Um
deles disse ao Estado que não
há problema em perder o Fun-
do Eleitoral, desde que as dispu-
tas municipais sejam adiadas.
Maia disse anteontem que to-
dos os Poderes terão de dar sua
contribuição na luta contra o co-
ronavírus, inclusive com corte
de salários. Segundo ele, parti-
dos vão apresentar, nos próxi-
mos dias, uma proposta coleti-
va. “Se precisar tirar da política,
do Judiciário, de quem precisar
tirar, vai tirar porque sabemos
que o gasto para o enfrentamen-
to dessa crise, tanto do ponto
de vista social, econômico e,
principalmente, da estrutura
de saúde pública para garantir
as vidas vai ser na ordem de uns
400 bilhões”, afirmou, em en-
trevista à CNN Brasil.
Atualmente, o salário bruto

de deputados e senadores é de
R$ 33,7 mil. Se for considerada a
soma dos vencimentos de 594
parlamentares, o valor chega a
pouco mais de R$ 20 milhões.
Para Maia, a redução salarial se-
ria “um gesto importante, mas
sem impacto fiscal”. Uma das

ideias em discussão é ressusci-
tar projeto de lei do deputado
Rubens Bueno (Cidadania-SP),
que regulamenta o que é ou não
“penduricalho” e dá ao governo
instrumentos para barrar super-
salários no Executivo, Legislati-
vo e Judiciário. Pelos cálculos

do Congresso, a proposta pro-
vocaria uma economia anual de
pelo menos R$ 1,16 bilhão.
A líder do PSL na Câmara, de-
putada Joice Hasselmann (SP),
vai protocolar um pacote de me-
didas que têm o objetivo de re-
manejar recursos da União para
o combate à crise da covid-19.
As ações miram o corte de salá-
rios em 50% para todos os Pode-
res, fim do pagamento de pen-
duricalhos, jetons e cartão cor-
porativo. Jetons são gratifica-
ções pagas por participações de
servidores em reuniões de con-
selhos e repartições públicas.

Cartão. Em 2019, segundo da-
dos do Portal da Transparência,
do governo federal, foram gas-
tos R$ 52,3 milhões por meio
dos cartões, usados para despe-
sas pessoas de Bolsonaro, de
sua família e pagamentos corri-
queiros da Presidência, como
material de escritório. O depu-
tado Kim Kataguiri (DEM-SP)
propôs um teto para os cartões,
equivalente a 30% da média dos
gastos dos últimos dois anos
em casos de pandemia ou decre-
tação de estado de calamidade
pública. “Não faz sentido gastar
com viagens e hospedagens em
momento de pandemia. São al-
guns milhões que farão a dife-
rença para o Ministério da Saú-
de, ainda mais num momento
em que a equipe econômica con-
ta centavos”, disse Kataguiri.
Kataguiri também pretende
apresentar uma proposta sus-
pendendo os repasses dos cha-
mados jetons, pagos a minis-
tros e servidores federais por
participação em conselhos de
estatais do governo.
Parlamentares sugeriram,
ainda, utilizar na Saúde os R$ 2
bilhões reservados neste ano
no fundo eleitoral, que é desti-
nado a pagar gastos de candida-

tos, como viagens, santinhos e
cabos eleitorais. Partidos como
PT, PP, MDB e PSL já discutem
a possibilidade, mas com algu-
mas condições, como o adia-
mento das eleições municipais.
Outro fundo público que po-
de ter os recursos transferidos
para o combate ao coronavírus
é o partidário. Segundo dados
do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), apenas nos dois primei-
ros meses do ano, as siglas já
receberam R$ 140,3 milhões
dos R$ 841 milhões previstos
em 2020. O dinheiro é usado pa-
ra bancar gastos das legendas,
como aluguel, salário de funcio-
nários, mas também pode ser
destinado para campanhas.
Além dessas propostas, o
Congresso terá cerca de R$ 8 bi-
lhões de verba de emendas par-
lamentares impositivas para
aplicar na Saúde até o fim de
março, segundo o governo.
Com a medida, deputados e se-
nadores poderão redirecionar
emendas individuais e de banca-
das que eram destinadas a ou-
tras finalidades nos municípios
à área da Saúde.
Ontem, deputados e senado-
res de São Paulo decidiram re-
direcionar R$ 219 milhões em
emendas para ações de comba-
te ao coronavírus. O dinheiro
é o total que a bancada tinha
direito neste momento, e os
valores serão pagos ao gover-
no do Estado até 30 de março.
De acordo com o deputado Vi-
nicius Poit (Novo), coordena-
dor da bancada paulista, a
ação foi definida em reunião
virtual da qual participaram
parte do parlamentares que re-
presentam São Paulo. “A crise
é grave, por isso devemos nos
unir e evitar consequências
ainda maiores”, disse Poit. /
COLABORARAM PAULA REVERBEL,
PEDRO VENCESLAU e BIANCA GOMES

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Trump e Bolsonaro flertam
com a irresponsabilidade ao,
de novo, relativizar pandemia

l Gasto


Governadores têm dúvidas e voltam a cobrar o governo. Pág. A6 }


Diante de pandemia,


políticos propõem


corte de verbas


Durante pronunciamento em
rede nacional de TV ontem, o
presidente Jair Bolsonaro cri-
ticou o fechamento de esco-
las e comércio, além de atacar
outras medidas adotadas por
Estados e municípios. Ele ci-
tou a cloroquina como um
possível remédio para o coro-
navírus, embora sua eficácia
não tenha sido confirmada.
Bolsonaro ainda afirmou que
a imprensa é responsável por
disseminar “histeria” sobre a
doença e disse que, por seu
histórico de atleta, não senti-
ria nada caso pegasse o coro-
navírus. “Quando muito, se-
ria acometido de uma gripezi-
nha, ou resfriadinho.”


Moradores de pelo menos no-
ve capitais fizeram um panelaço
durante a fala do presidente,
acompanhados de gritos de “Fo-
ra, Bolsonaro”. Também houve
reações no mundo político. O
presidente do Senado, Davi Alco-
lumbre (DEM-AP), afirmou que
o pronunciamento foi grave e co-
brou uma liderança “séria, res-
ponsável e comprometida com a
vida e a saúde da sua população”.
No começo da fala, Bolsona-
ro citou as primeiras ações do
governo para proteger os cida-
dãos, como o resgate feito aos
brasileiros na China. Disse que
o que precisava ser contido na-
quele momento “eram o pânico
e histeria e, ao mesmo tempo,

traçar a estratégia para salvar vi-
das e evitar o desemprego em
massa”. Segundo ele, essa tare-
fa foi cumprida “quase contra
tudo e contra todos”.
O presidente acusou a im-
prensa de ir na contramão e es-
palhar “a sensação de pavor,
tendo como grande carro-chefe
o grande número de vítimas na
Itália, um país com um grande
número de idosos e com um cli-
ma totalmente diferente do nos-
so”. “Contudo, percebe-se que
de ontem para hoje parte da im-
prensa mudou seu editorial. Pe-
de calma e tranquilidade. Isso é
muito bom. Parabéns imprensa
brasileira, é essencial que o equi-
líbrio e a verdade prevaleçam

entre nós”, disse.
Bolsonaro elogiou as ações
do ministro da Saúde, Luiz
Henrique Mandetta, no plane-
jamento estratégico de esclare-
cimento e atendimento no Sis-
tema Único de Saúde (SUS).
Ao se usar como exemplo, o pre-
sidente disse que, caso ele con-
traísse o coronavírus, ele não
sentiria nenhum efeito dado o
seu histórico de atleta. Ele com-
pletou 65 anos no último sába-
do, faz parte do grupo de risco
da enfermidade e viajou com
ao menos 23 pessoas que rece-
beram diagnóstico positivo pa-
ra a doença. Há duas semanas,
o Estado pede os resultados
dos seus exames para covid-19,

mas não obtém resposta.
De acordo com o presidente,
o coronavírus “em brevemente
passará”. Por isso, ele pregou o
fim de restrições impostas por
estados, mesmo com recomen-
dação contrária do Ministério
da Saúde. “Nossa vida tem que
continuar, os empregos devem
ser mantidos o sustento das fa-
mílias deve ser preservado. De-
vemos voltar à normalidade. Al-
gumas poucas autoridades esta-
duais e municipais devem aban-
donar o conceito de terra arrasa-
da: a proibição de transportes, o
fechamento de comércio e o
confinamento em massa”.
O presidente defendeu tam-
bém a reabertura das escolas,

já que o principal grupo de ris-
co é de pessoas acima de 60
anos. “Então, porque fechar es-
colas? São raros os casos fatais
de pessoas sãs com menos de
40 anos e 90% de nós não tere-
mos qualquer manifestação ca-
so se contaminem”. No pro-
nunciamento, Bolsonaro ain-
da citou estudos feitos pelos
Estados Unidos e no Brasil
com o uso da cloroquina no tra-
tamento da covid-19.
Panelaços contra Bolsonaro
foram registrados em São Pau-
lo, Brasília, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte, Salvador, Recife, Cu-
ritiba, Fortaleza e Porto Alegre.
/ DANIEL GALVÃO, FELIPE FRAZÃO,
GUSTAVO PORTO e PAULA REVERBEL

DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Bolsonaro ataca


medidas restritivas


e é alvo de panelaço


Em pronunciamento na TV, presidente critica imprensa e ações como


fechamento de escolas e comércio; capitais registram novos protestos
São Paulo. Manifestação contra o presidente Jair Bolsonaro na região central da cidade


“Não faz sentido
gastar com viagens e
hospedagens em momento
de pandemia. São alguns
milhões que farão a
diferença para o
Ministério da Saúde,
ainda mais num momento
em que a equipe econômica
conta centavos.”
Kim Kataguiri

DEPUTADO (DEM-SP)


Parlamentares sugerem


direcionar para saúde


dinheiro que hoje paga


cartões corporativos,


fundos e até seus salários


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