O Estado de São Paulo (2020-03-25)

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H8 Especial QUARTA-FEIRA, 25 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Caderno 2


Roberto DaMatta


Guilherme Sobota


Em 2014, o célebre saxofonista
camaronês Manu Dibango, as-
tro do jazz, participou de uma
gravação com vários artistas
africanos do single Plus Jamais
Ebola
(“Nunca Mais Ebola”), pa-
ra levantar fundos contra a epi-
demia do vírus. É triste então
noticiar que o músico morreu
ontem, após contrair o novo co-
ronavírus.
O compositor de Soul Makos-
sa
, uma das músicas mais in-
fluentes dos anos 1970, é o pri-
meiro artista de nível global que
morre por causa da covid-19.


“Morreu durante a madruga-
da, em um hospital da região de
Paris”, declarou à agência AFP
Thierry Durepaire, represen-
tante e gerente das obras musi-
cais do artista. Uma homena-
gem será organizada posterior-
mente, quando possível, afir-
mou a página do músico.
Soul Makossa , a música que o
tornou famoso em todo o plane-
ta, foi difundida por DJs de No-
va York a partir de um álbum
lançado por ocasião de um cam-
peonato de futebol africano.
Apesar de ser nomeada com o
ritmo típico de Camarões, a
makossa, a música se tornou
um marco do funk internacio-
nal e ajudou a estabelecer o que
hoje se conhece por “world mu-

sic”. Não é por acaso que a can-
ção guarda um eco da bossa Vil-
la Grazia (1963), de João Dona-
to, que depois virou Bananeira
com a letra de Gilberto Gil.
Soul Makossa também espa-
lhou a influência de Manu Di-
bango na música americana por
meio de Michael Jackson, que
usou um trecho do refrão em
Wanna Be Startin’ Somethin’ , do
disco Thriller (1982). Em 2009,

Rihanna sampleou o trecho em
Don’t Stop the Music , o que levou
Dibango a processar os dois,
Jackson e Rihanna – um acerto
extrajudicial resolveu as coisas.
Kanye West ( Lost in the World ),
Jay Z ( Face Off ) e A Tribe Called
Quest ( Rhythm ) são alguns dos
artistas que também usaram
trechos remodelados da canção
em suas criações.
Dibango nasceu em 1933 em

Douala, Camarões, filho de um
funcionário público, da etnia ya-
bassi, e de uma estilista e profes-
sora, da etnia duala. A miscige-
nação, olhada com desconfian-
ça pelos mais velhos, plantou
nele o interesse pela fusão de
culturas, como conta em sua au-
tobiografia de 1994. Foi na igre-
ja (protestante) de sua infância
que ocorreu o primeiro contato
com a música, e desde a adoles-

cência ele se dedicou ao ofício
que o faria viajar pelos continen-
tes levando seu saxofone afilia-
do às improvisações do jazz. Na
Bélgica e na França, fez turnês
com Dick Rivers e Nino Ferrer
nos anos 1960, e nas décadas se-
guintes erigiu uma carreira solo
que o fez colaborar com artistas
como Fela Kuti, Herbie Han-
cock, Bill Laswell, Bernie Wor-
rell, Ladysmith Black Mamba-
zo, King Sunny Adé, Don
Cherry e Sly and Robbie.
Politicamente ativo, teve pa-
pel importante na regulamenta-
ção da atividade artística no Ca-
marões, e em 2004 foi aponta-
do pela Unesco como Artista Pe-
la Paz, título compartilhado
com, entre outros nomes da
música global, Gilberto Gil.
Em 2015, ele foi nomeado re-
presentante da Organização In-
ternacional da Francofonia (OI-
F), entidade que representa 57
países que falam o idioma fran-
cês, para a Olimpíada do Rio. Na
cerimônia de indicação, na capi-
tal fluminense, Dibango partici-
pou de uma homenagem a víti-
mas de atentados terroristas na
França, Nigéria, Líbano e Mali.
“Pretendem nos destituir de tu-
do o que nós conquistamos,
mas isso só faz com que reforce-
mos ainda mais os vínculos que
nos unem uns aos outros”, disse
Dibango na ocasião, após um mi-
nuto de silêncio. “O silêncio elo-
quente que acabamos de com-
partilhar demonstra o engaja-
mento e a afirmação que todos
temos sobre nosso projeto de so-
ciedade.” / COM AGÊNCIAS

Sem intervalo


l]


MANU DIBANGO H 1933 = 2020


Eliana Silva de Souza


Estreia nesta quarta-feira, 25,
às 19h30, no Canal Brasil, a
série Favela Gay – Periferias
LGBTQI+
, que é dirigida por
Rodrigo Felha. Na verdade, a
obra dá continuidade ao docu-
mentário do cineasta, que foi
lançado em 2014 e que mostra-
va o cotidiano de homosse-
xuais de favelas do Rio de Ja-
neiro. Agora, ele amplia seu
raio de ação, expandindo sua
pesquisa para outras cidades
do País, conseguindo retratar,
em dez episódios, o cotidiano
dessa população.
Para o diretor, a importân-
cia de fazer um documentário,
no caso, uma série com esse
tema é o de dar visibilidade a
essas pessoas, a seus “senti-
mentos, conquistas e como lu-
tam minuto a minuto”.


Muitos são os personagens
retratados pela série, com
suas histórias de vida, em sua
maioria de luta por reconheci-
mento, por suas escolhas pes-
soais, e por suas orientações
sexuais. “Todas ( personagens )
são impactantes e singulares,
mas vou citar a história da baia-
na Thiffany Odara, uma mu-
lher trans com formação aca-
dêmica e mãe de santo, que te-
ve muitas dificuldades em as-
sumir o terreiro que a avó dei-
xou como legado”, diz Felha.
Para ele, a importância de
sua obra se dá “ao mostrar es-
sas pessoas como são em sua
essência”, afirma o diretor, en-
fatizando que, a partir daí, a
afetividade delas se revela.

MORRE O


MESTRE DO


SAX AFRICANO


ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

V


iver o isolamento obrigató-
rio e racional: uma medida
crítica contra um vírus mor-
tal é, no mínimo, reitero, um duríssi-
mo desafio cultural, pois contesta
“hábitos” do “estar perto” ou “jun-
to” e do “visitar” tidos e havidos
como práticas “naturais”. Afinal,
conforme estamos vendo e ainda ve-
remos com mais força, a casa como
afirmo no meu trabalho é a única
instituição que funciona no Brasil.
As aparições em comissão (tudo
no governo é em comissão porque
um pode pôr o erro no outro) presi-
didas pelo presidente Bolsonaro
só fazem piorar o que já é uma cala-
midade social. O próprio governo
precisa aprender a usar as suas
máscaras e já deveria estar provi-
denciando leitos para as vítimas
da pandemia.
Para quem roga a praga de que o
Brasil daria errado porque foi as-
sim desenhado, tudo se confirma.
“Eu bem que dizia...”. Só que o

momento não é brasileiro, é também
mundial. Contudo, para confirmar a
praga do “dar errado”, temos o clã
dos Bolsonaros que não falha em en-
gendrar crises.
*
Não deixa de ser curioso que países
europeus que inventaram a guerra
moderna, com suas regras que tor-
nam o matar algo não só legítimo,
mas patriótico – produtor de promo-
ções e medalhas –, tenham falado des-
sa peste como uma “guerra”. Não há
dúvida que há luta, mas sua natureza
é bem diversa. Guerreamos por mer-
cado, território e honra ofendida
num espaço exterior ao nosso corpo
e contra pessoas que se diferenciam
de nós somente pelo uniforme. Vira-
ram inimigos perigosos, mas têm in-
tenções e seus movimentos são pre-
vistos e planejados.
Mas esse desgarrado vírus tem, co-
mo as bruxarias, uma autoria inespe-
rada. Num sistema marcado pela
santidade da propriedade privada,

ninguém sabe quem é o dono do ví-
rus. Quem é o seu vil proprietário e
responsável? Dizem que é coisa do
demônio e não seria difícil, usando
o mesmo argumento, dizer que é um
castigo divino.
*
Se o caos é aquilo que nenhum sis-
tema social pode aceitar, como lidar


  • neste mundo no qual pensamos sa-
    ber tudo – com essa cruel surpresa
    sem apelar para o idioma moralista,
    cujo risco é promover uma pandemia
    de idiotices, como é o caso das teo-
    rias conspiratórias, típicas de socie-
    dades fortemente aristocráticas e
    personalizadas nas quais o rei, os ri-
    cos, os bem-sucedidos e os conserva-
    dores e comunistas seriam os respon-
    sáveis por suas pragas.
    Ora, transformar a peste em praga é
    um assunto sociológico importante
    porque a peste é aleatória e a praga,
    sendo rogada, é intencional.

    • O momento da peste produz refe-




rências óbvias ao livro de Albert Ca-
mus, A Peste , cuja leitura é escassa por-
que hoje os celulares – esses avatares
da ignorância das letras – bloqueiam
comodamente qualquer esforço
maior de entendimento pela escrita. A
tela impessoal não se abre como as
páginas de um livro as quais, ao contrá-
rio, precisam de luz e se deixam pos-
suir pelas mãos de quem nelas entra e
vira leitor. As telas planas e lisas que
não rasgam, mas quebram, são duras
como as de uma televisão. Mas não
são abrangentes como as de um cine-
ma ou frágeis como as de um teatro. O
celular permite uma solidão relativa e
esse estado de espírito dificulta a con-
centração requerida pela leitura que
exige solidão e isolamento.
As bibliotecas pediam um “silên-
cio” que elimina a falação ou a grita-
ria como pragas. Como algaravia
que promove um pobre entendimen-
to pelo excesso de comunicação.
Num celular, você tem a (des)vanta-
gem de estar falando e, ao mesmo
tempo, recebendo mensagens que
dividem sua atenção.
*
Em plena quarentena, revejo um li-
vro que me marcou profundamente: A

Montanha Mágica , publicado em
1924 e escrito por Thomas Mann.
Eis uma novela que, pelo poder de
sugestão do seu título, é tão falada
quanto pouco lida. Revejo suas pas-
sagens porque ele fala da ironia da
visita de um jovem engenheiro, o
herói Hans Castorp, a seu primo Joa-
chim em um sanatório de tuberculo-
sos isolados precisamente pela pos-
sibilidade de contágio de uma doen-
ça então incurável. Tempo, espaço e
diferenças são destacados. Hans
pretende ficar 7 dias, mas se desco-
bre igualmente doente e termina
permanecendo no isolamento cole-
tivo por 7 anos! Ao final de seu en-
tendimento de que a doença resulta
de quando o corpo fala mais alto do
que a alma e, após anos de aprendi-
zado ideológico com Settembrini,
Naphta e Peperkorn – e de amor
com Clawdia –, ele deixa a monta-
nha fora do mundo para entrar na
cruel realidade de outra praga: a
guerra. Essa peste para a qual até
hoje não temos remédio ou cura.
*
Em profundo isolamento, escre-
vo essa crônica me acomodando
aos desenganos do mundo.

Moby Dick
(EUA, 1956.) Dir. e roteiro (com Ray
Bradbury) de John Huston, fotografia de
Oswald Morris, com Gregory Peck, Ri-
chard Basehart, Orson Welles.

Luiz Carlos Merten

A busca do Capitão Ahab pela
baleia branca que arrancou sua
perna. O próprio Huston conside-
rava a adaptação do romance de
Herman Melville seu filme mais
difícil, como se Deus estivesse
contra ele. E dizia que fazia senti-
do, pois o filme, como o livro, é
sacrílego. Grandes cenas, belíssi-
ma fotografia. E dá para compa-
rar com No Coração da Noite , de
Ron Howard, sobre o episódio
real que inspirou o livro.
TEL. CULT, 22H. COL., 116 MIN.

Filmes na TV


Série ‘Favela


Gay’ estreia


hoje no


Canal Brasil


Parabéns, Sir!
O Canal Bis faz homenagem
a Elton John, que completa
73 anos nesta quarta, 25.
Para comemorar a data, os
fãs poderão conferir o docu-
mentário The Nation's Favori-
te Song , que será exibido às
22h. Cantor, pianista, compo-
sitor e produtor britânico,
que já soma mais de 50
anos de carreira, é um dos
maiores nomes do pop, reco-
nhecido e reverenciado no
mundo. Em 1998, tornou-se
cavaleiro da rainha, ganhan-
do o título de Sir. Neste fil-
me, surgem alguns fãs, co-
mo Chris Martin, Ed Shee-
ran, Sting, Rod Stewart e
Boy George, que fazem um
ranking com as 20 melhores
músicas já gravadas pelo
músico. O documentário tam-
bém estará disponível no
aplicado Bis Play,

Show de bola
O ex-jogador mineiro Dirceu
Lopes é o destaque do episó-
dio da série 10x10 , que vai
ao ar nesta quarta, 25, às
19h30, na TV Brasil. Nome
que integra a história do fute-

bol brasileiro, o meia, conhe-
cido como Príncipe, somou
quase 600 jogos pelo Cruzei-
ro, que defendeu por 12 anos
entre 1964 e 1977, com a
marca aproximadamente de
200 gols, tendo ao seu lado
no gramado Tostão. Nessa
produção, é possível conferir
imagens raras do Canal 100.
A reapresentação vai ao ar
na quinta-feira, 26, no mes-
mo horário.

Nova heroína
A HBO começa a exibir, a par-
tir do dia 17 de abril, às 22h, a
série Batwoman. Ao todo se-
rão 22 episódios, que também
estarão disponíveis no HBO
GO. A heroína chega à sombria
Gotham com o objetivo de fa-
zer justiça e de combater as
sangrentas gangues que se
apropriaram da cidade, depois
do desaparecimento de Bat-
man. Kate Kane (Ruby Rose) é
uma lutadora treinada pronta
para acabar com o ressurgi-
mento do crime na cidade. No
entanto, além de ter de lutar
por um mundo melhor, ela te-
rá de enfrentar e superar os
próprios demônios.

DESTAQUE
WARNER BROS.

O Fiel Camareiro/
The Dresser
(Inglaterra, 2015.) Dir. de Richard Eyre,
roteiro de Ronald Harwood, com Anthony
Hopkins, Ian McKellen, Emily Watson,
Edward Fox.

Versão, para TV, da peça que já
havia virado um grande filme de
Peter Yates, indicado para Oscars
em 1983. A relação de poder (do-
minação?) entre um famoso ator
shakespeariano e seu camareiro,
na quadro da 2ª Guerra. As atua-
ções são excepcionais.
SONY, 16H40. COLORIDO, 105 MIN.

Espiã Vermelha/
Red Joan
(Inglaterra, 2018.) Dir. de Trevor Nunn, rotei-
ro de Lindsay Shepero, com Judi Dench,
Sophie Cookson, Stephen Campbell Moore.

A história da vovó vermelha. Em
flash-back, e ao ser acusada de
espionagem, Judi Dench lembra o
credo pacifista que a levou, quando
jovem, a repassar segredos da
bomba atômica para os soviéticos
(para equilibrar a corrida armamen-
tista entre as superpotências). A
atriz é maior do que o filme.
TEL.PREMIUM, 20H05. COL., 98 MIN.

Manu Dibango. De parcerias com Fela Kuti a samples em ‘Thriller’, uma presença global

JAZZ


Pragas, pestes e quarentena


O músico, de 86 anos, estava internado em


um hospital francês após contrair coronavírus


EMMANUEL FRADIN/REUTERS

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