O Estado de São Paulo (2020-03-25)

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 25 DE MARÇO DE 2020 Especial H9


LUTO E VÍRUS NA


ESCOLA DE KOBE


Jeré Longman
THE NEW YORK TIMES
ARDMORE, PENSILVÂNIA


No final de janeiro, as pessoas
de luto colocaram flores, cami-
setas e tênis do lado de fora do
ginásio da Lower Merion High
School em Ardmore, no Estado
norte-americano da Pensilvâ-
nia. A homenagem era dedicada
ao ex-aluno mais famoso da es-
cola, Kobe Bryan.
Agora, outra ausência preva-
lece na Lower Merion. Os esta-
cionamentos e as salas de aula
estão vazios, assim como o giná-
sio, os campos de futebol e os
ônibus, que permanecem em
quarentena atrás de uma cerca.
Todas as escolas da Pensilvânia
foram obrigadas a fechar as por-
tas para mitigar a disseminação
do novo coronavírus.
O torneio estadual de basque-
te foi suspenso, com a Lower
Merion, no subúrbio da Filadél-
fia, presa no limbo no segundo
turno. Seus treinadores e joga-
dores não têm ideia de quando
ou se as salas de aula e o ginásio
reabrirão nesta primavera.
Demetrius Lilley, 17 anos, pi-
vô com mais de dois metros de
altura, deixou seus tênis de bas-
quete na escola e não pode recu-
perá-los durante o período de
isolamento. Ele corre e anda de
bicicleta todos os dias para ten-
tar se manter em forma.
“Perdemos Kobe, que era nos-
so Michael Jordan (ex-jogador
da NBA, seis vezes campeão


com o Chicago Bulls e conside-
rado por muitos especialistas
como o maior jogador de bas-
quete de todos os tempos). E
agora provavelmente perde-
mos nossa temporada. É horrí-
vel”, disse Lilley.
Talvez nenhuma outra escola
tenha sido destruída da mesma
maneira pela tragédia, a triste-
za e a incerteza perturbadora
causadas pelas duas ocorrên-
cias que mais abalaram o mun-
do dos esportes este ano: a mor-
te prematura de uma estrela
mundial e a pandemia global.
“Tudo parece pesado aqui”,
disse Doug Young, assistente-
técnico de basquete da Lower
Merion e ex-companheiro de
equipe de Bryant, que morreu
aos 41 anos de idade com a filha
de 13 anos, Gianna, e outras sete
pessoas em um acidente de heli-
cóptero nos arredores de Los
Angeles em 26 de janeiro.
“Suponho que esteja difícil
em todos os lugares”, conti-
nuou Young, 42 anos, falando
por telefone. “Mas é um pouco
diferente aqui.”
Gregg Downer está em sua
30.ª temporada como treinador
de basquete na Lower Merion.
Ele treinou Bryant para um cam-
peonato estadual em 1996 e con-
quistou dois títulos desde en-
tão. Este é o momento que ele
temia. Nenhum som de bolas
quicando. O vazio de um dia em
que a escola está fechada e a
proibição da prática de espor-
tes ali. Quando não há oponen-

tes para vigiar, nenhum vídeo
para exibir, nenhuma aula de
saúde e educação física para
dar. Nenhuma rotina anterior
possível para afastar sua mente
da perda do melhor jogador que
já passou por suas mãos, que se
tornou um amigo íntimo.
“Sinto como se houvesse um
buraco no coração que possivel-
mente estará lá para sempre”,
disse Downer, 57 anos, durante
uma série de
entrevistas
por telefone.
O fim da
dor, ele disse,
parece mais
uma “esperan-
ça terapêuti-
ca” do que
uma realidade. Em vez disso,
disse Downer, há “apenas uma
escuridão geral na minha vida
enquanto tento descobrir co-
mo lidar com isso”.
Ele passa os dias ajudando
sua filha de 7 anos com seus es-
tudos online e fazendo longos
passeios pela natureza. Ele rece-
beu uma sugestão de Brett
Brown, o técnico do Philadelp-
hia 76ers cujo filho, Sam, é alu-
no do 9.º ano na Lower Merion.
Brown aconselhou a equipe do
Sixers a montar uma rotina pa-
ra o seu dia.
Então Downer se comunica
com seus jogadores por e-mail.
Ele os instrui a ficar atentos às
aulas online, que começaram
na quarta-feira, a fazer a lição
de casa, lavar as mãos e seguir

outros protocolos sobre como
permanecer seguro em uma
pandemia. Além de se exercitar,
ler um livro, assistir a um filme
que nunca viu e ser gentil uns
com os outros. “Encontre algo
que faça os dias parecerem os
mesmos”, disse Downer. É uma
mensagem para seus jogadores
e para si mesmo.
Parece improvável que o tor-
neio estadual de basquete seja
retomado em breve, isso, se
houver ainda. O Condado de
Montgomery, onde está locali-
zado a Lower Merion, é um for-
te foco de coronavírus na Pensil-
vânia. O governador Tom Wolf
ordenou que as escolas do Esta-
do fossem fechadas por pelo me-
nos duas semanas e que todos
os negócios que não são essen-
ciais para a população permane-
cessem de portas fechadas.
“Não consigo imaginar um ce-
nário em que eles possam jogar
em meio a tudo isso”, disse
Downer. “Como você pode co-
locá-los em perigo?”
No entanto, os adolescentes
podem se sentir invencíveis. Os
Aces esperam poder jogar nova-
mente. Uma equipe jovem que
perdeu 12 jogadores do terceiro
ano do Ensino Médio há um ano
se uniu no final desta tempora-
da. Seu lema
havia se torna-
do: apoiar uns
aos outros. Al-
guns jogado-
res conti-
nuam tentan-
do lançar bo-
las nas cestas
de basquete de suas casas. Ou-
tros assistem repetições dos jo-
gos da atual temporada e das
passadas. Em conjunto, os joga-
dores fizeram um anúncio de
serviço público sobre como
manter a higiene adequada du-
rante a pandemia e o publica-
ram no Instagram.
“Estamos apenas tentando
permanecer positivos”, disse Ja-
mes Simples III, 17 anos, guarda
e líder da equipe.
Ainda assim, ele e seus cole-
gas de equipe ficaram impres-
sionados com a forma como a
morte de Bryant devastou seus
treinadores, que o conheceram
pessoalmente. Homens fortes
desmoronaram, disse Simples.
“Isso foi difícil de ver”, afirmou.
E agora a frustração começou

quando a temporada foi inter-
rompida por uma pandemia. Pa-
ra os alunos do terceiro e últi-
mo ano, isso é ainda mais dolo-
roso, pois eles talvez não pos-
sam usar o uniforme da equipe
novamente. As esperanças de jo-
gar na faculdade ficaram incer-
tas agora que a NCAA, a Liga
Universitária dos EUA, inter-
rompeu o recrutamento pes-
soal até 15 de abril. “Estou
aprendendo a ter paciência”,
disse Simples. “Algumas coisas
estão fora de seu controle.”
A dor continua. E como o co-
ronavírus cancelou as aulas e
suspendeu o basquete, as coi-
sas não são mais fáceis para
Downer. E ele teme que a situa-
ção possa piorar ainda mais.
Por isso, tenta encontrar uma
rotina familiar. Ele mantém
Bryant presente por meio das
histórias que conta.
Bryant uma vez assinou tan-
tos autógrafos em um torneio
do Ensino Médio na Carolina
do Sul, que machucou o pulso.
Ele usava seu short da Lower
Merion por baixo do short do
Lakers. Ele apareceu na escola
quando estava na cidade com o
Los Angeles Lakers para jogar
contra o Sixers. E trocou ideias
de estratégia por e-mail com
Downer sobre a guarda do Bos-
ton Celtics durante as finais da
NBA de 2010, quando Bryant
foi nomeado o jogador mais va-
lioso da série de sete jogos.
Bryant ainda falava às vezes
com os Aces pelo viva-voz, dire-
to do vestiário, antes de jogos
importantes. No outono de
2018, ele recebeu a equipe da
Lower Merion, deu ingressos
aos jogadores para ver uma par-
tida do Lakers e, depois, levou-
os para almoçar em um restau-
rante com vista para o Oceano
Pacífico. Quando a escola preci-
sou de um benfeitor para refor-
mar seu ginásio, ele fez um che-
que de US$ 500.000 e disse sim-
plesmente: “Feito”.
“Ele era nosso batimento car-
díaco”, disse Downer. “Ele era
tudo o que aspirávamos ser nos
últimos 30 anos. Ficamos mui-
to orgulhosos em dizer que o
ajudamos em sua jornada. Vi-
vendo sua vida adulta em
Hollywood, ele poderia facil-
mente ter esquecido a Lower
Merion. Mas isso nunca aconte-
ceu.” / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

TORNEIO ESTADUAL DE
BASQUETE FOI SUSPENSO
E NINGUÉM SABE
QUANDO RETORNA

1980. Jogos de Moscou
Se a Copa na Rússia foi reple-
ta de significados, imagine
os Jogos Olímpicos de 1980
em Moscou, no auge da
Guerra Fria. Tudo do país
seria descortinado. Mas cou-
be aos Jogos de Moscou
uma das cenas mais doces
da disputa idealizada pelo
Barão de Coubertin. O cho-
ro da mascote Misha no en-
cerramento se eternizou e
pegou a todos no estádio
olímpico de Fisht de surpre-
sa. Havia 40 mil pessoas na
arena e milhares diante da
TV. Misha era um urso, des-
ses que as crianças abraçam
e levam para a cama. No mo-
saico trabalhado pelos rus-
sos, ele dava adeus aos Jo-
gos e anunciava a próxima
edição. A grandiosidade do
gesto tornou mais sensível o
olhar para um país fechado.
1984. Jogos de LA
A suíça Gabrielle Andersen
entrou para a história dos
Jogos sem ter ganho meda-
lha. Foi em Los Angeles. A
cena consagrou o espírito
olímpico. Andersen tinha 39
anos. Ela entrou no estádio
olímpico para a chegada da
maratona cambaleando, de-
sidratada, entre a queda imi-
nente e a necessidade sub-
consciente de cruzar a linha.
O público se levantou. Era a
última a checar. Um boné
torto cobria sua testa. Torto
como todo o seu corpo, que
insistia, passo a passo, em
não cair. E assim foi. Até ser
amparada pelos médicos
que a perseguiam nos me-
tros derradeiros. Andersen
foi ovacionada. Contou de-
pois que começou a correr
tarde, aos 25 anos. E teve
um dia difícil, mas eterno.


VAZIOS


ARQUIVO/ESTADÃO

2000. Jogos de Sidney
Eric Moussambani nunca
foi um nadador em Guiné
Equatorial. Quando ia à
praia, ficava no raso. Nunca
soube onde estava com a
cabeça quando decidiu se
voluntariar para a Olimpía-
da de Sidney. Ouviu o cha-
mado e apareceu. Seu país
havia sido convidado pelo
COI a participar dos Jogos.
Ele e mais uma foram os úni-
cos a se dispor. Em quatro
meses, aprendeu a nadar.
Nas eliminatórias dos 100 m
livre, seus dois outros con-
correntes queimaram larga-
da e foram desclassificados.
Ele poderia desistir. Mas pre-
feriu fazer o que se propôs.
Encarou a piscina como nun-
ca antes. Demorou 1m52s72
para completar a prova, bra-
çada a braçada, com vonta-
de louca de parar. Foi até o
fim e fez história nos Jogos.


l Sem os jogos em 2020, nos
resta lembrar bons momentos

Sociedade*


USA TODAY - 10/4/2016

OLIMPÍADA ADIADA

DYLAN MARTINEZ/ REUTERS - 20/9/2000

Silêncio. Kobe Bryant em ação com a camisa dos Los Angeles Lakers: astro deu os primeiros passos no basquete no Lower Merion High School, na Pensilvânia


Colégio onde astro, morto em janeiro, começou a jogar é


esvaziado pela covid-19, aumentando o drama da comunidade


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