O Estado de São Paulo (2020-03-25)

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H10 Especial QUARTA-FEIRA, 25 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Caderno 2


Leandro Karnal


l]


Julio Maria


Guilherme Arantes saiu do Bra-
sil em direção à Espanha com
um projeto de isolamento e revi-
são pessoal para durar seis me-
ses. Ele estava deprimido depois
de um ano que julgava perdido,
se sentindo deslocado, “sem lu-
gar de fala”, como disse em en-
trevista à série Na Variant no fi-
nal de 2019. “Não basta mais ser,
é preciso significar alguma coi-
sa”, afirmou. “E eu, com esse so-
brenome, as pessoas pensam
que sou de família nobre.”
Guilherme, de 66 anos, embar-
cou com a mulher, Marcia, para
se juntar aos pouco mais de 58
mil habitantes de Ávila, uma ci-
dade varrida pela peste negra na
Idade Média, levando livros, dis-
cos e ideias. Chegou no Natal,
pegou neve com as mãos, fez pas-
seios, visitou a região da Galícia
e conheceu a origem de seus an-
tepassados na cidade de Arantei,
na província de Pontevedra.
Mas a Espanha viu de perto a
onda se formar. Depois da Chi-
na, a Itália começou a registrar
as mortes pelo novo coronaví-
rus e a vida começou a mudar. As
guardas metropolitana e nacio-


nal e as Forças Armadas foram
para as ruas, os produtos dos su-
permercados escassearam e a or-
dem veio logo: não sair de casa. A
Espanha chegou, até a tarde de
ontem, a 6.600 novos casos de
coronavírus, com 2.696 mortos
pela doença. E o mundo mudou.
“A gente acompanhava o que
acontecia na Itália com certo dis-
tanciamento. Agora, há um mês,
veio o pânico. Há três semanas,
sumiram o papel higiênico e o
álcool em gel das prateleiras,
mas passou essa fase e as pes-
soas deixaram de comprar em
quantidades tão egoísticas. O go-
verno agiu com muita seriedade
e passou confiança às pessoas.”
Sua vida hoje é em um confina-
mento diferente daquele que
imaginou. “As forças policiais es-
tão nas estradas, não podemos
andar de carro nem de trem. Há
um mercadinho na frente de ca-
sa apenas para pão e alguma
emergência.” Ele diz estar triste.
Chora ao saber das notícias do
Brasil e do “infantilismo” de al-
guns brasileiros que dizem que o
coronavírus se trata de uma in-
venção ideológica. Ao ver repor-
tagens sobre a situação em fave-
las do Rio, como a do Complexo
do Alemão, sem água, olha o País
como uma aberração. “É visto
aqui como uma situação de tra-
gédia internacional. Vejo de lon-

ge uma terra enlouquecida.”

Tristeza. Guilherme Arantes
conta que tem uma rotina casei-
ra. Consegue ler bastante, sobre-
tudo biografias como a do colu-
nista social Zózimo, escrita por
Joaquim Ferreira dos Santos, e
estudar piano até seis horas por
dia, incluindo exercícios de téc-
nica e de conceitos da música
barroca. Compor tem sido algo
mais complicado. Ele passa por
um “bloqueio da alma”. “Não dá
para ser criativo”, diz. “É muita

tristeza, não dá mais para se ins-
pirar com as belezas do mundo.
Estou em um estado de náusea
com tantas mortes. Logo deve-
mos passar a Itália em número
de mortos. É um processo mórbi-
do. Só consigo mesmo fazer exer-
cícios ao piano.”
Se prefere estar na Espanha
neste momento? Guilherme
não considera um erro estar em
outro país, até porque seus pla-
nos eram mesmo o isolamento.
“Era isso, ficar aqui por seis me-
ses estudando música barroca,

dissecando o barroco no com-
putador, entendendo sua estru-
tura. Vim com esse objetivo e
continuo com ele.” Se haverá o
momento em que o ócio depres-
sivo se transformará em criati-
vo? “Ainda não. Vai surgir mui-
ta coisa nesse momento, muita
música, mas será tudo muito su-
perficial. O isolamento ainda
está com esse ‘hype’, todo mun-
do opinando sobre tudo, mas é
o começo. Primeiro será a assi-
milação do espírito. O saldo fi-
nal será soturno e, aí sim, have-
rá inspiração. Mas, por enquan-
to, tudo o que surgir será muito
superficial.”

Outros confinados. O blo-
queio do fluxo criativo tem fei-
to muitos artistas da música bra-
sileira em confinamento rever
suas obras. Gilberto Gil, por
exemplo, fica em casa com a fa-
mília no Rio.
Um post publicado na segun-
da-feira trouxe um material va-
lioso, em que ele aparece redes-
cobrindo, com a ajuda da filha
Nara, a letra de uma canção de
1976 chamada Academia , atual
por dizer “academia, a cada epi-
demia, a cada épica tragicômica
mania de abusar o mudo, absur-
do e cego querer que o mudo reci-
te poesia.” Gil nunca gravou esta
música. Aliás, se esqueceu com-
pletamente dela, só tem a letra.
Caetano Veloso, segundo a
mulher, Paula Lavigne, segue
em casa aproveitando o ócio pa-
ra repassar as novas canções que
já tem e criar outras, focando em
seu próximo disco. Ele não faz
uma obra inédita desde Abraça-
ço , de 2012.
Outro baiano e tropicalista,
Tom Zé, de 83 anos, conta que o
diretor de teatro Felipe Hirsch
lhe deu trabalho o bastante para
não deixar a cabeça ficar vazia
nesses dias de confinamento.
Felipe quer que Tom compo-
nha as músicas de seu próximo
espetáculo.
“Ele escolheu dez do meu re-
pertório e me deu mais cinco
ideias para fazer novas. E eu es-
tou aqui em casa nisso, de ma-
nhã, tarde e noite, trabalhando
feito uma onça. Às vezes, parece
que estou mais lento para conse-
guir compor, mas o fato é que
tenho grande entusiasmo. Mi-
nha mulher diz que nunca me
viu trabalhar tanto.”

ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

l Bloqueio criativo

Por muitos momentos, a porção
sensível e criativa da humanida-
de soube reverter o isolamento
em grandes obras musicais. Por
motivos diferentes, artistas, re-
fugiados por vontade própria ou
não, precisaram de confinamen-
to para entrar em processos cria-
tivos com começo, meio e fim.
O rock and roll costuma gla-
mourizar essa situação. No final


dos anos 60, as bandas viveram
a moda de alugar casas longe
dos centros urbanos para com-
por álbuns inteiros. Os canaden-
ses do The Band fizeram isso lo-
go no início para lançar seu dis-
co de estreia, em 1968. Aluga-
ram uma bela casa de madeira
pintada de rosa em West Sauger-
ties e lá gravaram músicas de
Bob Dylan e criaram obras mo-

numentais como The Weight,
que fazem parte do álbum Music
From Big Pink.
Os Stones viveram um isola-
mento mais, digamos, gaiato. Pa-
ra fugir do imposto de renda do
Reino Unido, que já rugia à por-
ta de suas casas, eles se autoexi-
laram na França para fazer as
músicas de Exile on Main Street ,
com imortalidades como Tum-

bling Dice e Sweet Virginia. En-
quanto Mick Jagger ficou em Pa-
ris com a namorada, Bianca Jag-
ger, Keith Richards alugou uma
mansão usada pelos nazistas du-
rante a Segunda Guerra Mun-
dial chamada Nellcôte, em um
vilarejo perto de Nice. Os ou-
tros integrantes foram para o
Sul. O álbum foi gravado em
Nellcôte, com um caminhão de

gravação móvel da banda.
Em outros tempos, e por ou-
tras razões, lá estavam mais ar-
tistas a sorver a inspiração de
seus confinamentos. Os rap-
pers Afro X e Dexter, que divi-
diam a mesma sela 509E do ex-
tinto Presídio do Carandiru, em
São Paulo, por assalto à mão ar-
mada, compuseram as músicas
do disco Provérbios 13 , lançado
em 2001, quando ainda estavam
presos. O disco, com rappers co-
mo Mano Brown e MV Bill envol-
vidos, foi considerado o melhor

de rap daquele ano.
Depois de serem presos em
1969 pela ditadura, Gil e Caeta-
no se exilaram em Londres. Lá,
enquanto Gil saía pelas noites,
Caetano isolava-se em casa. Co-
mo um confinado dentro do exí-
lio, entristeceu-se a ponto de fa-
zer nascer com o violão nas
mãos a canção London, London.
Gil, antes da partida, já havia fei-
to três no cárcere militar: Futurí-
vel , Cérebro Eletrônico e Vitrines ,
além de uma quarta da qual se
esqueceu. / J.M.

D


omingo da anunciação: fal-
tam nove meses para o Na-
tal. Para muitos cristãos, ho-
je é a data em que o Arcanjo Gabriel
apareceu a uma jovem em Nazaré e
trouxe uma ideia revolucionária: ela
seria mãe por força do Espírito San-
to. A adolescente terminaria o dia
carregando o aguardado Messias
prometido pelas escrituras.
Pela tradição, era fim da tarde,
por volta das 18 horas. Os textos das
escrituras apresentam detalhes dis-
tintos. O Evangelho de Mateus ape-
nas se ocupa das dúvidas de José.
Sua noiva engravidara. Como proce-
der? Os avisos dos anjos se voltam a
ele e suas angústias. José é orienta-
do dormindo. Sonha que tudo esta-
va de acordo com os planos de Deus.
O Jesus do Evangelho de Marcos, o
mais antigo de todos, já surge com
30 anos. Nada sabemos da infância
por ele. O último Evangelho na or-
dem e no tempo, João, começa nar-
rando a origem de tudo em prólogo
teológico. Lá, o Verbo sempre exis-
tiu e se fez carne, referência indireta
ao dia de hoje. Porém, ao entrar na

narrativa da vida do filho de Maria, já o
encontramos como ser poderoso. Lu-
cas, meu preferido, dedica-se a deta-
lhes sublimes. Sem o terceiro evange-
lista, a narrativa da infância e do Natal
seria empobrecida. Lucas, padroeiro
de médicos e de pintores, fala da sauda-
ção do Arcanjo em frase repetida milha-
res de vezes entre católicos: Ave, cheia
de graça. Ele conta que a jovem conce-
berá um menino. Mais: o enviado infor-
ma que a prima Isabel, que fora chama-
da de estéril, está grávida de seis me-
ses. A novidade familiar vem por men-
sageiro celeste.
A Maria de Lucas é quase silenciosa,
ainda que disponível. Seu espanto é
mais técnico do que teológico: como
ela poderá trazer ao mundo o Emanuel
se é virgem? A parte central é o sim:
livre-arbítrio de uma jovem diante do
mistério que a excede. São Jerônimo
traduz o sim por fiat , latim para faça-
se. O que antecede a anuência da jo-
vem judia é valorizado como humilda-
de pelos cristãos e submissão pelos is-
lâmicos: “Eis aqui a serva do Senhor”.
Para quem não sabe, o texto sagrado
muçulmano descreve Maria e a anun-

ciação também. No Corão, ela está as-
sociada a Zacarias, pai do profeta João
Batista, que serve no Templo de Jerusa-
lém. Ela é piedosa e se prostra para o
Todo-Poderoso. A tradição oral árabe
diz que todos que nascem são tocados
por Satanás e choram, com exceção de
Jesus, o filho de Maria. Em todo o livro
sagrado islâmico, Maria é a única mu-
lher que recebe nome próprio. Outras
mulheres recebem atenção, porém ga-
nham títulos e não nomes próprios. A
tradição diz que o Profeta purificou a
Caaba de todos os falsos ídolos que ali
eram adorados, mas ordenou que se

conservassem as imagens de Jesus e de
Maria no local sagrado. O último concí-
lio católico, o Vaticano II, elogia o res-
peito dos islâmicos a Maria.
Judia religiosa, cristã exemplar e islâ-
mica submetida de coração aos desíg-
nios do Altíssimo: eis o poder da figura
de Maria. Anterior a polarizações teoló-
gicas, ela é exemplo de atitude para
muita gente. Seu comportamento é
exemplar e modelo de fé. Assim como
Abraão aceita a promessa e sai da casa
do pai sem titubear, Maria não enten-

de, entretanto se entrega a um plano
que muda toda a sua vida. A fé é entre-
ga e aceitação, ainda que livre. Abraão
vai, Maria diz sim, ambos geram fatos
importantes para o futuro. Abraão é
pai de três religiões. Maria é mãe de
Jesus nas duas maiores fés do mundo.
Ambos recebem a mensagem e a acei-
tam. Abraão ouve o próprio Deus, Ma-
ria recebe um mensageiro (sentido gre-
go da palavra anjo). Em hebraico, a so-
lenidade de Deus faz Abraão mudar de
vida sem sequer uma palavra, como
mudo ficará quando o Todo-Poderoso
exigir a vida do seu filho Isaac. Em gre-
go, um mensageiro abaixo da grandio-
sidade de Deus permite que a jovem
ainda faça uma pergunta antes do sim.
No futuro, o silencioso e obediente
Abraão negociará longamente com o
Criador sobre as cidades de Sodoma e
Gomorra. A autora da única pergunta,
Maria, nunca mais demonstrará dúvi-
da técnica. Abraão aprendeu a dialogar
e Maria aceitou a entrega total e as do-
res que Simeão anunciou que atraves-
sariam seu coração.
Nossa Senhora torna-se a Maria do
silêncio, sem dúvida, aquela que guar-
da e medita as palavras “no seu cora-
ção”, porém, cresce como a Maria da
ação. Soube, pelo anjo, da prima grávi-
da e idosa. Corre para auxiliá-la. É tam-
bém ela que fala a Jesus quando o reen-

contra no Templo, aos 12 anos. Con-
siderando a família patriarcal da Pa-
lestina do século 1.º, tomar a iniciati-
va na frente do pai não foi pouco
para uma jovem mulher. É ela que
pede a interferência no primeiro mi-
lagre, as bodas de Caná. É ela que
acompanha o filho até a cruz, quan-
do os homens, com exceção do qua-
se adolescente João, tinham deban-
dado com medo. É ela que está com
os discípulos na festa de Pentecos-
tes, nascimento formal da Igreja.
Mulher do silêncio, do sim, da medi-
tação; porém, sempre a mulher da
ação corajosa.
A face feminina da salvação é fasci-
nante. José, tão importante no início
de Mateus, submerge na escuridão
da narrativa seguinte. Maria cresce
até os Atos dos Apóstolos e, metafo-
ricamente, no próprio Apocalipse, vi-
gésimo sétimo e último livro do No-
vo Testamento. É a mulher vestida
de sol, ostentando uma coroa de 12
estrelas e com a lua debaixo dos seus
pés. A tradição católica identifica a
mulher do Apocalipse com Maria. A
humilde serva do Senhor do Evange-
lho de Lucas vira a gloriosa dama co-
roada do livro da Revelação. O femi-
nino de Maria será sempre um terno
mistério para as pessoas de fé. Como
ela, é preciso ter esperança.

ISOLADO


ACERVO PESSOAL

Confinado na Espanha, Guilherme


Arantes lamenta mortes por doença


“É muita tristeza, não
dá mais para se inspirar
com as belezas do mundo.
Estou em um estado de
náusea com tantas mortes.
Logo devemos passar
a Itália em número de
mortos. É um processo
mórbido. Só consigo
mesmo fazer exercícios
ao piano”
Guilherme Arantes

À ESPERA DA


INSPIRAÇÃO


QUE SURGIRÁ


Em nome do barroco. Em frente a seu Harpsichord, ele usa o confinamento para estudar

CONFINAMENTO DEU ORIGEM A HITS


O Ventre do Verbo


Maria, mulher do silêncio, do
sim, da meditação; mas sempre
a mulher da ação corajosa

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