O Estado de São Paulo (2020-03-26)

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A8 Política QUINTA-FEIRA, 26 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Gonçalo Junior


Familiares de vítimas do coro-


navírus no Brasil reagiram ao


pronunciamento do presidente


Jair Bolsonaro, anteontem, no


qual ele classificou a pandemia


como “gripezinha” e resfriado-


zinho”. Para eles, o presidente


cometeu uma “loucura” e “está


errado” ao minimizar os efeitos


da doença no País.


Na casa da família da aposen-


tada Maria da Conceição Costa,


de 73 anos, que morreu com sus-


peita de coronavírus, em Capão


Bonito, no interior de São Pau-


lo, no sábado, o clima era de in-


conformismo. “O presidente es-


tá errado. Ele não poderia ter


falado desse jeito. As pessoas es-


tão morrendo. Começou na Chi-


na e está chegando aqui”, disse


a dona de casa Maria Valdirene


Queiróz, nora da vítima. “A gen-


te fica triste com tudo o que es-


tá acontecendo e ele tinha de


ficar triste também.”


Por causa da suspeita da


doença, o corpo de dona Conce-


benta, como a aposentada era


conhecida, foi velado em caixão


fechado. O velório durou me-


nos de duas horas. Morador de


São Paulo, o filho mais velho en-


tre nove irmãos não conseguiu


chegar a tempo de acompanhar


o sepultamento. O teste de coro-


navírus foi feito nos familiares


no dia 19, quando a idosa foi in-


ternada. Os resultados ainda


não foram divulgados.


Santos. A assistente de vendas


Bruna Marques, de 24 anos, afir-


mou que o pronunciamento do


presidente foi uma “loucura”.


No domingo, sua mãe, a auxiliar


de enfermagem Cleide Renata


Marques, de 43 anos, morreu no


Hospital Guilherme Álvaro, em


Santos, no litoral de São Paulo.


Ela apresentava sintomas seme-


lhantes ao do novo coronaví-


rus, e aguardava o resultado do


teste, que sairia nesta semana.


“Aquilo foi uma loucura. Eu


vi o que aconteceu com a minha


mãe. Nós vemos o que aconte-


ceu na China e na Itália. O Brasil


vai se transformar num caos, pa-


rando ou não parando. As pes-


soas não estão percebendo co-


mo a situação é grave”, decla-


rou a filha de Cleide.


A vítima tinha asma e pas-


sou a apresentar quadro de fe-


bre e falta de ar após passar


cerca de três semanas em São


Paulo. Ela foi à capital para aju-


dar familiares e voltou para a


casa, em São Vicente (SP), no


último dia 14, para uma festa


surpresa de aniversário da fi-


lha. Após idas e vindas aos hos-


pitais da região, ela morreu no


domingo. Bruna relatou que


os médicos apontaram a causa


da morte como uma parada res-


piratória, por causa de uma


pneumonia aguda e complica-


ções respiratórias.


A família da primeira vítima


do novo coronavírus no Brasil,


um porteiro aposentado de 62


anos e morador do bairro da


Bela Vista, na região central da


cidade, não quis se manifestar


sobre o pronunciamento do


presidente Jair Bolsonaro. Ele


morreu no dia 16 de março.


“Eles não vão se manifestar so-


bre essa questão”, disse o advo-


gado da família, Roberto Do-


mingues Junior.


Entidades e profissionais da área da Saúde questionam recomendações de Bolsonaro sobre isolamento social e fechamento de escolas


HISTÓRICO DE ‘ATLETA’


No meu caso


particular, pelo


meu histórico de atleta,


caso fosse contaminado


pelo vírus, não precisaria


me preocupar, nada


sentiria ou seria, quando


muito, acometido de


uma gripezinha ou um


resfriadinho, como bem


disse aquele conhecido


médico daquela conhecida


televisão.”


TRATAMENTO


O FDA americano


e o Hospital Albert


Einstein, em São Paulo,


buscam a comprovação


da eficácia da cloroquina


no tratamento da covid-19.


Nosso governo tem


recebido notícias positivas


sobre este remédio


fabricado no Brasil,


largamente utilizado no


combate à malária, lúpus


e artrite.”


ISOLAMENTO SOCIAL


O sustento das


famílias deve ser


preservado. Devemos,


sim, voltar à normalidade.


Algumas poucas


autoridades estaduais


e municipais devem


abandonar o conceito


de terra arrasada, como


a proibição de transportes,


o fechamento de comércio


e o confinamento


em massa.”


FECHAMENTO DE ESCOLAS


O que se passa no


mundo tem


mostrado que o grupo de


risco é o das pessoas acima


dos 60 anos. Então, por


que fechar escolas? Raros


são os casos fatais de


pessoas sãs, com menos de


40 anos de idade. Noventa


por cento de nós não


teremos qualquer


manifestação, caso se


contamine.”


l A Sociedade Brasileira pelo


Progresso da Ciência (SBPC)


diz que o isolamento é “funda-


mental” contra o vírus. “Estu-


dos e análises em vários paí-


ses têm mostrado que o isola-


mento social é uma medida


fundamental para conter o


crescimento muito acelerado


de pessoas afetadas.” Para a


Sociedade Brasileira de Imuni-


zações, incentivar os brasilei-


ros a voltarem às ruas pode


ter “consequências trágicas”.


Já estudo publicado na revis-


ta Science aponta que medidas


“drásticas” – quarentena de


cidades inteiras, fechamento


de serviços não essenciais e


restrição nas viagens aéreas –


implementadas na China “re-


duziram substancialmente a


disseminação da covid-19”.


As pessoas devem ficar em


casa, já que, nas próximas se-


manas, a circulação do vírus


atingirá o pico, afirma o infec-


tologista Jean Gorinchteyn.


CONDIÇÕES DA ITÁLIA


Grande parte


dos meios de


comunicação foram na


contramão. Espalharam


exatamente a sensação


de pavor, tendo como


carro-chefe o anúncio


de um grande número


de vítimas na Itália, um


país com grande número


de idosos e com um clima


totalmente diferente


do nosso.”


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


lAlerta


TRANSMISSÃO


Nossa vida tem


que continuar.


Os empregos devem ser


mantidos (...) Devemos,


sim, é ter extrema


preocupação em não


transmitir o vírus


para os outros, em


especial aos nossos


queridos pais e avós.


Respeitando as


orientações do


Ministério da Saúde.”


O QUE ELE DISSE


l No Brasil, uma coalizão que


inclui o Hospital Israelita Al-


bert Einstein, o Hospital do


Coração (HCor), o Hospital


Sírio-Libanês e a Rede Brasi-


leira de Pesquisa em Terapia


Intensiva (BRICNet), em par-


ceria com o Ministério da Saú-


de, vem realizando estudos


para testar a eficácia do medi-


camento no combate à covid-



  1. Já a Agência Nacional de


Vigilância Sanitária (Anvisa)


unformou que os testes ainda


são preliminares e o uso do


medicamento sem indicação


médica pode causar efeitos


colaterais. Em nota, o Hospi-


tal Albert Einstein que há três


estudos em andamento para


avaliar a eficácia e a seguran-


ça de potenciais terapias para


pacientes com covid-19, ainda


não concluídos. “Serão estu-


dos multicêntricos robustos


que possam fornecer respos-


tas satisfatórias acerca do te-


ma”, informou o hospital.


‘Se contenção der errado, Bolsonaro culpa os outros’ Pág. A9 }


‘As pessoas estão


morrendo. Ele não


poderia ter falado desse


jeito’, diz dona de casa


que perdeu a sogra


Parentes de vítimas de vírus


criticam discurso do presidente


RICARDO MORAES/REUTERS

Estudos não dão aval a pronunciamento


l Especialistas em saúde afir-


mam que, como a doença é


transmitida de pessoa a pes-


soa ou por contato com obje-


tos e superfícies contamina-


das, o isolamento e a correta


higienização se tornam indis-


pensáveis. Diante disso, afir-


mam, é difícil a população


manter a rotina a qual está


acostumada, como defendeu


o presidente. “Sem essas me-


didas, o impacto poderá ser


muito maior”, diz a Socieda-


de Brasileira de Hipertensão.


“Existe um perigo próximo,


evidente, real e gravíssimo.


Enfrentá-lo é prioritário. To-


dos nos preocupamos com o


impacto do isolamento social


na economia, particularmen-


te o impacto da recessão so-


bre a saúde. Também isso não


deve ser minimizado. Mas


que não se deixe a preocupa-


ção com o futuro inviabilizar


o presente”, afirma a Associa-


ção Paulista de Medicina.


l A declaração contraria a re-


comendação do diretor-geral


da Organização Mundial da


Saúde (OMS), Tedros Adha-


nom Ghebreyesus, que já de-


monstrou preocupação espe-


cial com os jovens. “Esse ví-


rus pode colocar você no hos-


pital por semanas ou até ma-


tar. Mesmo que não fique


doente, as escolhas que faz


sobre onde ir podem fazer a


diferença sobre a vida ou a


morte de outra pessoa”, afir-


mou. “Abrir as escolas faria o


vírus circular muito mais, vis-


to que as crianças voltariam


para a casa e poderiam infec-


tar os idosos”, diz Jean Gorin-


chteyn, infectologista do Insti-


tuto Emílio Ribas. A medida


não é exclusiva do Brasil. De


acordo com informações da


Unicef, 95% dos estudantes


da América Latina e do Cari-


be estão sem aulas em razão


da orientação da OMS sobre o


novo coronavírus.


“Vi o que aconteceu com a


minha mãe. Nós vemos o


que aconteceu na China e


na Itália. O Brasil vai se


transformar num caos,


parando ou não parando. As


pessoas não percebem


como a situação é grave.”


Bruna Marques


ASSISTENTE DE VENDAS

Vigilância. Controle de passageiros no Galeão, no Rio; para especialistas, adoção da quarentena é, até agora, medida mais recomendada para conter a disseminação do novo coronavírus


l A relação feita pelo presi-


dente entre o clima e a trans-


missão do coronavírus não é


algo comprovado, segundo


especialistas em saúde. Estu-


dos apontam que o clima


quente pode até diminuir o


contágio, mas não o impede.


Observando o número de ca-


sos notificados da doença, é


possível notar um avanço con-


siderável tanto no Brasil quan-


to na Itália em um curto espa-


ço de tempo, embora haja


mais casos na Itália. A Socie-


dade Brasileira de Infectolo-


gia afirma que é temerário di-


zer que as cerca de 800 mor-


tes diárias que estão ocorren-


do na Itália seja relacionada


apenas ao clima frio do inver-


no europeu. “Se isso fosse um


fator tão protetor assim, co-


mo justificar que agora, final,


ainda temos uma epidemia


em grande expansão?”, ques-


tiona o virologista Celso Gra-


nato, do Fleury.


l A Sociedade Brasileira de


Infectologia contesta a classi-


ficação do novo coronavírus


como “resfriado” ou “gripe”,


já que a covid-19 tem causado


mortes em dezenas de países.


A Sociedade Brasileira para o


Progresso da Ciência ambém


critica a tentativa de minimi-


zar a doença. “Essa pandemia


é muito grave, tendo já mata-


do mais de 16 mil pessoas no


mundo, e contaminado pelo


menos 2,2 mil brasileiros.”


Não é possível relacionar o


fato de Bolsonaro ter sido atle-


ta com uma eventual alguma


proteção contra a covid-19,


segundo o médico Celso Gra-


nato. “Os trabalhos científi-


cos ainda não chegaram a es-


se nível de detalhe”, disse.


Além disso, há casos de vários


atletas infectados com o ví-


rus, como o astro do basquete


americano Kevin Durant e


outros três jogadores do


Brooklyn Nets, da NBA.


Adriana Ferraz


Renato Vasconcelos


O pronunciamento feito an-


teontem, em rede nacional, pe-


lo presidente Jair Bolsonaro


contra medidas de isolamento


da população para o combate


ao novo coronavírus repercutiu


de forma negativa nos meios


médico e científico. Entidades


divulgaram notas rebatendo a


fala do presidente e reforçando


a necessidade de distanciamen-


to social para conter a pande-


mia. Atualmente, 2,6 bilhões de


pessoas convivem com regras


de confinamento mais ou me-


nos rígidas, a depender do país.


No Brasil, governadores de vá-


rios Estados adotaram medidas


a fim de diminuir a circulação


de pessoas para tentar reduzir a


propagação do vírus.


“Assistimos estarrecidos ao


pronunciamento do presidente


da República em direção contrá-


ria às recomendações do pró-


prio Ministério da Saúde, de or-


ganizações de saúde internacio-


nais, como a Organização Mun-


dial da Saúde, de cientistas e de


governos de todo o mundo”, afir-


mou a Sociedade Brasileira pelo


Progresso da Ciência (SBPC).


O uso do termo “gripezinha”


pelo presidente para falar sobre


o coronavírus também foi ques-


tionado. “Tais mensagens po-


dem dar a falsa impressão à po-


pulação de que as medidas de


contenção social são inadequa-


das e que a covid-19 é semelhan-


te ao resfriado comum, esta sim


uma doença com baixa letalida-


de. É também temerário dizer


que as cerca de 800 mortes diá-


rias que estão ocorrendo na Itá-


lia, realmente a maioria entre


idosos, seja relacionada apenas


ao clima frio do inverno euro-


peu. A pandemia é grave”, decla-


rou em nota a Sociedade Brasi-


leira de Infectologia.


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