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O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 26 DE MARÇO DE 2020 Especial H5
Júlia Corrêa
Desde que o avanço do coronaví-
rus impôs o isolamento em casa,
foi preciso alterar as rotinas. Fi-
car longe de familiares e amigos
nem sempre é uma missão fácil.
Mas, quando o isolamento envol-
ve a divisão do espaço doméstico
com marido, mulher, compa-
nheiro ou cônjuge, durante 24 ho-
ras por dia, a situação pode ser
ainda mais desafiadora.
Se a desordem das tarefas coti-
dianas já é motivo para deixar
qualquer um com os nervos à
flor da pele, a convivência com
um companheiro passando pela
mesma situação pode ser a recei-
ta para o desentendimento.
Não é por menos que, com o
fim do confinamento imposto à
população da China, o país viu o
número de pedidos de divórcios
aumentar consideravelmente.
Desde 1º de março, a cidade de
Xi’am, capital da província de
Shaanxi, contou com um “núme-
ro sem precedentes” de solicita-
ções dessa ordem, segundo uma
matéria do tabloide chinês em
língua inglesa The Global Times.
Tudo bem, os cartórios da cida-
de ficaram fechados por um mês,
o que pode ter atrasado os pla-
nos de alguns casais que já pensa-
vam em se separar antes das res-
trições. Mas é inegável que a re-
clusão a dois, ao longo de um pe-
ríodo estressante, pode ser um
verdadeiro teste de resistência.
No Brasil, os dias de quarente-
na ainda são recentes, mas al-
guns casais já preveem o impac-
to em seus cotidianos. A psicana-
lista, psicóloga e terapeuta de ca-
sal Mena Mota diz não ter ouvido
ainda nenhum caso de conflito
entre seus pacientes, mas, desde
a última semana, em atendimen-
tos online, tem passado a orien-
tá-los de forma preventiva.
“Entre as maiores preocupa-
ções, está a falta de privacidade”,
revela a profissional. “As pessoas
normalmente se ausentam para
trabalhar, têm momentos a sós;
de repente, tem alguém junto o
tempo inteiro, o que pode ser de-
sesperador”, complementa.
Quando passaram a viver jun-
tos, há cerca de dois meses, os
bancários Bárbara Melo, de 30
anos, e João Ottoni, de 43, não
contavam que passariam por
uma situação inusitada assim tão
cedo. Os dois se mudaram do Rio
de Janeiro para Brasília, onde,
até então, mantinham uma roti-
na na qual se separavam na hora
de ir trabalhar e voltavam juntos
para casa depois do expediente.
De acordo com Bárbara, eles
“prezam bastante” momentos
de lazer nos quais independem
um do outro. “Normalmente jan-
tamos juntos, mas, às segundas-
feiras, ele costuma jogar futebol
com os amigos”, exemplifica.
Pensando em preservar essa har-
monia, não hesitaram em conver-
sar sobre o assunto quando veio
à tona a recomendação de isola-
mento.
“A parte boa é que a gente con-
versa muito; já imaginávamos, as-
sim, o que poderia ser mais difícil
nesta convivência. Ele tem um
perfil mais quieto, organizado.
Eu fico bem ansiosa nessas situa-
ções, preciso me proporcionar
escapes”, explica Bárbara.
Durante a semana, o home offi-
ce faz com que cada um se isole,
concentrados em suas tarefas.
No tempo livre, Bárbara conta
com a ioga, que passou a praticar
com a ajuda de um aplicativo, e
acompanha um curso de espa-
nhol online. Enquanto isso, João
dedica-se também a leituras e es-
tudos. “Mesmo confinados, ten-
tamos estabelecer pequenas roti-
nas separadas”, conta a bancá-
ria.
A preocupação de como lidar
com esse cenário também atin-
ge os gaúchos Arthur Lauxen, de
28 anos, e Cesar Sandri, de 26,
que dividem um apartamento
em Porto Alegre há três anos. An-
tes mesmo do isolamento, Ce-
sar já estava bastante ansioso
com a situação, pois trabalha em
uma empresa multinacional de
intercâmbios. Nos últimos tem-
pos, tem tido de lidar com deze-
nas de estudantes e pais afeta-
dos pela expansão do coronaví-
rus pelo mundo.
“No primeiro dia de reclusão
em casa, discutimos muito. Está-
vamos irritados por nos vermos
em uma situação diferente da
que estávamos acostumados.
Mas, no fim, buscamos uma abor-
dagem conciliatória. Dissemos
um para o outro: ‘será um perío-
do longo, é melhor ficarmos
bem’”, relata Arthur.
Novos hábitos. Assim como
Bárbara e João, eles têm a vanta-
gem de viver em um ambiente re-
lativamente espaçoso. Num pri-
meiro momento, estão dividin-
do uma mesma bancada, mas já
notaram que, como precisam fa-
lar com sócios e clientes pelo tele-
fone o tempo todo, será melhor
um ficar no escritório e o outro,
na sala. A ideia é que alternem a
cada semana.
Os dois têm perfis bem diferen-
tes. Enquanto Arthur se define
como uma pessoa “extremamen-
te hiperativa”, Cesar é mais tran-
quilo e gosta de estar em casa.
“Quando chego do trabalho, cos-
tumo sair para correr na rua. Pen-
sei em continuar a fazer isso com
cuidado, mas, como o Cesar tem
medo de que eu contamine a ca-
sa depois, acabei cedendo, para
deixá-lo confortável.”
É nesse sentido que a terapeu-
ta Mena Mota reforça que, mais
do que nunca, este é um momen-
to para os casais não deixarem
mal-entendidos no ar. “Se eles já
aparecem normalmente, com
uma rotina inédita como esta,
vão continuar a aparecer, mas al-
guém tem de dar o primeiro pas-
so para desfazê-los. Eu sempre
tento mostrar que cada um tem a
sua verdade, e nem sempre elas
coincidem”, pondera. Para ela, o
mesmo vale em relação a cobran-
ças ligadas à organização do lar.
Fazê-las de forma mais serena e
tolerante, sem tomar a falha do
outro como uma irritação, pode
ser um bom caminho.
Mena ainda lembra que, quan-
do a relação envolve a presença
de filhos, além de se tomar cui-
dado para que cada um tenha
um tempo reservado para si, é
importante separar o que são os
pais e o que é o casal. Isto é, esta-
belecer um tempo para intera-
gir com toda a família e também
um tempo voltado à privacida-
de e ao lazer do casal. “Inclusi-
ve, pode ser um momento de re-
novação da relação”, comenta a
profissional.
O DESAFIO DO CONFINAMENTO
Sextou!
VIDA A DOIS
O excesso de convivência em razão da quarentena pode causar conflitos para
o casal. O que é possível fazer para deixar esse período mais harmonioso?
Casados há 40 anos, os consulto-
res automotivos Rosana e Paulo
Garbossa, que vivem em São Pau-
lo, são um exemplo de que man-
ter uma rotina muito próxima à
do outro pode dar certo. Paulo
optou por fazer home office em
1995, caminho seguido por sua
mulher dois anos depois.
No início, eles tiveram algu-
mas dificuldades. “Muitas vezes,
levávamos assuntos de trabalho
para a sala de jantar, junto das
crianças”, relembra Paulo. Foi as-
sim que, depois de um mês e
meio de adaptação, passaram a
se “policiar” para não misturar a
vida profissional à doméstica.
Paulo conta que os próprios
filhos aprenderam muito com
essa lógica. Recentemente, um
deles, hoje casado, foi transferi-
do para a Suécia. Com o corona-
vírus, adaptou-se à quarentena
sem nenhuma dificuldade.
Quanto à organização, o casal
busca fazer as refeições no mes-
mo horário e, sempre que possí-
vel, respeitar o tempo de cada ati-
vidade. Claro que imprevistos
ocorrem, como quando algo da
casa quebra, mas, como explica
Paulo, “não é porque você está
em casa que está disponível para
tudo”. Se não for algo urgente,
ele deixa para consertar no fim
de semana.
No dia a dia, cada um tem seu
espaço no escritório. “Quando
ela está trabalhando, a respeito
como qualquer outro colega”,
afirma Paulo, que diz, por exem-
plo, não se preocupar com a apa-
rência nesses momentos. “O
mais importante é estarmos con-
fortáveis; deixo para notar a rou-
pa dela quando saímos para jan-
tar, fugindo da rotina.”
Buscando essa individualida-
de, há cerca de dez anos, opta-
ram por separar quarto e ba-
nheiro. “Quando eu sugeri, ela
chegou a me perguntar se eu es-
tava com outra”, brinca Paulo,
“mas foi um jeito de preserva-
mos nossa independência”. É
assim que, para o casal, não exis-
te uma “fórmula mágica”. O su-
cesso do trabalho compartilha-
do em casa está ligado ao respei-
to pelo espaço do outro e a uma
adaptação constante. / J.C.
SEM CONFLITOS
l Horários de trabalho
bem definidos
A psicoterapeuta Mena Mota su-
gere que os casais delimitem os
horários dedicados à atividade
profissional. Embora algumas
ocupações demandem atenção
em tempo integral, é importante
criar espaços no lar para a pes-
soa perceber que o parceiro não
pode ser interrompido a qual-
quer momento. “É como se o ou-
tro estivesse ausente.”
l Momentos de privacidade
Nem sempre o companheiro es-
tá disposto a interagir. Nestas
horas, é fundamental respeitar a
individualidade do outro, que po-
de estar simplesmente querendo
ter um momento de introspec-
ção em um cômodo reservado
da casa. É bom lembrar que mui-
tas pessoas estão ansiosas dian-
te das incertezas deste momen-
to.
l Mais tolerância com
os erros alheios
Em situações de estresse, qual-
quer pequena falha do parceiro
pode ganhar dimensões despro-
porcionais. Por isso mesmo, é
bom ter em mente que, com a
indefinição do prazo de isolamen-
to, uma reação exagerada pode
deixar esses dias ainda mais difí-
ceis. O diálogo é fundamental.
l Divisão de tarefas
Para Mena, a quarentena pode
ser uma oportunidade para a re-
novação da relação. Ao prepa-
rem a refeição juntos, por exem-
plo, os parceiros podem não ape-
nas reforçar os laços afetivos,
como perceber que a divisão de
tarefas não vinha sendo justa.
l Lazer é fundamental
Danças, filmes, leituras... A diver-
são é a melhor aliada para aliviar
a tensão. Se há filhos na jogada,
o casal deve também reservar
momentos para ficarem a sós.
lLimites marcados
JENNY MEILIHOVE
‘Beijo’.
Ilustração
de Jenny
Meilihove
“Não é porque você
está em casa que
está disponível
para tudo”
Paulo Garbossa,
CONSULTOR AUTOMOTIVO
COMO NÃO MISTURAR
CASA E TRABALHO
Comportamento*
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