%HermesFileInfo:A-6:20200326:
A6 Política QUINTA-FEIRA, 26 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
WILLIAM
WAACK
N
o Brasil, a ideia de morrer pe-
la coletividade é um conceito
distante. A complacência
com a morte e a violência é o que ex-
pressa melhor um traço da nossa so-
ciedade – basta observar como nós,
brasileiros, conseguimos conviver
com taxas horrendas de criminalida-
de há tanto tempo. Enquanto nos or-
gulhamos e exaltamos a nossa cordia-
lidade, bom humor e alegria de viver.
Com decisiva ajuda do presidente
Jair Bolsonaro, mas não só dele, o
debate sobre a crise do coronavírus
e suas consequências aqui descam-
bou para um ácido maniqueísmo en-
tre saúde das pessoas versus saúde da
economia. Debate que, no fundo, mal
encobre uma falsa dicotomia. Não dá
para separar uma coisa da outra.
No extremo lógico do argumento
abraçado por Bolsonaro vamos chegar a
uma questão ética que ele provavelmen-
te nem percebe, e que está contida na
expressão “darwinismo social”. Simpli-
ficando bastante, significa tolerar que
os mais frágeis sucumbam, pois assim
determinam as “leis” da evolução social
- além da noção (pouco difundida na
nossa sociedade) do “bem comum”.
Bolsonaro e a defesa que faz da “saú-
de da economia” (simploriamente, ele
deixou-se identificar com um lado na
falsa dicotomia) espelham o fato de a
sociedade brasileira tolerar a convivên-
cia com brutalidade (e desigualdade e
miséria), mas, como cálculo político,
traduz um perigoso erro de leitura da
realidade. Pois, em política, mesmo
com nossas notórias hipocrisias, nin-
guém conseguirá sobreviver associado
à noção de que os mais frágeis precisam
perecer pelo bem comum da economia.
Bolsonaro não é um jogador de xadrez
e, por isso, é difícil assumir que seus atos
sejam uma sequência de lances. Ele é
um ser político intuitivo que reage a estí-
mulos dados por um grupo restrito de
“conselheiros” obcecados por posturas
ideológicas que pouco passam de fanta-
sias perigosas, à paranoia das “conspira-
ções” e ao cálculo prático de quais vanta-
gens políticas se oferecem no prazo
mais imediato. Além de copiar o deus
Trump, que viu os índices de popularida-
de subirem quando começou a falar que
as pessoas querem voltar a trabalhar.
No caso da crise do coronavírus, ele a
enxerga como uma ameaça pessoal tra-
zida pela deterioração provável (só se
discute o tamanho) da economia e, con-
sequentemente, dos seus índices de
aprovação e chances eleitorais. Ocorre
que, nessa competição para superar ad-
versários eleitorais reais ou imaginá-
rios – governadores de Estado –, ele
abriu uma fissura institucional de con-
sequências políticas difíceis de serem
antecipadas (só se discute o tamanho).
É o fato de que passaram a existir vá-
rias autoridades no enfrentamento da
crise, em vários níveis da Federação. Sem
que exista – além da formalização de co-
mitês vários – uma liderança central que
seria essencial para enfrentar o que vem
por aí, em qualquer sentido. Ao contrário
do que parece supor Bolsonaro, o públi-
co dificilmente fará uma distinção entre
quem disse o quê neste momento so-
bre como combater a crise.
“Quem tinha razão” vai importar
muito pouco lá na frente, pois o País
- parte-me o coração ter de dizer
isso – já entrou na dupla catástrofe
de saúde pública e de economia de-
vastada. A questão da liderança sur-
ge mais uma vez como um peso nega-
tivo no enfrentamento de nossos
problemas – faltaram lideranças
consequentes em todos os graves
episódios e, sobretudo, lideranças
com visões além dos seus interesses
políticos mais próximos.
Terminei o texto da semana passa-
da afirmando que o coronavírus era
uma ameaça grave para Jair Bolsona-
ro. Entendido, como ele foi, como
uma liderança surgida numa onda
disruptiva, a onda de 2018. Não cal-
culava, porém, que a crise pudesse
diminuí-lo com tanta rapidez. É o
que acontece, como se diz em gíria,
quando alguém se empenha em dar
tanta sopa para o azar.
Sopa para o azar
BRASÍLIA
SÃO PAULO
Um dia após criticar, em rede
nacional, medidas de isolamen-
to adotadas por governadores
para combater o avanço do co-
ronavírus, o presidente Jair
Bolsonaro teve ontem seu em-
bate mais duro com os chefes
do Executivo nos Estados des-
de o início da crise. Pela ma-
nhã, em reunião com os gover-
nadores do Sudeste, ele foi co-
brado por João Doria (PSDB) a
ter mais responsabilidade ao
tratar da pandemia. O presi-
dente retrucou, acusando o tu-
cano de fazer “demagogia” e
usar a situação como “palan-
que” eleitoral. À tarde, 26 gover-
nadores se reuniram para rea-
firmar que vão manter as medi-
das de restrição de circulação
de pessoas, mesmo contrarian-
do o Palácio do Planalto.
A forma como Bolsonaro tem
lidado com a crise custou até
mesmo o apoio do governador
de Goiás, Ronaldo Caiado
(DEM), aliado desde a campa-
nha eleitoral e responsável por
indicar o ministro da Saúde,
Luiz Henrique Mandetta. “Não
posso admitir e concordar com
um presidente que vem a públi-
co sem ter consideração com
seus aliados, sem ter respeito”,
afirmou Caiado ontem. No iní-
cio da reunião com os demais
chefes de Executivo estaduais,
no meio da tarde, Caiado foi sau-
dado pelo petista Wellington
Dias, do Piauí, com a frase:
“Bem vindo ao clube”.
Governadores do Sudeste es-
cancararam as desavenças com
Bolsonaro na videoconferência
da manhã. Doria iniciou a reu-
nião afirmando que o presiden-
te deveria “dar exemplo ao País,
e não dividir a nação em tempos
de pandemia”. Bolsonaro retru-
cou: “Se você não atrapalhar, o
Brasil vai decolar e conseguir
sair da crise. Saia do palanque”.
Renato Casagrande (PSB), do
Espírito Santo, também cobrou
liderança e responsabilidade
do presidente. “Não é possível
que todos os assuntos do Brasil
tenhamos enfrentamento. Pre-
cisamos de consenso. Não dei-
xamos a economia de lado, mas
não podemos menosprezar e
desconsiderar as informações
dos cientistas de todo o mun-
do”, disse Casagrande.
Doria voltou ao assunto ao en-
contrar os demais governado-
res. “Considerei desrespeitoso
(o comentário de Bolsonaro). Ele
propôs uma reunião de concilia-
ção, de entendimento e harmo-
nia com o governadores do Bra-
sil e teve um gesto absolutamen-
te equivocado, maldoso em rela-
ção aos brasileiros, como ele for-
mulou em rede nacional de rá-
dio e televisão”, afirmou, em re-
ferência à fala de Bolsonaro na
noite anterior.
Restrições. No fim do dia,
após participarem de reunião
virtual com o presidente da Câ-
mara, Rodrigo Maia (DEM-RJ),
26 governadores reiteram a ma-
nutenção dos procedimentos
de isolamento adotados para
conter a pandemia do coronaví-
rus, ao contrário do que Bolso-
naro pediu em seu pronuncia-
mento. A manutenção das medi-
das recomendadas por epide-
miologistas foi uma das tônicas
da videoconferência. O gover-
nador do Mato Grosso, Mauro
Mendes (DEM), foi o único que
relativizou as medidas. “Morro
de medo dos reflexos econômi-
cos dessas restrições”, disse.
Outro ponto unânime foi o pe-
dido para que Maia agilize a apro-
vação do Plano Mansueto – pla-
no de equilíbrio fiscal enviado ao
Congresso em junho de 2019 –
para ter condições fiscais de aten-
der algumas cadeias produtivas.
Os governadores decidiram
cobrar medidas práticas do go-
verno federal em relação aos
mais pobres e pequenos em-
preendedores, enquanto nego-
ciam pauta macro diretamente
com Maia. Com essa estratégia,
eles avaliam que podem se pro-
teger de uma eventual tentativa
de Bolsonaro de jogar a culpa da
crise econômica nas costas de-
les no futuro. Outro consenso
entre os governadores é que de-
vem frisar que as medidas que
estão tomando para combater a
crise têm respaldo da ciência e
de organismos internacionais.
“Nós nos pautamos pela ava-
liação dos técnicos, peritos e de-
cidimos com base nessas infor-
mações. Qualquer decisão pauta-
da no achismo está sujeita à res-
ponsabilização direta daquele
que o faz”, afirmou Wilson Wit-
zel (PSC), governador do Rio de
Janeiro, que também criticou o
pronunciamento do presidente.
Coordenador do Fórum de Go-
vernadores, Ibaneis Rocha
(MDB), do Distrito Federal, foi o
único que não participou da reu-
nião. / PATRIK CAMPOREZ, JUSSARA
SOARES, PAULA REVERBEL, PEDRO
VENCESLAU, RICARDO GALHARDO,
MARLLA SABINO e EMILLY BEHNKE
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
N
os manuais de política e bom senso,
recomenda-se prudência, não tornar
pior o que é ruim. Dos líderes, se re-
quer habilidade para desinflar conflitos, cor-
rigir rotas. Temperança, capacidade de aglu-
tinação; somar, não dividir. Colocar interes-
ses coletivos acima dos pessoais. Olhar para
a história. Ocioso dizer, não vemos isso com
o presidente Jair Bolsonaro. Enquanto gover-
nadores correm contra o tempo, o presiden-
te se esmera em ser Midas às avessas: trans-
forma em fogo, fúria e pó aquilo em que colo-
ca a mão. Sem ocultar objetivos, revelou ou-
tro dia que sua preocupação é a economia
porque, levada à breca, seu governo acaba.
Nessa visão, a economia é apenas instru-
mento do governo. Não se destina às pes-
soas, ao bem-estar, mas ao governo. Seu de-
sespero e obsessão é 2022. Nessa gana, luta
contra o mundo. Na teleconferência, seu
alvo foi o governador de São Paulo, João Do-
ria (PSDB), tendo por referência as eleições
de 2018 e 2022. Feito de ressentimento e an-
siedade, despreza o presente, ignora hori-
zonte mais amplo, desconhecendo que no
longo prazo estaremos todos vivos, apenas
se não sucumbirmos ao curto.
Na crise humanitária da covid-19, é premen-
te cuidar do presente para garantir o futuro.
Do contrário, “no curto prazo, estaremos to-
dos mortos”. O presente imediato interessa
porque sem ele não haverá futuro, sequer
- Revelou isso no pronunciamento à Na-
ção. Seu foco está na economia porque é seu
“big tíquete” para a reeleição. Cálculo frio: “Se
a política de distanciamento social resultar em
pouco mortos, foi vão o esforço”; aproveita-se
de que, ao final, saberemos o número de mor-
tes, não a quantidade de vidas salvas. A estraté-
gia é transformar provável sucesso em fracas-
so. Perdeu o timing da crise, sabe que os frutos
do distanciamento social não serão seus.
Ao fim, dirá: “Comprometeu-se a economia
por uma ‘gripezinha’”. O cérebro do “atleta”
não considera a alternativa sofisticada: “Preser-
var vidas, com menor perda econômica”. Não
está programado para isso. Desconhece a pru-
dência e joga pedras em quem assumiu respon-
sabilidades, a começar por seu ministro da Saú-
de. Está só. Mas do seu barulho ecoa angústia.
]
É CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER
Bolsonaro escorregou feio na
falsa disputa entre saúde da
economia e saúde das pessoas
lDivergência
Governadores mantêm medidas que foram criticadas por Bolsonaro em pronunciamento; presidente e Doria travam embate em reunião
‘Gabinete do ódio’ vira o Conselho da República. Pág. A7 }
]
ANÁLISE: Carlos Melo
Presidente faz
cálculo frio: sua
obsessão é 2022
DANILO M YOSHIOKA/FUTURA PRESS
Incisivo. Doria disse que Bolsonaro não pode dividir o País
DIDA SAMPAIO/ESTADÃO
Estados reiteram medidas de isolamento
“(Autoridades locais e
governos) Devem abandonar
a proibição de transporte, o
fechamento dos comércios
e confinamento em massa”.
Jair Bolsonaro
PRESIDENTE, DURANTE
PRONUNCIAMENTO
“Por acaso, em que lugar
que ela (covid-19) passou e
não deixou esse rastro
(problema econômico)? (...)
Ignorância não é virtude.”
Ronaldo Caiado (DEM)
GOVERNADOR DE GOIÁS
Choque. Jair Bolsonaro, ontem, no Palácio da Alvorada; presidente travou embate com governadores do Sudeste em videoconferência sobre a pandemia
i