O Estado de São Paulo (2020-03-27)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-14:20200327:


A14 Internacional SEXTA-FEIRA, 27 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


T


odo mundo confinado! Por-
tas fechadas, ninguém entra,
ninguém sai. Ou então, será
preciso pedir a um policial permissão
para ir comprar pasta de dentes ou
pão. Sem exceções. Você pode até ser
um marajá ou um bilionário, será tra-
tado como um camareiro ou uma ca-
mareira qualquer. Bakunin gostaria
muito. A sociedade sem classes acaba
de chegar. O novo coronavírus conse-
guiu, em poucos meses, estabelecer
esta igualdade perfeita entre os seres
humanos, sempre prometida e sem-
pre dissipada como uma miragem.
No século 17, o poeta Malherbe,

por ocasião da morte da filha de um de
seus amigos, usa esse argumento para
consolá-lo. “O pobre em sua cabana que
a palha cobre, submete-se às suas leis, e
o guarda que vigia nas barreiras do Lou-
vre, não defende nossos reis.” Malherbe
tinha razão, porque falava da morte co-
mo do “grande equalizador” (embora
isso seja discutível).
Por outro lado, no que diz respeito ao
confinamento ao qual estão sujeitos,
tanto os poderosos quanto os miserá-
veis, nessa igualdade pela desgraça, o
desconforto como a própria morte é
uma piada. Longe de realizar a socieda-
de sem classe, muito ao contrário, o co-

ronavírus aprofunda as desigualdades,
as torna mais agudas.
O sociólogo americano Eric Klinen-
berg estuda há dez anos a solidão e seus
efeitos nas sociedades atuais. Pode-
mos aplicar suas análises à provação
violenta do confinamento ao qual três
quartos da Europa e, em termos do pla-
neta, de 2 a 3 bilhões de homens, mulhe-
res, idosos, bebês, portadores de defi-
ciências, pedintes e bilionários estão
condenados.

Se ele aceita as decisões dos médicos
e dos governos de isolar as pessoas, de
trancá-las em seus palácios ou em suas
casas, sem contato com outras pessoas
igualmente aprisionadas, por outro la-
do, ele lamenta que não se conceda às
populações frágeis, aos pobres, fatiga-
dos, muito pobres ou muito solitários

(solitários mesmo em um período nor-
mal), uma atenção particular. As pes-
soas desabrigadas não têm escolha. Co-
mo poderiam evitar os contatos físicos
do dia a dia? E os idosos? E os doentes?
Nestes momentos, eles precisam de
atenção redobrada e não ver a socieda-
de dando-lhes as costas.
Ele evoca, em seguida, o drama que o
“distanciamento social” pode provo-
car em certas pessoas. “A solidão, que
acarreta estresse e ansiedade”, ele diz,
“enfraquece o sistema imunológico” e,
portanto, pode torná-lo mais vulnerá-
vel aos vírus. Os seres humanos são
uma espécie social. Alguns precisam
de um contato regular, outros podem
se arranjar com uma interação ocasio-
nal. Entretanto, “homem nenhum é
uma ilha”, como diz o poeta John Don-
ne. “Somos maciçamente interdepen-
dentes.”
Buscando dispositivos de luta contra
esta ruptura das relações sociais, sobre-
tudo entre os mais humildes, ele lem-
bra que, nas grandes epidemias antigas


  • peste e cólera –, não havia nenhum
    recurso. Hoje, estamos ligados aos
    outros pelo rádio, TV, telefone, re-
    des sociais, computadores.
    O discurso de Eric Klinenberg me-
    rece ser citado, porque esse america-
    no faz o elogio do seguro social, ine-
    xistente nos EUA. “O sistema públi-
    co de saúde vai além da solidarieda-
    de entre as pessoas. Ele nos incenti-
    va a não acumular medicamentos pa-
    ra nosso uso exclusivo, a não ir para
    o trabalho quando estamos doentes,
    a evitar mandar para a escola uma
    criança doente. Sociedades dividi-
    das e desiguais, como os EUA, care-
    cem de confiança e de coesão: será
    mais difícil para elas superarem esta
    nova pandemia”, escreve. Como não
    concordar plenamente com estas pa-
    lavras? Ou, em outros termos: “Os
    seres humanos podem morrer de so-
    lidão”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA


]
É CORRESPONDENTE EM PARIS

GILLES


LAPOUGE


ROMA


O número de infectados pelo


coronavírus em todo o mun-


do ultrapassou ontem a mar-


ca de 500 mil. O avanço é im-


pulsionado pelos números de


Itália, Espanha e EUA, que on-


tem ultrapassou a China em


número total de infecções.


Nas últimas 24 horas, autori-


dades americanas registra-


ram quase 15 mil novos casos,


elevando o total do país a 82


mil doentes – os chineses têm


81,3 mil.


Segundo a contagem da Uni-
versidade Johns Hopkins, mais
de 23 mil pessoas morreram no
mundo em razão da pandemia,
com uma taxa de letalidade glo-
bal de 4,5%. Se os EUA são os
que registram mais casos por
dia, é na Itália onde ainda há o
maior número de mortos. On-
tem, segundo autoridades italia-
nas, 712 pessoas morreram.
Ontem, médicos e enfermei-
ras da Itália imploraram ao go-
verno que fornecesse mais más-
caras, luvas e óculos de prote-
ção e pediram novamente que a

população permaneça em isola-
mento. A taxa de infecções dimi-
nuiu um pouco no país, segun-
do o chefe do escritório euro-
peu da Organização Mundial da
Saúde (OMS), Hans Kluge, mas
ainda é insuficiente para identi-
ficar qualquer tendência.
Quem também pressiona os
números para cima é a Espanha,
quarto país com maior número
de casos (mais de 56 mil) e se-
gundo no total de mortos (mais
de 4 mil). Cerca de 2,8 bilhões
de pessoas, ou mais de um terço
da população do planeta, estão

sob severas restrições de isola-
mento.
O chefe da OMS, Tedros Ad-
hanom Ghebreyesus, repreen-
deu ontem os líderes mundiais
por perderem um tempo precio-
so na luta contra o vírus. “Des-
perdiçamos a primeira janela de
oportunidade. Essa é uma se-
gunda oportunidade, que não
devemos perder e fazer de tudo
para suprimir e controlar esse
vírus”, afirmou.
Na Índia, onde o governo or-
denou que 1,3 bilhão de pessoas
ficassem em casa, há um núme-
ro incontável de desemprega-
dos e muitas famílias já encon-
tram dificuldades para comer.
“Nossa primeira preocupação é
com comida, não com o vírus”,
disse Suresh Kumar, de 60
anos, um motorista de riquixá
de Nova Délhi. Sua família, de
seis pessoas, depende de seus
ganhos diários de apenas 300 rú-
pias (cerca de US$ 4). “Não sei
como vou fazer.”
O cenário também é bastante
grave nos EUA, onde houve
uma escalada considerável do
coronavírus na última semana.
O epicentro do surto está em
Nova York, que já teve quase
300 vítimas fatais. O dano causa-
do à economia ficou claro quan-
do o número de americanos que

solicitaram auxílio-desempre-
go em uma semana foi quase cin-
co vezes o recorde anterior, esta-
belecido em 1982.
Esta semana, o presidente Do-
nald Trump expressou esperan-
ça de que tudo volte ao normal
na Páscoa, em 12 de abril, alegou
que os EUA “não foram feitos
para ficarem fechados”, o que
mostra a preocupação da Casa
Branca com os efeitos devasta-
dores do surto na economia
americana.
Se nos EUA a pandemia levan-
ta o debate sobre até que ponto
o isolamento compensa os pre-
juízos econômicos, a Suécia pa-
rece ter encontrado um cami-
nho próprio – e bem pouco con-
vencional. Sem a aplicar medi-
das restritivas, manteve escolas
primárias abertas. As fronteiras
foram fechadas, mas apenas par-
cialmente.
O governo sueco também
não determinou o fechamento
obrigatório de restaurantes e ba-
res. Embora exista uma proibi-
ção de reuniões públicas, o limi-
te é de 500 pessoas, mais genero-
so do que em outros países. Até
agora, apesar da falta de medi-
das mais duras, os índices de dis-
seminação do vírus na Suécia re-
pete os números de seus vizi-
nhos, Noruega e Dinamarca. / AP

EMAIL: [email protected]

Longe de realizar a sociedade


sem classes, o coronavírus


aprofunda as desigualdades


PEQUIM


A China fechará temporaria-


mente suas fronteiras para es-


trangeiros com vistos ou autori-


zações de residência em razão


da pandemia de covid-19, anun-


ciou ontem o Ministério das Re-


lações Exteriores. O país, onde


foram registrados os primeiros


casos da doença no mundo, em


dezembro, também reduzirá a


chegada de voos internacio-


nais.


“A suspensão é uma medida
provisória que a China é força-
da a tomar para lidar com a pan-
demia”, afirmou a chancelaria.
A determinação entrou em vi-
gor à meia-noite de ontem, no
horário local (13 horas de hoje
em Brasília).
A China não detecta novos ca-
sos de coronavírus por trans-
missão local, oficialmente, há
dois dias. Mas os casos prove-
nientes de pessoas que regres-
sam do exterior aumentaram,
chegando a 500. No total, o país
tem mais de 81 mil infectados e
3.285 mortes.
Enquanto a China toma medi-
das drásticas para conter uma
nova onda de contaminações
externas, a Província de Hubei,
epicentro da pandemia, com 50

milhões de habitantes que esta-
vam confinados desde o final ja-
neiro, começou ontem a reto-
mar sua rotina.
Na cidade de Huanggang, que
registrou 125 mortes pelo novo
coronavírus, os 7,5 milhões de
habitantes estão autorizados a
fazer deslocamentos, até mes-
mo para fora da província. Mui-
tos, porém, ainda consideram o
vírus um perigo. Chen Wenjun,
farmacêutica de 22 anos, come-
mora a possibilidade de sair de
casa, mas continua atenta e usa
máscara. “Muitos lugares rea-
briram, mas temos de conti-
nuar atentos.”
Huanggang fica a 75 quilôme-
tros de Wuhan, capital da pro-
víncia, que tem o maior número
de mortes no país (mais de 2,
mil). Lá, onde a doença foi de-
tectada pela primeira vez, a qua-
rentena só termina em 8 de
abril. / AFP

Confinamento e solidão


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


China fecha fronteiras temendo volta do vírus


Mundo ultrapassa


marca de 500 mil


contaminados


O QUE CADA PAÍS FEZ


ALY SONG/REUTERS

País onde houve o


primeiro caso da


covid-19 já tem 500


novos infectados que


vieram do exterior


Cautela. Chineses ainda andam de máscara em Jingzhou


EDDY LEMAISTRE/EFE

Com quase 15 mil casos em 24 horas, EUA passam a China no


total de infecções; número global de mortes aumenta para 23 mil


Emergência. Profissionais da saúde fazem a transferência de paciente com coronavírus em Angers, na França: país fecha fronteiras para deter pandemia


l Alemanha
Governo determinou isolamento
da população, incluindo proibi-
ção de reunião de mais de duas
pessoas em locais públicos, fe-
chamento de restaurantes e ba-
res. Salões de cabeleireiro, de
massagem, shoppings e escolas
foram fechados. Autoridades rea-
lizam testes em massa.

l Itália
No início, como havia apenas re-
comendações, os italianos lota-
vam ruas e bares, como se esti-
vessem de férias. Quando a situa-
ção saiu de controle, a quarente-
na total foi declarada no país to-
do, em 9 de março.

l Reino Unido
No início, o premiê Boris Johnson
pretendia isolar somente os doen-
tes, mas teve de mudar de estra-
tégia rápido em razão do avanço
da pandemia e adotou o distancia-
mento social, com fechamento
de escolas, bares, restaurantes,
cinemas, teatros, espaços comu-
nitários e confinamento.

l França
Emmanuel Macron isolou o país,
fechou praias, escolas, parques,
praças e museus. Mais de 100
mil policiais foram enviados para
patrulhar as ruas, controlar o mo-
vimento de pessoas e aplicar
multas para quem violar as re-
gras de isolamento. Até agora, os
franceses tiveram mais sucesso
em controlar a pandemia do que
os vizinhos italianos e espanhóis.

l EUA
Governadores de alguns Estados
adotaram medidas restritivas,
como distanciamento social. Do-
nald Trump não tem um discurso
coerente, ora defendendo as re-
comendação da OMS, ora um
relaxamento do confinamento.

l Japão
Desde o início, governo não ado-
tou medidas radicais. As escolas
foram fechadas em fevereiro,
eventos públicos e voos vindos
de países afetados pela pande-
mia foram cancelados. Se o pre-
miê Shinzo Abe não foi tão explíci-
to, coube ao governador de Tó-
quio Yuriko Koike pedir que as
pessoas ficassem em casa.

l Coreia do Sul
Governo seguiu à risca a reco-
mendação da OMS de testar em
massa a população e isolar
quem estiver contaminado. A po-
pulação aderiu às medidas de
isolamento social e o país teve
uma das taxas de infecção mais
baixas do mundo.

l China
Pandemia foi freada após
quarentena geral imposta no
país, com proibição de sair de
casa e de funcionamento de
transporte público. Cerca de 60
milhões de pessoas foram isola-
das.

l Colômbia
Governo proibiu entrada de via-
jantes que chegam do exterior –
até de colombianos. O presidente
Iván Duque decretou quarentena
obrigatória para pessoas com
mais de 70 anos e isolamento
em massa da população.

i
Free download pdf