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O ESTADO DE S. PAULO SEXTA-FEIRA, 27 DE MARÇO DE 2020 Metrópole A
AS LIÇÕES
DE QUEM SE
CUROU DA
COVID-
André Borges / BRASÍLIA
Rodrigo Airaf, de 26 anos, foi ex-
pulso de dois hotéis nesta sema-
na e vinha sendo hostilizado em
qualquer momento que pisasse
nas ruas por ser “gringo”, o “cul-
pado por disseminar o coronaví-
rus”. Wendell de Oliveira não
consegue mais dormir porque a
mulher, Ana Carolina, está
grávida, e ele já começou a racio-
nar comida porque até os mer-
cados fecharam. Vanessa Vieira
não foi aceita em um hotel por
ser turista e está desesperada.
Os relatos foram enviados à
reportagem por um grupo de
aproximadamente 150 brasilei-
ros retidos na Índia, país que
dois dias atrás deu início a
maior quarentena do planeta,
com ordem para que 1,3 bilhão
de indianos fiquem em casa. Di-
ferentemente do que ocorre no
Brasil, ali o fechamento é radi-
cal. Tudo parou e aqueles que
saem na rua são ameaçados pela
polícia.
Todos buscam uma forma de
voltar urgentemente ao Brasil,
mas não há voo disponível. Co-
mo não existe nenhuma rota di-
reta entre Brasil e Índia, qual-
quer viagem depende de uma es-
cala em outro país, o que compli-
ca tudo. A situação é de alerta.
“Tentei arrumar lugar para dor-
mir em dois hotéis. Me recebe-
ram por uma noite, depois disse-
ram que tinha de ir embora. Bra-
sileiros estão sendo xingados
na rua, culpados por contamina-
ções”, diz Rodrigo Airaf, que es-
tá em Jaipur, capital do Rajas-
tão, na Índia.
Wendell de Oliveira conta
que chegou com sua minha fa-
mília há um mês em Kochi, sul
da Índia. “Somos cinco pes-
soas, meus pais, meu irmão me-
nor de idade, eu e minha espo-
sa, que está grávida”, relata. Há
25 dias, diz ele, tudo estava nor-
mal, com sua mulher indo ao
hospital para fazer os exames
de pré-natal. Nesta semana, po-
rém, a polícia foi até a casa onde
estão e os proibiu de sair, uma
quarentena de 14 dias. Depois,
esse prazo foi estendido por 28
dias. “Nosso isolamento é total
e não podemos sair nem para
comprar comida. Até ontem de-
pendíamos de serviços de entre-
ga, mas com a quarentena mui-
tos estabelecimentos fecha-
ram. Já chegamos ao ponto de
racionar comida”, afirma.
Tiago Luiz Mendonça che-
gou à Índia no dia 5. “Fui convi-
dado a me retirar pelas autorida-
des locais por ser estrangeiro.
Eu e meu amigo mexicano fo-
mos hostilizados. Chegaram a
arremessar uma pedra enorme
no telhado de nossa anfitriã. A
paranoia cria um sentimento
de repúdio aos estrangeiros.”
Petição. Em desespero, o gru-
po de brasileiros criou uma peti-
ção online no site Avaaz, onde
pedem ajuda ao governo brasi-
leiro. Há ainda um número de
brasileiros que estão sem ter co-
mo sair do Nepal, na borda nor-
te da Índia. Apesar das hostilida-
des, eles têm encontrado apoio
em alguns locais que os rece-
bem. Sem opção de voo comer-
cial ou acesso por países euro-
peus ou asiáticos, pedem o
apoio de aviões da FAB, como o
governo fez com o grupo que
estava em Wuhan, na China.
“Todos os mercados estão fe-
chados, comprar comidas e coi-
sas de necessidades básicas es-
tá quase impossível. Estou a
ponto de racionar comida por
aqui. Eles fecharam tudo”, diz
Mariana Lemos. “A polícia está
mandando pessoas para casa,
às vezes batendo nelas com pe-
daço de pau, é extremo”.
Os pedidos de socorro tam-
bém chegam da região do Eve-
rest, no Nepal. “A gente está
aqui, presos no Nepal, em uma
vila chamada Lukla, na região
do Everest”, diz Nathan C.
“Nós estamos presos aqui nes-
sa região que tem escassez de
energia, água e recursos médi-
cos. Precisamos voltar pra Kat-
mandu, a capital, para depois
tentar voltar para casa.”
Sem prazo. A reportagem ques-
tionou o Itamaraty sobre o que
o governo fará com os brasilei-
ros retidos em Índia e Nepal. O
Ministério das Relações Exte-
riores declarou que se trata “de
situação excepcional que torna
impossível a elaboração de cro-
nograma preciso dos voos ou
do atendimento imediato de to-
das as demandas existentes”.
Para os brasileiros que estão
na região, o Itamaraty recomen-
da entrar em contato com o Gru-
po Especial de Crise. O número
para casos na Ásia e Oceania é
+556198260-0613. Informações
também estão sendo publica-
das no site da Embaixada do Bra-
sil em Nova Délhi.
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
Fernanda Boldrin
Paulo Beraldo
N
o momento em que o
número de mortos e
infectados pelo novo
coronavírus aumenta e paí-
ses como Itália e Espanha
avançam na contagem de
seus mortos, cresce também
outra estatística menos divul-
gada e bem mais alentadora:
a dos curados. Em todo o
mundo, pelo menos 100 mil
pessoas já se recuperaram da
doença, segundo estudo da
Universidade John Hopkins,
dos Estados Unidos.
O trabalho foi divulgado
nesta semana. O resultado
corrobora informações da
Organização Mundial de Saú-
de (OMS) de que 80% das
pessoas contaminadas se re-
cuperam apenas no trata-
mento, sem precisar de inter-
nação e uso do respirador
(entre 5% e 6%).
Os curados são homens e
mulheres, jovens, adultos e
idosos, que apresentaram
sintomas variados, desde tos-
se e falta de ar até perda de
olfato. Depois de um período
de isolamento total, sem sair
de casa – incluindo os mais no-
vos –, eles relatam o prazer de
voltar a executar atividades do
dia a dia, como estar com os ami-
gos e com a própria família. Al-
guns são enfáticos: para eles, o
isolamento social continua sen-
do necessário, mesmo depois
da cura, para evitar que a pande-
mia avance assustadoramente
como em outros países.
“O pior sintoma é o medo”,
afirma a advogada e conselheira
federal da Ordem dos Advoga-
dos do Brasil (OAB) Daniela Tei-
xeira, de 48 anos, que contraiu a
covid-19 na Conferência Nacio-
nal da Mulher Advogada, realiza-
da no Ceará, em 5 e 6 de março.
“Fui homenageada na conferên-
cia, mas não vale o risco e o deses-
pero que passei depois. Tinha de
ter ficado em casa.” Ela reforça a
recomendação da OMS para
que as pessoas não saiam de
suas casas nesse momento, que
não paguem para ver. “É muito
difícil ser contaminada por
uma peste, algo que parou o
mundo, e achar que seu quadro
clínico pode se agravar, que vo-
cê pode contaminar pessoas
queridas ao seu redor”, diz.
O tom de voz de Daniela, no
entanto, já não tem mais grande
preocupação. Na terça-feira,
ela recebeu o resultado de seu
último teste e não está mais
doente. A Secretaria de Saúde
do Distrito Federal, onde mora,
recomendou por precaução iso-
lamento total até dia 31. Depois,
vida normal.
Com o aumento da demanda
pelos testes de coronavírus,
muitos infectados não chegam
a fazer novo exame ao fim da
quarentena. Segundo o Ministé-
rio da Saúde, a orientação para
os que testam positivo é de res-
peitarem o período de 14 dias de
isolamento. Depois, se não tive-
rem mais sintomas, já podem se-
guir as mesmas regras do restan-
te da população.
Foi o caso da paulista Laísa
Nardi, de 22 anos. Em fevereiro,
depois de ter voltado de uma via-
gem por Itália e Espanha, ela co-
meçou a ter tosse, falta de ar e
dor no corpo. “Achei que a dor
fosse de carregar a mochila nas
costas”, disse. Ela revela um sen-
timento bastante difundido en-
tre as pessoas: “Não achei que pu-
desse acontecer comigo”.
Poucos dias depois de procu-
rar atendimento médico, Laísa
recebeu o resultado positivo do
teste para o novo coronavírus.
Ela ficou em isolamento com seu
ex-namorado, com quem tinha
entrado em contato depois da
viagem, ao realizar sua mudança
da casa dele. “Fiquei de quaren-
tena com o ex”, brincou. “No
dia em que a minha quarentena
acabou, andei 15 quilômetros
no sol do meio-dia, sozinha, pa-
ra ter certeza de que eu não esta-
va mais trancada.” Laísa já vol-
tou a trabalhar. “Mas evito ao
máximo sair de casa. Vou para o
trabalho porque preciso.”
Aos 21 anos, Jacqueline Hib-
ner tem a mesma percepção.
Ela estuda Hotelaria e Nutrição
em Nova York. Voltou para o
Brasil quando suas aulas passa-
ram a ser ministradas online.
Pouco tempo depois, teve dor
de cabeça e enjoo. Ela estava fo-
ra do grupo de risco. Não che-
gou a ter febre, mas o diagnósti-
co foi o mesmo: coronavírus.
Jacqueline seguiu os 14 dias
de isolamento à risca, mesmo
quando parou de apresentar sin-
tomas, e continua passando a
maior parte do tempo em casa.
“Temos de tomar cuidado. Fi-
car nas ruas agora é algo egoís-
ta”, afirma. “Temos de ficar em
casa para não espalhar o vírus.
Para algumas pessoas ele pode
ser leve, mas pode atacar outras
e ser fatal.” Ela sabe que os mais
jovens podem ser hospedeiros
e passar o vírus para outros.
O médico ortopedista Rober-
to Ranzini, de 54 anos, afirmou
que quer se voluntariar para tra-
balhar em algum hospital de
campanha, depois de acabar
sua quarentena. Ele atua no
Hospital Israelita Albert Eins-
tein, em São Paulo, onde foi
diagnosticado o primeiro caso
da doença no País, e disse acre-
ditar que possa ter contraído o
vírus de algum paciente. Sem
apresentar mais os sintomas ini-
ciais que, para ele, incluíram le-
targia e diminuição do olfato,
Ranzini continua seguindo o
isolamento recomendado.
“Temos de ter consciência
da importância do isolamen-
to, senão vai ter explosão de
casos e o nosso sistema de
saúde não vai aguentar.”
Embora não existam estu-
dos sobre o que acontece
com pacientes depois que
eles se curam, a esperança de-
le é que no fim da quarente-
na, quando pretende ir de no-
vo para a linha de frente, já
esteja imunizado. De acordo
com o infectologista Paulo
Olzon, uma vez que a pessoa
esteja recuperada do corona-
vírus, não há nenhuma restri-
ção. “É vida normal.”
Monitoramento. A Secreta-
ria Estadual de Saúde de São
Paulo afirmou não ter dados
sobre os pacientes curados e
disse que o monitoramento
dos pacientes é feito pelas
prefeituras. Já Secretaria Mu-
nicipal de Saúde não deta-
lhou como tem monitorado
casos de pacientes recupera-
dos. O Ministério da Saúde
informou que ainda está tra-
balhando em consolidar es-
ses dados, antes de fazer qual-
quer divulgação.
Infectados falam de alívio ao fim do isolamento,
mas dizem que é preciso respeitar a quarentena
Retidos na Índia racionam até comida e pedem ajuda
lExperiências
DANIELA TEIXEIRA/ACERVO PESSOAL
Susto. Advogada Daniela Teixeira relata ter sentido medo
ACERVO PESSOAL
Registros. Grupo enviou relatos dramáticos; em desespero, criaram petição no site Avaaz, onde pedem ajuda ao governo
Um grupo com cerca de
150 brasileiros relata que
estrangeiros são
hostilizados; eles estão
em quarentena geral
LAISA NARDI/ACERVO PESSOAL
Confinamento. ‘Fiquei de quarentena com o ex’, diz Laísa
“No dia em que a minha
quarentena acabou, andei
15 km no sol do meio-dia”
Laísa Nardi
INFECTADA APÓS VIAGEM À EUROPA
“Temos de ter consciência
da importância do
isolamento.”
Roberto Ranzini
MÉDICO QUE SE TRATA DA COVID-
Vida nova
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