O Estado de São Paulo (2020-03-27)

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O ESTADO DE S. PAULO SEXTA-FEIRA, 27 DE MARÇO DE 2020 Especial H9


Daniel Martins de Barros


COMO PODEMOS VER


O MUNDO QUANDO


PRESOS EM CASA?


Reif Larsen


THE NEW YORK TIMES


Outro dia, inquieto na minha


mesa de trabalho, virei um via-


jante virtual. Fiquei olhando fo-


tos de espaços públicos abando-


nados por causa da pandemia


de coronavírus. Um jogo de fute-


bol na Alemanha, disputado


diante de milhares de assentos


vagos. A Piazza San Marco em
Veneza, deserta, salvo por uns
poucos pombos confusos. São
lugares construídos para huma-
nos, mas não havia humanos.
Era como vislumbrar o que po-
de ser o futuro depois que partir-
mos, um filme de desastre, só
que na vida real.
Estamos entrando num tem-
po de guerra e de solidão. Todos
nós precisamos fazer nossa par-
te. Um amigo cancelou um al-
moço comigo uns dias atrás, es-
crevendo: “Agora estou pondo
em prática o distanciamento so-

cial. Não se ofenda”.
Não me ofendi. Todos nós es-
tamos aprendendo um novo vo-
cabulário: quarentena, período
de incubação, achatamento da
curva, ponto de inflexão. Esta-
mos aprendendo quais são as di-
mensões exatas do contato. Es-
tamos nos cumprimentando
com os cotovelos; estamos can-
tando ‘Parabéns pra você’ duas
vezes para marcar o tempo ne-
cessário para lavar as mãos (na
verdade, não consigo passar do
primeiro verso); estamos traba-
lhando de casa; estamos tentan-

do dar aulas online; estamos
(por razões que ainda não en-
tendi) comprando quantidades
absurdas de papel higiênico.
Também estamos cancelan-
do nossos planos de viagem, em
proporções não vistas desde o
11 de Setembro. Daí as fotos de
lugares vazios. Estávamos com
uma viagem marcada para Char-
leston, na Carolina do Sul, em
meados de março, mas toma-
mos a sábia decisão de não ir.
Assim como muitas famílias
com crianças pequenas, esta-
mos nos aconchegando num ca-

sulo de quarentena voluntária,
com a despensa cheia de feijão,
a estante cheia de livros, a sala
cheia de jogos de tabuleiro e um
monte de incertezas.
Logo depois do cancelamen-
to da viagem à Carolina do Sul,
Max, meu filho de 3 anos, e eu
demos um tempo nos jogos de
tabuleiro e tentamos recriar a
viagem virtualmente, usando
uma das minhas ferramentas fa-
voritas: o Google Street View.
Na tela do computador, fingi-
mos pousar no aeroporto de
Charleston. Alugamos nosso

carro, que cheirava a bala de mo-
rango e cigarros embolorados.
Pegamos uma garoupa fresca
em um mercado para grelhar de-
pois. Max jogou umas pedri-
nhas na água do mar. Depois de
caminharmos um pouco pela
areia, dançamos que nem lou-
cos na praia. Aí nos distraímos
com os longos caminhos das ca-
sas das pessoas até seus píeres
particulares e nos pergunta-
mos: quão longe era uma coisa
longe demais?
Em suma, eu estava viajando,
descobrindo. Não em carne e os-
so, mas, ainda assim, eu era um
explorador. Já faz uma década
que me sinto fascinado com o
Google Street View. Você pode
caminhar por quase todas as
ruas do mundo, sem se impor-
tar com a neve, a chuva ou a es-
curidão. E, quando você se can-
sa do passeio, pode se teletrans-
portar para um destino novo,
num novo continente.
Mas também sou o primeiro a
dizer que o Google Street View
não substitui a realidade. Viajar
no mundo real é fazer contato:
contato com corpos, com super-
fícies, com novos alimentos,
com novas águas, novos chei-
ros, novas luzes, novas línguas.
Então, o que fazer? Quando
não devemos viajar, quando
não conseguimos pôr as mãos
nas coisas que estão lá, como
recriar virtualmente esse senti-
mento de descoberta?
Parte da resposta talvez este-
ja no exemplo do escritor de via-
gens que trabalha com a grande
caixa de ferramentas da tecno-
logia. Muitas vezes, o que quere-
mos é ver uma mente encon-
trando um lugar, é seguir uma
pessoa enquanto ela tenta en-
tender uma paisagem estrangei-
ra e faz descobertas, comete er-
ros, se lança ao desconhecido.
Recentemente, com o adven-
to dos dispositivos de realidade
virtual, houve uma explosão de
aplicativos como o Google Ear-
th VR. Não se pode diminuir o
valor educacional de algumas
dessas experiências, mas amar-
rar uma engenhoca na cabeça
ainda parece uma forma de refú-
gio, não de contato. Ainda prefi-
ro os vídeos de gente caminhan-
do pelas cidades.
Mas talvez a solução óbvia pa-
ra encontrar maravilhamento
nesta temporada de reclusão se-
ja outra: algumas das melhores
jornadas nos aguardam exata-
mente onde estamos agora. Ho-
je, Max e eu quebramos a qua-
rentena de nossa casa e demos
um passeio pelo bosque. Vascu-
lhamos o chão da floresta em
busca do graveto perfeito; fica-
mos encantados com uma mi-
nhoca que não estava triste por
não ter pernas; brincamos de
procurar um urso mítico chama-
do Steve. Em algum momento,
assustamos um bando de cer-
vos, que começaram a correr pe-
lo bosque. Max ficou boquiaber-
to com essa física galopante.
Quando nossa jornada che-
gou ao fim, entramos em casa e
fizemos chocolate quente. O
mundo lá fora parecia a um só
tempo próximo e distante. Max
tomou seu chocolate com incrí-
vel vagar, como se quisesse sa-
boreá-lo por semanas. Por fim,
ele parou e disse: “Fomos bem
longe, não fomos?”. “Fomos
sim”, respondi. “Vamos de no-
vo amanhã?”. / TRADUÇÃO DE
RENATO PRELORENTZOU

N


os anos 1990 fizeram suces-
so no Brasil os livros do Ro-
ger Von Oech, escritor espe-
cialista em criatividade. Ele criou
também uma espécie de baralho –
que vendeu milhões de cópias mun-
do afora – com cartas para estimular
essa habilidade que começava a ser
valorizada no mundo corporativo.
Uma delas trazia a figura de um be-
bê mal-humorado dizendo que úni-
ca pessoa que gosta de mudar algo é
um bebê com a fralda cheia. Em in-
glês a frase fica mais bonita, brincan-
do com o duplo significado de chan-
ge (que pode ser mudança, mas tam-
bém troca), mas mesmo no nosso

idioma ela traduz algo bastante verda-
deiro: de forma geral, não gostamos
muito de mudanças.
Segundo Von Oech, contudo, elas
são essenciais para a criatividade.
Quando tudo permanece igual, sem no-
vidades, nós acabamos desenvolvendo
comportamentos engessados, rituali-
zados até, o que é fatal para a inovação.
Por outro lado, quem precisa inven-
tar coisas novas o tempo todo? No nos-
so dia a dia a maioria das atividades é
mesmo rotineira, repetitiva, dispen-
sando grandes esforços mentais. E é
exatamente por isso que temos tanta
aversão à mudança: ela pode ser um
estímulo poderoso para criatividade,

mas requer um tremendo esforço men-
tal. E conscientemente ou não nós vive-
mos evitando fazer esforço.
A rotina, desse ponto de vista, é uma
verdadeira bênção. À medida que os
eventos se repetem um dia depois do
outro o cérebro aprende a sequência e
cria pacotes automáticos de coman-
dos, dispensando a trabalhosa tarefa de
manter a concentração e pensar no que
está acontecendo. É quando nos torna-
mos capazes de realizar atos comple-
xos, como dirigir um veículo por aveni-
das movimentadas, indo do trabalho pa-
ra casa, sem nos darmos conta do que
estamos fazendo. Ligamos o piloto au-
tomático, desligamos nossa atenção e
quando vemos estamos na garagem
sem nem perceber. Evidentemente, es-
se processo poupa uma tremenda quan-
tidade de energia. Mas fica claro como
ele nos rouba de nós mesmos ao nos

alienar do momento presente.
A quebra da rotina força nosso cére-
bro a sair desse modo econômico, obri-
gando-nos a parar para prestar aten-
ção, pensar no que estamos fazendo,
raciocinar. Não é de se espantar, por-
tanto, que mudanças causem estresse.
Nos anos 1960, dois psiquiatras ame-
ricanos elaboraram uma lista das coisas
mais estressantes para o ser humano. A
maioria delas está relacionada a altera-
ções importantes na vida: casar, sepa-
rar, ser demitido, aposentar-se, ter fi-
lhos. Quando é preciso desligar o piloto
automático e retomar o controle existe
um custo emocional significativo.
Deu para entender por que você po-
de estar se sentindo cansado, irritado,
mal-humorado desde que essa mistu-
ra de restrição à circulação, distancia-
mento social, quarentena e tantas ou-
tras alterações em nossa rotina nos fo-

ram impostas? Fomos obrigados a
mudar, todos ao mesmo tempo. E
muito. Isso estressa todos ao mes-
mo tempo. E muito.
Dá para entender também por que
se fala tanto na importância de man-
ter uma rotina quando se está isola-
do. Se a cada dia tivermos de decidir o
que vamos fazer, como vamos comer,
em que horários iremos estudar ou
trabalhar, quem usará o computador,
quem ficará com o controle remoto e
assim por diante, o gasto de energia
nos derrubará em pouco tempo. Mas
se mantivermos uma rotina, mesmo
que seja uma rotina inteiramente no-
va, distante da que seguíamos antes,
rapidamente treinamos o piloto auto-
mático para poupar esforço dando
uma folga para nossa mente.
E vamos juntos. Porque juntos va-
mos mais longe.

facebook/danielbarrospsiquiatra
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FOTOS NATHAN ASPLUND/THE NEW YORK TIMES

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