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H12 Especial SEXTA-FEIRA, 27 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
Ignácio de Loyola Brandão
ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS
l]
LETRA, MÚSICA E
Caderno 2
Autores festejam online 10 anos de coletânea inspirada
em canções de Renato Russo, que faria 60 hoje
CONTO
P
ermitam-me começar com
um desabafo. Todo mundo te-
ve e está com medo, se emocio-
nou, se solidarizou, mostrou compai-
xão para com os mortos e infectados,
milhares estão em trabalhos voluntá-
rios. Só uma pessoa ignorou tudo.
Não se abalou, não compartilhou a
agonia dos brasileiros. Não mostrou
um pingo de ternura para com este
povo. Eis o que ele é, um homem sem
ternura. Sem ela como amar seu po-
vo e salvá-lo?
Iniciemos.
Encontro minha mulher vindo do
quarto.
“Que tal? Tomamos o café jun-
tos?”
“Será um prazer. Afinal o último
juntos foi ontem.”
“Tanto tempo assim? O que vai fa-
zer hoje?”
“Irei ao escritório, depois me senta-
rei na sala de visitas para montar uma
lista de pedidos online ao supermer-
cado.”
A sala de visitas é a mesma sala de
estar é a mesma sala de almoço e jan-
ta, como se diz em Araraquara. Mas
em cada momento cada um escolhe um
lugar para ficar, assim temos a sensação
de que a casa é grande.
“Já lavou as mãos?”
“Com sabonete e álcool-gel.”
“Pois eu penso em ir para o escritório
e resolver um problema bobinho de um
projeto.”
O escritório é o mesmo dos dois. Era
o meu, há anos trabalho em casa, e ela
trouxe do escritório a mesa, o computa-
dor, suas tralhas e trabalha aqui na mi-
nha frente. Há um pacto de silêncio en-
tre nós. Um não fala para não atrapalhar
o outro. Tenho de me conter, porque às
vezes leio alto minhas frases, procuro
palavras, sinônimos e antônimos, analo-
gias, tentando ouvir o som. Ela faz
psiuuu, calo-me.
Levanto-me.
“Onde vai?”
“Ao banheiro.”
Saio, não vou ao banheiro, vou à jane-
la olhar a rua. Mania de cronista, olhar.
Não reconheço a cidade silenciosa. Su-
miram buzinas, escapamentos, sirenes,
gritos. Ontem percebi, aqui do décimo
terceiro andar (não somos supersticio-
sos), que lá embaixo havia um homem
encostado no poste, olhando para cima.
O que queria? Olhava para minha jane-
la? Estava a me observar? (Paranoia do
fantasma do Planalto, esse Nero que
nos desgoverna.) Várias vezes durante
a noite, olhei. Ele lá. A me vigiar?
Agora de manhã, passei pela janela,
dei uma espiada, ele desaparecera. Doi-
deira minha! O que eu via à noite era o
cesto de lixo grudado ao poste e a som-
bra que ele fazia na calçada. E, olhem,
estou confinado há apenas sete dias. E
gostando, é nova vida. Passo pelo escri-
tório:
“Vou para o quarto.”
Ela sorri.
“Está hoje com bicho-carpinteiro?
Não fica sossegado. Toda hora vai a al-
gum lugar.”
No caminho, mudo de ideia, caminho
para a cozinha. Será melhor avisá-la? De
repente, me procura no quarto, não es-
tou, fica preocupada. “Onde será que
ele foi?” E aí começa a ligar para nossa
filha, para a irmã, os amigos. Talvez até
para a polícia. Apanho o celular:
“Estou na cozinha. Quer alguma coi-
sa?”.
“Quero sim, um copo de suco.”
Levo, sento-me ao computador, con-
tinuo a escrever, penso que talvez saia
uma ficção, passada em uma cidade va-
zia. Ela se ergue.
“Vou dar uma voltinha para espaire-
cer a cabeça, não consigo coordenar o
projeto.”
Vai para a saleta onde há parte da vi-
deoteca, é nosso home theater minúscu-
lo, íntimo. Pega o livro. Ela lê Mulherzi-
nhas, de Louisa May Alcott, de 1868, ve-
jam só, que voltou às livrarias neste
- Literatura é assim, imponderá-
vel. Você some, reaparece, é esquecido,
restaurado. O gato Tom dorme no sofá,
o rabo se move inquieto. Gatos so-
nham?
Volto à janela. De cada lado do prédio
se vê uma paisagem diferente. Ruas de-
sertas. Penso naquelas cidades fantas-
mas do oeste americano, com arbustos
secos rolando pela poeira. Passa um mo-
toboy levando na garupa enorme baú.
Medicamentos? Bebidas? Máscaras?
Vontade de pedir pastel de feira! Será
que uma noite dessas bateremos caçaro-
las para esses entregadores que arris-
cam suas vidas?
Memes de todos os lados, mensa-
gens, vídeos, áudios, piadas, nunca o
País teve tantos humoristas, este nosso
lado nos salva e nos derruba. Um apeli-
do novo corre. Eduardo, o filho do fan-
tasma do Planalto, agora virou Eduardo
Bananinha. Coisa do Mourão, o general.
Viraliza. Vou para um terracinho e conti-
nuo a olhar a rua. Caminhões de concre-
to chegam para a obra em frente, um
barulho infernal, uma poeirinha que
vem e se deposita nos móveis, nos
vidros. O vírus virá numa dessas mi-
núsculas partículas? Em um raio de
sol? Num algoritmo obscuro. Enrolo-
me em conjeturas. O sol está agradá-
vel. Volto ao escritório. Minha mulher
resolveu o problema, está feliz. Súbi-
to, estremeço. Olhem o acaso. Ou a
coincidência. O que seja. Arrumei as
estantes e descobri um clássico, Via-
gem Ao Redor do Meu Quarto, de Xa-
vier de Maistre, de 1872. Li na bibliote-
ca pública de Araraquara na juventu-
de, depois comprei em um sebo e te-
nho carregado comigo. Como perma-
neceu até hoje? E agora é realidade.
Minha mulher prepara um Gim-
tônica, faço um Cuba-libre com rum
Havana Club, pura nostalgia. Não de
Cuba, da adolescência.
“Depois do almoço, o que fare-
mos?”
“Um noticiariozinho, um filme,
Netflix, Now, sei lá.”
“Você não parou hoje. Foi a todos
os lugares. O que há?”
“Nada, gosto de dar minhas voltas,
ir aos lugares. Agora mesmo vou dar
uma saidinha.”
“Outra? Onde vai?”
“Ao lavabo, ainda não estive lá ho-
je.”
“Está bem, mas não demore. To-
me cuidado e lave bem as mãos. Com
álcool em gel.”
E se gostarmos desse novo ritmo
de vida?
PALAVRAS FORAM
O SEU HÁBITAT
COMO
SE NÃO
HOUVESSE
AMANHÃ
Org.: Henrique
Rodrigues
Editora:
Record (160
págs.; R$ 49,90)
Guilherme Sobota
Foi outra epidemia que levou a
vida de Renato Russo, em 1996,
mas nesta sexta, 27, são lembra-
dos os 60 anos de nascimento
do cantor, compositor, músico,
desenhista e roteirista, o mais
brasiliense entre os artistas ca-
riocas (pois ele nasceu no Rio).
Professor de inglês, locutor
de rádio, portador da epifisióli-
se, uma doença óssea, admira-
dor confesso de Jean-Jacques
Rousseau e Bertrand Russell
(de onde tirou seu sobrenome
artístico), intelectual: Renato
Russo era tudo isso também.
Morto em 11 de outubro de
1996, foi apenas recentemente
que sua obra e seu legado come-
çaram a ocupar, novamente, as
páginas dos jornais, com exposi-
ções e livros inéditos, tudo com
organização do seu filho e her-
deiro, Giuliano Manfredini.
O rock oitentista brasileiro,
do qual Russo conflituosamen-
te fazia parte, ainda precisa de
uma análise de fôlego, mas não é
segredo que muitos companhei-
ros de geração enveredaram por
caminhos bem mais conserva-
dores do que propunham suas
canções de protesto na reabertu-
ra política do País.
Não é justo especular o que Re-
nato Russo estaria pensando, fa-
zendo e discutindo sobre o Brasil
atual e sobre os ocupantes de cer-
tos cargos em Brasília, mas é cer-
to que a força material de suas
letras sobrevive às ranhuras que
o rock abriu na própria carne.
Maria Fernanda Rodrigues
Nos idos de 2008, o escritor Hen-
rique Rodrigues costumava ir pa-
ra o trabalho ouvindo Acrilic on
Canvas, do álbum Dois, da Le-
gião Urbana – que, àquela altura,
já tinha mais de 20 anos. Foi ali,
naquelas idas e vindas, que sur-
giu a ideia de escrever um conto
inspirado nessa música. Contou
para um amigo, que também ti-
nha uma música preferida, e fa-
lou que ia fazer o mesmo. A notí-
cia foi se espalhando, outros es-
critores fãs da banda foram che-
gando e no dia 27 de março de
2010 foi lançada no Rio, pela Re-
cord e com organização de Rodri-
gues, a coletânea Como Se Não
Houvesse Amanhã.
O volume traz 20 textos de
nomes como João Anzanello
Carrascoza, Marcelo Mouti-
nho, Wesley Peres, Manoela
Sawitzki, Ana Elisa Ribeiro,
Maurício de Almeida, Susana
Fuentes e muitos outros, além
do próprio organizador. De lá
para cá já foram impressas seis
edições, com mais de 20 mil
exemplares vendidos.
Hoje, exatos 10 anos depois, e
no dia em que Renato Russo
(1960-1996) faria 60 anos, os es-
critores não podem se reunir pa-
ra festejar a primeira década do
livro, porque estão todos isola-
dos por causa da pandemia do
coronavírus. Pensando nisso,
Henrique Rodrigues os convi-
dou a postar em suas redes so-
ciais vídeos sobre a coletânea,
com leitura de trechos. Isso tu-
do vai ao ar nesta sexta, 27, e,
para ver, procure a hashtag #an-
tologialegiao10anos ou visite o
perfil dos autores.
“Esses autores estão espalha-
dos pelo Brasil e pelo mundo. Ao
revisitar a antologia, viram que
também se tratava de uma possi-
bilidade de comunicação com o
outro e com a pessoa que foram
há 10 anos”, conta Rodrigues.
Fundada em Brasília em 1982
e extinta em 1996 com a morte
de Renato Russo (embora o últi-
mo show tenha sido em janeiro
de 1995), a Legião Urbana mar-
cou toda uma geração de brasi-
leiros e suas músicas foram ou-
vidas à exaustão nos anos 1980,
1990 e depois, com ecos ainda
hoje – não apenas para os mais
nostálgicos. “O interessante é
que algumas questões que as
canções da Legião nos trouxe-
ram, e também as que criamos
nos contos, são muito atuais: a
indignação social, as relações
humanas, a interrogação sobre
o futuro, as (im)possibilidades
do amor”, diz Rodrigues.
João Anzanello Carrascoza
comenta hoje que na época es-
colheu Pais e Filhos pois esse já
era um tema norteador de toda
a sua obra contística – e que se-
ria também dos romances que
escreveu depois. “Meu conto
procurou trazer, numa narrati-
va presentificada, o relato de
um filho sobre seu relaciona-
mento com o pai, separado da
mãe, vivendo em outra casa e
cidade. Lá está a força da presen-
ça mesmo na ausência, que um
dia se tornaria total, com a mor-
te desse pai”, explica.
Mauricio de Almeida escre-
veu seu conto inspirado na pe-
núltima faixa do último disco
da Legião Urbana, Uma Outra
Estação. “Desde o primeiro mo-
mento, Sagrado Coração me co-
moveu. Embora conste a letra
no encarte, Renato Russo não
gravou a voz, ele morreu antes
que pudesse registrá-la. No con-
to, trabalhei justamente essa si-
tuação – as coisas que ficaram
por fazer ou serem ditas”, co-
menta. Partindo dessa ideia, o
conto é narrado por um pai que,
na cama de hospital, se nega a
conversar com o filho. “A ausên-
cia de diálogo entre eles é movi-
da pela crença do pai de ser me-
lhor ao filho ter lembranças dife-
rentes da situação em que se en-
contram. Eles estão juntos, tal-
vez pela última vez, e não dizem
nada, tal como a canção.”
Já Marcelo Moutinho se ba-
seou na melancólica Vento no Li-
toral. “A canção trata de uma se-
paração sem dar muitos deta-
lhes. Encontrei a chave num ca-
co que Renato Russo deixou no
fim: cavalos-marinhos”, conta.
Foi pesquisar e terminou com
um conto também sobre infideli-
dade. Ramon Nunes Mello tam-
bém tratou desse tema, esco-
lhendo Sereníssima – que fala de
forma poética sobre uma separa-
ção sem remorso, pontua. “Parti-
cipar da antologia me fez voltar
no tempo em que ouvia Renato
Russo e sua Legião Urbana até
decorar as letras. Sem dúvida,
Renato Russo (e Cazuza, outro
anjo torto) faz parte do imaginá-
rio poético de uma geração. O
que ele diria do rumo que o Bra-
sil tomou? Que País é esse?”
Gosto de dar minhas voltas, ir
aos lugares. Agora mesmo vou
dar uma saidinha. Vou ao lavabo
Estado atual do mundo
seria prato cheio para a
infinita inspiração do
poeta da Legião, dentro
ou fora da cena musical
Um presidente
sem ternura
DESENHOS
Universo complexo. Renato
Russo em autorretrato
ACERVO ESTADÃO
O artista. Renato Russo, nascido em 27 de março de 1960, liderou uma das principais bandas brasileiras e inspirou uma geração de jovens e escritores
No MIS. Trabalho multicolorido
esteve em exposição em 2017
FOTOS ACERVO RENATO RUSSO
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