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O meu pai continuava a vir todos os anos à casa da aldeia a fim de matar o porco em
memória do pai tal como durante a sua infância o pai dele fazia em memória do avô e
desde que me lembro trazia-nos sempre consigo e obrigava-nos a assistir aflitíssimos,
mastigando soluços, à agonia do bicho, pendurado de um anzol de ferro, com uma bacia
para o sangue onde a minha mãe ia mexendo uma colher de pau enquanto os cães
vadios a espreitavam à porta, se algum se atrevia a entrar o meu pai, de avental de
borracha, expulsava-o batendo o pé no chão, a aldeia pequena, sem lugar em nenhum
mapa, meia dúzia de ruas estreitas, o cemiteriozinho na encosta da serra, mulheres
velhas de lenha à cabeça, os pássaros muito acima, longíssimo, e eu a odiar tudo aquilo,
quer-se dizer o sítio e as pessoas, no caso do meu pai falar comigo não respondia, com
o olhar da minha mãe ainda não doente, só a palma, de vez em quando intrigada, a
avaliar as costas e a esquecer-se delas, repreendendo-me em silêncio, nunca me
chamou a atenção de outra maneira, não me lembro sequer de lhe escutar o meu nome,
nasci cinco ou seis anos depois do meu pai vir de Angola e durante que tempos não ouvi
falar de África, volta e meia um sócio da tropa comia conosco mas jamais uma palavra
acerca da guerra, praticamente nem uma palavra acerca de nada, o meu pai cortava a
carne ao colega que tinha um braço aleijado, percebia-se por momentos o que se
assemelhava a uma hélice de helicóptero girando sobre o prédio antes de se afastar e o
candeeiro do teto oscilava um bocadito, um tal Bichezas, que desconheço quem fosse,
surgia de repente a erguer a garrafa de vinho da toalha e servia-os a ambos enquanto o
braço aleijado, a que faltava um dedo, por sinal o da aliança colocada no médio, vibrava,
o braço aleijado não bem um membro, um relevo escondido na manga e para o qual,
por educação, se evitava olhar, se por acaso uma sereia de ambulância na avenida o
relevo aumentava, se nenhuma sereia quase nos esquecíamos dele, tudo acontecera há
demasiado tempo para ainda ser importante e no entanto para o meu pai e o sócio, que
esquisito, embora nenhum deles falasse não parava de suceder, a mina na berliê, o
oficial sem um dos ombros, tiros de vez em quando, o rádio que não conseguia contactar
a companhia
- Mosca urgente mosca urgente
de joelhos no chão ao telefone e do outro lado silvos e um pedido confuso - Repete repete
ou dava ideia que - Repete repete
o guia que não morreu descalçando-se para fugir melhor sem que nenhum atirador
lhe acertasse, um turra no capim, a olhar para eles, que uma pistola cegou, a minha mãe
saiu com a terrina para a cozinha, trouxe o cesto da fruta e de farda número dois, vindo
sei lá de onde, o tal Bichezas de novo, o meu pai a suspirar - Dava-nos jeito aquele
cortando uma maçã para o colega e uma maçã para o meu pai, isto ao mesmo tempo
na nossa sala e na ruína da vivenda do antigo chefe de posto que servia de messe, cheia
de osgas na trepadeira e falhas no sobrado, onde os oficiais catangueses, de cócoras e
lenço vermelho ao pescoço, procuravam com ganchos de arame os ratos que assavam