para comer no degrau da entrada, quando o sócio do meu pai se despediu de nós o rádio
continuava a tentar contactar a companhia mudando a antena de um tronco para o
outro enquanto o capitão se desesperava
- E agora?
sem acreditar que dessem por nós na casa da aldeia junto ao cemitério e à serra onde
borbulhavam mimosas, a fim de matarmos o porco que de há um mês para cá só comia,
comia, sem que o Bichezas lhe ligasse nenhuma, os meus pais, o meu irmão e a minha
cunhada na sala e eu sozinha na horta sem falar com ninguém nem olhar para ninguém,
junto à nespereira onde há anos sepultaram o cão, recordo-me de estar ao colo da
minha mãe rodeado por uma febre que ladrava pulando à minha volta, recordo-me dos
milhafres e de ter medo da claridade turva da lua na janela quando me deixavam sozinha
no quarto e as vozes a seguir ao corredor uma tonalidade diferente perguntando-se
baixinho - Vamos levá-la conosco?
confundidas com a da minha cunhada - Não mora mais ninguém a não ser vocês aqui
tirando os ciganos que passavam na estrada, cheios de sombras negras e guizos e
meia dúzia de velhos no muro do largo, sempre que venho à aldeia além da esperança
que o meu irmão mate o meu pai com a faca do porco não me interessa mais nada,
nunca disse onde moro, se moro sozinha, em que sítio trabalho, se tenho amigos, para
quê, o meu pai e outro alferes distribuíram os soldados pela mata na esperança de
darem pelos turras se os turras voltassem, o rádio apenas mensagens de outros
batalhões, os sul africanos a cochicharem na linguagem deles, quando não queriam que
os compreendêssemos empregavam-na diante dos portugueses, eu emprego a minha
boca calada e não me entendem tão pouco, não cumprimento as pessoas no elevador
nem nos patamares, claro que me conhecem a cara mas continuo a fingir que sou uma
visita ou assim, acho que não gosto seja de quem for, de que criaturas podia gostar e de
que serve gostar, o que se faz com gostar, o que se ganha em gostar, o rádio anunciou
que vinham dois pelotões a caminho, tirando o jazigo da minha família, de que a nossa
prima cuida, cobre os finados com naperons, põe-lhes jarrinhas de goivos em cima,
limpa as folhas dos choupos com uma vassourita, quase só estranhos no cemitério, mais
antigos que os da guerra em África sepultados não sei onde esses, o Bichezas sempre
prestável, com um pano de secar a loiça no ombro e a noiva, a Fininha, casada com um
ourives - Quer que os procure para si menina?
comigo sem o olhar, claro, que diferença me faz, quando desapareceram os últimos
ainda não era nascida, dois pelotões, várias baixas, tinham que deixá-las na mata,
levando-as aos ombros só se atrasavam e depois os cadáveres pesam mais do que se
julga, basta um anel no dedo ou um relógio num pulso para não aguentarmos com eles,
quando um condutor de rebenta minas pediu ao meu pai para lhe guardar o fio do
pescoço nem sei como o nosso alferes, mesmo enfiando-o na algibeira, conseguiu
aguentá-lo, conforme não consigo entender como a minha mãe suporta as pedras ainda,
vejo-a aqui da horta a cozinhar o almoço em movimentos tão difíceis, tão lentos, apesar
da blusa larga contava-lhe as costelas, a continuarmos assim daqui a pouco sou eu, ora