aí está a vantagem, a única da família, não perto dos meus pais, não perto do meu irmão,
não perto da aldeia, neste prédio barato dos arredores de Lisboa de onde se vê uma
nesguinha de rio, gaivotas, fábricas, armazéns, não pares de comer porco, não pares,
come uma a uma as pedras da minha mãe igualmente, talvez eu ainda consiga deitar
fogo à minha família e à casa da aldeia despejando o garrafão de petróleo no armário
da roupa, na arca, nos lençóis, nos móveis, na quantidade de lixo inútil que por aí há e
já agora em mim, mal acabem a última linha deste livro cheguem-lhe um fósforo para
que nada sobeje da gente, do que aqui ficou escrito e nos esqueçam, a minha cunhada
para a amiga, a agradecer-lhe um anel
- Tão querida
alargando a mão contra o peito, no espelho, a fim de o observar melhor, a primeira
vez que jantou em nossa casa a minha mãe pôs a toalha bordada pela minha avó e o
serviço, com desenhos de flores, guardado no aparador e no qual nunca comíamos, julgo
que foi a primeira vez que dei conta que o meu irmão preto conforme dei conta que as
pessoas na rua o olhavam se me ia buscar à escola porque eu ainda não sabia o caminho,
quando alugamos esta casa o senhorio, ao vê-lo, hesitou a pensar nos restantes
inquilinos, uma tarde aos descermos as escadas a senhora do segundo andar para uma
amiga - Não sentes o cheiro a macaco?
e o meu irmão a fingir que não ouvia, perguntou-me quase a medo depois - Cheiro-te a macaco?
sempre que saía do quarto tornava a abrir a porta e inclinava-se lá para dentro a
inspirar, a serra cheirava, a aldeia também, ele não, a minha mãe começou a cheirar a
remédio depois de adoecer, o meu pai cheirava a sono quando cabeceava a seguir ao
jantar, em certas manhãs a janela do quarto deles aberta e as duas almofadas da cama
não lado a lado, amarrotadas uma por cima da outra num canto do colchão da mesma
forma que um bocadinho de lençol ao léu, do lado da minha mãe, como se tivesse sido
puxado, a minha mãe corou ao perceber que eu olhava, a alisar aquilo com a pressa das
palmas, depois de adoecer a cama sempre perfeita e as almofadas redondas, a única
diferença estava em que o meu pai, volta não volta, chegava mais tarde, com o que me
dava a ideia de outro perfume a anular o seu e a cara da minha mãe, quando ele lhe
beijava a testa, mais comprida um instante, continuava a coser em silêncio, dava fé de
um adejar rápido nos dedos que seguravam a agulha e logo tudo como antes a seguir, o
meu pai sentindo-se culpado no interior do jornal, nunca se falou de África nem de
Angola, ele e o meu irmão em silêncio mas se um barulho mais forte, uma porta, uma
gaveta ou assim, as páginas abanavam, a minha cunhada para nós, nervosa - Já houve paz aqui?
a casa da aldeia muito mais pequena agora do que quando eu era miúda, uma
mortalha do meu avô ainda no cinzeiro, dois bonés no bengaleiro, o do meu pai e o dele,
à espera de um amanhecer de perdizes, há momentos em que as oiço a dormirem nas
moitas esse sono das aves feito de suspiros inquietos, patitas agitadas, soluços, olhos
redondos que ouviam, o médico para a minha mãe - Com este remédio novo garanto-lhe que as suas pedras vão tornar-se mais leves
que a água