António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Já se vê o muro
    quando já se via o muro

  • Já se vê a nespereira
    quando já se via a nespereira

  • Já se vê a horta já se vê a casa
    quando já se viam a horta e a casa, o meu pai, de colete, a sachar não sei quê, a minha
    mãe, com o avental a escorregar-lhe das ancas, pendurando roupa lá fora e eu, que
    idiota, uma lágrima ou antes quase uma lágrima, não exageremos nem nos tornemos
    piegas agora só porque me lembrei disto, eu no sofazito do sítio onde moro a olhar a
    janela sem ver a janela, nem o supermercado do outro lado da rua, nem a oficina de
    automóveis, nem o princípio da noite e ao fundo, por trás disto tudo, ainda um sol sem
    cor e já lua, os candeeiros nítidos da vila ao longe, o halo de Lisboa ao fundo, a minha
    mãe a fechar todas as janelas e a acender a lâmpada da sala que ao piscar tornava as
    cortinas e os móveis mais antigos e tristes, o teto amarelo de tabaco, um prego na
    parede, sem nada pendurado, a enferrujar a caliça, o meu irmão poisou-me no soalho

  • Acabou-se a corrida
    e ficou a massajar as omoplatas que tempos, de fato preto, um preto, o meu avô que
    nunca vi, morreu séculos antes dado que todas as pessoas que morreram se tornam logo
    antigas, basta ver-lhes a roupa nas fotografias, basta escutar as vozes tão esquisitas
    sempre, tão agudas, com um piano desafinado a tocar, por trás delas, para alguém que
    eu nunca vira igualmente

  • Um neto preto eu diz você?
    a aumentar o peito indignado e de caminho um soslaio ao meu pai

  • Viste o que me foste arranjar?
    e com as janelas e as portas fechadas, francamente, não vi por onde o gato que mora
    aqui entrou a menos que uma telha quebrada ou assim, em criança passei verões
    inteiros à cata de mistérios na horta, osgas, joaninhas, pedaços de mica, agora venho os
    três dias da matança apenas esperançosa que a mulher, morta de bruços em África, se
    vingue do meu pai, os pinheiros no escuro e o mesmo morcego desde a infância a gritar
    o meu nome, a minha mãe acendia-me a luz e nem uma sombra conosco

  • Que morcego?
    apenas pedras mais leves que a água flutuando suspensas, o médico da minha mãe
    para os colegas, mostrando-lhes radiografias atrás de radiografias

  • E esta?
    a minha cunhada para o meu irmão, baixinho

  • Não aguento mais isto
    eu para a minha cunhada

  • Tem razão você quem aguenta mais isto?
    imaginando não o porco, o meu pai a comer dobrado para o prato afastando-nos, a
    minha mãe aflita

  • O que se passa comigo?
    e o meu pai debruçado sobre a mesa alheado de nós, mastigando sempre

  • Não consigo parar

Free download pdf