o meu pai que desde a guerra não conseguia parar, o psicólogo no círculo de cadeiras
do hospital
- Não é capaz de estar quieto um bocadinho que seja?
e desculpe amigo mas não sou capaz de estar quieto, demasiadas pessoas sem mãos,
demasiadas orelhas em frascos, demasiados helicópteros, demasiados feridos,
demasiados quimbos a arderem, demasiados mortos, o oficial de operações a rondar
prisioneiras, o alferes a chorar debaixo da mercedes estendendo-nos a própria merda - Ajudem-me
ao mesmo tempo que tentava afastar-nos, o meu pai empurrou-o a pontapé para a
picada e ele - Por amor de Deus não me matem por amor de Deus não me matem
este capítulo, que devia ser eu a escrever, a minha irmã roubou-mo, Sua Excelência
a pegar-me no braço - Agarra na mala e vamos embora daqui
mirando com desgosto os móveis velhos, a mesa de comer, as cadeiras, a bailarina
de loiça numa espécie de vênia que enternecia a minha mãe, ou seja um sorriso súbito
de criança que me obrigava a sorrir por meu turno com uma vontade idiota, sei lá
porquê, de abraçá-la, quer dizer mais que abraçá-la, pegar-lhe ao colo e ficar assim
muito tempo a sentir o coração no meu pescoço, rápido, tenso, ela desde as pedras tão
séria sempre, com um vinco na testa que dantes não tinha e a tornava idosa demais - A bailarina deu-ma uma vizinha que se chamava Arminda quando fiz seis anos
alterando-lhe um bocadinho a posição, ora rodando-a para a direita, ora rodando-a
para a esquerda, ora aproximando-a um milímetro cauteloso da borda da estante e
recuando a observar o efeito - Tão linda
numa voz anterior à sua voz de agora, muito mais redonda, muito mais feliz, muito
mais parecida com ela, a minha mãe para mim baixinho - Chama-se Constança
num segredo que eu percebia logo só nos pertencer às duas, os seus pais ignoraram
sempre, as colegas da escola ignoraram sempre, uma tia avó a quem ela fazia
confidências ignorou sempre, o meu pai ignorara, claro, consoante nós homens
ignoramos tudo o que é importante quanto mais não seja no entender delas não
percebemos nada, a minha mãe a repetir - Constança
tocando-lhe com a ponta do dedo na base o que significava várias coisas ao mesmo
tempo, algumas difíceis de explicar em palavras e que os homens não percebem
também ao passo que os bonecos, palavra de honra, compreendem, vejam-se os anjos
de cartolina por exemplo, vejam-se os santinhos de barro e como os pretos, pense-se o
que se pensar, um bocado mais perto dos bonecos que nós, e portanto mais capazes de
decifrarem as coisas e não eram só as pedras, agora mais leves que a água, era o que eu
sentia por ela, não lhe cortem as orelhas, não lhe cortem as mãos, dê-me o seu peito
vazio, esconda-me nos seus panos do Congo, não cesse de olhar-me, mesmo que não
me veja não cesse de olhar-me, passeie-me entre as cabras, os cabíris, os quimbos
tombados, os soldados que regam de gasóleo as esteiras de mandioca, as folhas de